2° Vá para casa
O ronco dos motores do avião reverberava pela cabine enquanto sobrevoávamos a vastidão da Europa, de volta à Itália. A missão em Kosovo estava concluída, mas o peso das últimas semanas, ainda pairava sobre meus ombros. O cheiro de pólvora e sangue parecia ter impregnado minha pele, mesmo após trocar de roupa. A adrenalina havia se dissipado, deixando para trás apenas o cansaço físico e psicológico.
Olhei para fora da janela, vendo o céu escuro pontilhado de estrelas. Era uma noite clara, mas fria. Fechei os olhos por um momento, tentando relaxar. O silêncio dentro do avião contrastava com o caos que tínhamos deixado para trás. A cada respiração lenta, eu sentia o corpo pesado, exausto. Não estava ferido fisicamente, mas o peso emocional daquela missão tinha me atingido mais do que eu esperava.
Lentamente, me entreguei ao sono.
Mas o descanso não veio como deveria.
De repente, me vi de volta à igreja em Kosovo. Os pesadelos tomaram conta, trazendo flashes de momentos que eu tentava apagar. O som de tiros era ensurdecedor, os gritos dos meus homens ecoando ao meu redor. Corri, tentando alcançar o comandante, mas meus pés estavam pesados, presos ao chão. Eu podia ver o sangue jorrando de seus ferimentos, seus olhos me encarando com uma mistura de dor e desespero. Eu gritava, mas nenhum som saía da minha boca. Explosões, gritos, a poeira se misturando com o sangue. Os rostos das pessoas que não conseguimos salvar surgiam diante de mim, enquanto o eco das últimas palavras de meus companheiros vibrava em meus ouvidos. Meu corpo se agitava involuntariamente, preso entre o sono e o desespero.
Acordei com um sobressalto, o som suave do avião agora parecia abafado, como se estivesse longe demais. Passei a mão pelo rosto, sentindo o suor frio na testa. Meu coração batia acelerado, e levei alguns segundos para me situar, lembrar onde estava. O interior da cabine era iluminado apenas pelas luzes suaves e intermitentes. Ao meu lado, os outros soldados dormiam ou encaravam o vazio em silêncio. Estávamos todos presos nas mesmas lembranças, cada um carregando seu próprio fardo.
Respirei fundo, tentando desacelerar meu coração. O céu ainda estava escuro lá fora, e as estrelas pareciam mais distantes agora. Sentia o peso da missão em Kosovo ainda pairando no ar, como se uma parte de mim tivesse ficado lá, presa no caos e na destruição. O que mais me incomodava não era o que havíamos visto ou enfrentado, mas o que deixamos para trás: vidas interrompidas, histórias sem final, e o vazio que seguia crescendo em meu peito.
— Não conseguiu dormir? — Uma voz grave e familiar ecoou ao meu lado.
Era Logan, um dos soldados mais experientes da equipe, mas era alguém em quem eu confiava. Ele estava acordado, olhando diretamente para mim, com aqueles olhos cansados, mas atentos. Ao seu lado estava Tayler, um dos soldados mais novos.
— Não muito — respondi com um suspiro. — Pesadelos.
Ele acenou com a cabeça, como se entendesse exatamente o que eu estava passando. E, na verdade, ele provavelmente entendia.
— Isso vai passar — ele disse, embora sua voz não soasse muito convincente. — Sempre passa.
Desviei o olhar, sem saber se acreditava nele. A verdade é que, depois de tantas missões, eu já não tinha certeza se aquilo algum dia realmente passava. O cansaço se acumulava, a cada operação, a cada perda, e logo restava apenas uma sombra do que éramos antes.
— O que faremos quando chegarmos? — perguntou Tayler, tentando afastar os pensamentos sombrios.—
Logan deu de ombros.
— Alguns de nós voltarão para a base, outros terão alguns dias de folga. Depende do que o comandante decidir.
Dias de folga. A ideia parecia ao mesmo tempo reconfortante e distante. Seria suficiente para recuperar alguma paz? Ou apenas uma pausa curta antes de sermos jogados de volta ao fogo cruzado.
Olhei mais uma vez pela janela. O avião continuava seu curso silencioso pelo céu noturno, e eu me sentia pequeno diante daquela vastidão.
— Eu só quero um pouco de normalidade — murmurei, mais para mim mesmo do que para Logan.
Ele sorriu, mas era um sorriso sem alegria.
— Nós todos queremos, meu amigo. Mas depois de tudo isso, o que é normalidade?
***
Algumas horas depois, a luz suave da cabine foi substituída por um brilho amarelado mais forte, anunciando o amanhecer. A voz grave do comandante ecoou pelo sistema de som, informando que estávamos nos aproximando da base aérea em Roma. A missão finalmente estava atrás de nós, mas a sensação de alívio ainda não havia chegado. Meus pensamentos estavam dispersos, perdidos em tudo o que havíamos deixado no campo de batalha.
Assim que o avião tocou o solo, senti um misto de alívio e incerteza. Estávamos de volta à Itália, mas nada parecia realmente certo. Havia uma frieza, uma distância entre o que era familiar e o que me aguardava. Depois de uma rápida checagem médica e de depositar nossas armas e equipamentos, fomos instruídos a aguardar no hangar para debriefing.
Eu estava sentado em uma cadeira metálica, as mãos entrelaçadas, encarando o piso de concreto. Soldados iam e vinham, mas tudo parecia em câmera lenta. O som dos motores de aeronaves ao fundo era constante, e o cheiro de combustível misturava-se ao ar fresco da manhã. Ao meu lado, Tayler estava calado, o que era incomum para ele que gostava de tagarelar.
De repente, o coronel entrou no hangar, suas botas ecoando no chão. Ele caminhava com propósito, suas mãos segurando uma prancheta. Seus olhos passavam de soldado a soldado, lendo os relatórios e, ocasionalmente, trocando algumas palavras com os oficiais de cada unidade. Quando parou à nossa frente, senti meu corpo enrijecer.
— Tenente Enrico Rozzi Moretti — chamou ele, sem levantar os olhos da prancheta.
Me levantei de imediato, tentando manter a postura firme, apesar do cansaço que ainda pesava sobre mim.
— Senhor! — respondi, batendo continência.
O coronel me olhou por um momento, depois deixou a prancheta de lado e cruzou os braços.
— Sua missão em Kosovo foi cumprida com êxito, Tenente. Os relatórios indicam que sua equipe fez um excelente trabalho, mas, todos precisamos de descanso. Você, tem um mês de folga. Vá para casa, recupere-se. E esteja de volta ao quartel no dia 10 para receber novas ordens.
Por um segundo, a informação parecia surreal. Um mês de folga? Depois de meses intensas em campo, a ideia de estar fora daquele ambiente era quase inconcebível. Mas, ao mesmo tempo, senti um alívio suave começar a se espalhar pelo meu corpo.
— Obrigado, senhor — respondi, tentando conter a surpresa na voz.
O coronel assentiu, seus olhos demonstrando compreensão. Ele sabia o peso que carregávamos. Sem dizer mais nada, ele se afastou, continuando a conversar com outros soldados. Tayler me lançou um olhar, meio sorriso, meio resignado.
— Um mês, hein? — ele comentou, erguendo as sobrancelhas. — Parece um sonho.
Eu balancei a cabeça, ainda absorvendo a informação. Senti meu corpo relaxar, e pela primeira vez em dias, a tensão em meus ombros diminuiu um pouco.
Depois do debriefing, passei pelos procedimentos burocráticos de liberação e, finalmente, fui autorizado a deixar a base. A sensação de liberdade era estranha. O sol da manhã brilhava forte, aquecendo meu rosto enquanto eu caminhava em direção ao estacionamento, onde alguns soldados estavam sendo recebidos por familiares. Havia abraços emocionados, risos, e o som de vozes alegres cortando o ar, em contraste com o silêncio de antes. Mas não havia ninguém me esperando. Isso não era surpresa; minha vida pessoal sempre havia sido uma espécie de incógnita, algo distante e negligenciado... Não tinha namorada... Não tinha pais... E minhas irmãs deveria estar ocupadas demais com os seus trabalhos.
Suspirei profundamente, enquanto caminhava até meu carro, um hummer H3 que tinha deixado no estacionamento militar antes da missão. O motor rugiu suavemente quando dei a partida, e eu me permiti respirar fundo. Era a primeira vez em meses que não estava cercado por companheiros de farda, barulho de helicópteros ou ordens gritadas. Apenas eu, o carro, e a estrada que me levaria de volta para Aosta... De volta para o meu lar, para a minha casa.
Enquanto dirigia pelas rodovias sinuosas em direção a minha casa, as memórias da missão ainda rondavam minha mente. Mas algo na paisagem, nas colinas verdes e no céu azul claro, começou a suavizar o peso. Não era como se tudo tivesse sumido, mas ao menos agora havia um respiro. E naquele momento, eu decidi que, mesmo que por um mês, eu iria tentar me reconectar com aquilo que eu havia perdido durante tanto tempo: paz.
Algumas horas depois, finalmente avistei a casa de pedra que havia herdado de meus pais, senti um aperto no peito. Não visitava o lugar há meses, talvez até anos. Mas ali estava ela, intacta, e eu estava de volta. Agora, restava descobrir o que fazer com essa liberdade inesperada durante um mês.
Desci do carro e caminhei lentamente em direção à porta da casa. A cada passo, a familiaridade do lugar e o peso das memórias pareciam se entrelaçar, me puxando para um passado que eu mal reconhecia mais. O vento suave trazia o cheiro da terra, do mato e da madeira velha da casa, me lembrando de manhãs passadas aqui, antes de tudo mudar.
Abri a porta com um leve ranger e o som ecoou pela sala vazia. O silêncio era quase opressor, como se a casa estivesse esperando por algo, ou alguém, para trazê-la de volta à vida. Pus a mochila no chão ao lado da entrada e passei os olhos pelo ambiente. Tudo parecia estar no mesmo lugar, mas era como se estivesse congelado no tempo, esperando o retorno de alguém que talvez nunca voltasse da mesma forma.
Suspirei e segui até a cozinha. Havia uma garrafa de vinho que eu sempre guardava para ocasiões especiais, esquecida num canto do armário. Abri a garrafa com facilidade, o som do lacre quebrando me trazendo uma sensação estranha de normalidade. Peguei um copo, servi um pouco e me sentei à mesa de madeira, as mãos envoltas no copo como se buscassem calor. A primeira sensação do vinho na boca foi forte, mas logo o calor se espalhou, relaxando meus músculos cansados.
Eu deveria estar feliz por ter esse tempo livre, por estar finalmente fora de uma zona de combate. Mas ao mesmo tempo, me sentia deslocado, como se o mundo ao meu redor estivesse girando em uma frequência diferente da minha. O mês de liberdade que o coronel havia mencionado parecia mais um desafio do que uma recompensa. O que eu faria com tanto tempo? Como preencher o vazio que me assolava?
Enquanto o vinho desliza suavemente pelo meu paladar, deixo minha mente vagar pelas últimas duas décadas. Sou o Tenente Rozzi, um homem que dedicou mais de uma década ao Exército Italiano, começando minha jornada aos 18 anos. Agora, com 32, carrego o peso de inúmeras honrarias e um histórico repleto de desafios.
Meu caminho foi repleto de especializações: desde operações especiais a treinamentos de comando de aviação, da infantaria de montanha, à bravura dos paraquedistas, e do batalhão de ações com cães. Cada missão, cada campo de batalha me moldou de maneiras que mal consigo descrever. Mas o que realmente faço, e o que poucos compreendem, são os segredos que guardo. Fui enviado a lugares que a maioria das pessoas só vê nas telas de cinema, operando sob a sombra da clandestinidade, em missões sigilosas que não chegam ao conhecimento do público.
A adrenalina e o perigo são constantes, mas agora, aqui estou eu, finalmente com alguns dias para respirar, para refletir sobre o que fiz e o que desejo fazer a seguir. A vida me ensinou a viver entre extremos — a emoção do combate e a quietude de um momento em paz.
O vinho me dá a coragem de olhar para o futuro, de imaginar um novo caminho, longe das sombras, enquanto a lembrança dos meus companheiros e dos desafios enfrentados ecoa na minha mente. É hora de organizar minha vida, de decidir se continuarei a dançar com o perigo ou se buscarei algo diferente.
***
Debriefing: aeronáutica, marinha, exercito. (É interrogatório feito usualmente aos pilotos e tripulantes de aeronave ao regressarem de alguma missão, a fim de se colherem informações sobre o inimigo.)
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