19° Pesadelos e chocolate
No coração do deserto, envolto por uma vastidão árida e hostil, Enrico movia-se lentamente, atento a cada detalhe ao seu redor. O céu estava tingido de um cinza denso, quase sufocante, e o calor era opressor, fazendo com que até mesmo o ar tremesse. Ele e sua equipe avançavam com cautela entre ruínas e escombros, movendo-se como sombras sobre o terreno irregular. O silêncio era absoluto, o tipo de silêncio que pressagiava perigo.
Enquanto caminhava, os olhos atentos vasculhavam o horizonte em busca de qualquer movimento. Seus sentidos estavam à flor da pele, a tensão quase palpável, enquanto seu corpo reagia automaticamente a cada barulho, a cada sombra que se movia à distância. De repente, o som de um estalo seco cortou o ar. A súbita percepção de que pisara em algo metálico, e, num instante, o chão explodiu em uma nuvem de poeira e fragmentos, arremessando-o para trás.
Ele sentiu o impacto da explosão em cada osso, cada músculo, o corpo se chocando contra o solo arenoso com força. A fumaça e o cheiro pungente de pólvora invadiram suas narinas enquanto ele tentava desesperadamente se levantar. As vozes de seus companheiros soavam distantes, fragmentadas pelo zumbido incessante que preenchia seus ouvidos. Suas mãos tateavam o chão, em busca de estabilidade, mas tudo parecia se dissolver ao seu redor, como se o chão estivesse sendo sugado por uma escuridão sem fim.
Em meio à névoa, ele avistou uma figura conhecida, um companheiro de batalhão. Estava ferido, tentando erguer-se entre os destroços, a expressão marcada pelo medo e pela dor. Enrico estendeu a mão para ele, mas antes que pudesse alcançá-lo, uma nova explosão iluminou o ambiente, tão intensa que seus olhos se fecharam instintivamente.
Ao reabrir os olhos, estava sozinho. O deserto havia se transformado em um campo vazio e silencioso, mas o cheiro de queimado ainda impregnava o ar, e ele podia ouvir o som distante de sirenes. Sentia um vazio crescente, uma sensação opressiva de solidão e impotência, como se estivesse preso entre o mundo dos vivos e dos mortos. A vastidão ao seu redor parecia ecoar sua própria vulnerabilidade.
Foi nesse momento que despertou. Enrico abriu os olhos de repente, sentindo-se sufocado. Ele não se encontrava mais no deserto, mas seu corpo ainda reagia como se estivesse naquela zona de guerra. O peito arfava, e ele sentia as palmas das mãos suadas, cada músculo ainda tensionado pelo terror do sonho.
Enrico esfregou o rosto com as mãos, tentando se livrar das últimas sombras do pesadelo. O olhar distante e frio ainda o dominava enquanto encarava Milena, que agora o observava com a expressão preocupada e o coração acelerado.
— Você está bem? — ela repetiu, suavizando a voz, como se uma palavra errada pudesse quebrá-lo naquele momento.—
Ele desviou o olhar, hesitante, o peito ainda arfando e os olhos vazios, como se não estivesse ali, como se tivesse deixado parte de si naquela missão distante e sombria.
— Você ainda está aqui? — ele perguntou, a voz baixa e áspera, carregada de algo que Milena não reconheceu de imediato. Havia uma dureza, um frio que ela ainda não tinha visto nele. Era como se a vulnerabilidade do sonho estivesse lutando para não transparecer, escondida atrás daquela barreira de aço.—
— Enrico... — Milena murmurou, dando um passo na direção dele e pousando a mão suavemente em seu ombro. O toque pareceu sacudi-lo para o presente, e ele finalmente ergueu os olhos para ela, ainda em silêncio, como se buscasse algo no rosto dela, algum consolo ou âncora para escapar do tormento daquela memória. Ele respirou fundo, a tensão aos poucos cedendo, embora o olhar permanecesse sombrio.—
— Desculpe. — Enrico sussurrou, sua voz mais suave, quase arrependida, mas ainda carregada de uma tristeza que Milena começava a entender ser mais profunda do que ele queria mostrar. Enrico respirou fundo, as mãos ainda tremendo levemente enquanto a adrenalina do pesadelo começava a diminuir. Ele desviou o olhar da mão de Milena em seu ombro, como se estivesse prestes a dizer algo, mas hesitava, lutando contra as palavras. — Eu... tive um pesadelo. — disse finalmente, a voz rouca e abafada, como se estivesse falando mais para si mesmo do que para ela. Milena permaneceu em silêncio, respeitando o espaço dele, mas com a expressão atenta e calorosa que transmitia um apoio silencioso. — Como eu já falei, esses pesadelos... Eles vêm e vão. — ele continuou, soltando um riso amargo. — Quando eu estava na guerra, pensei que fosse me acostumar, mas... algumas coisas... não saem tão facilmente da cabeça.
Milena sentiu um aperto no peito, mas tentou manter a voz tranquila.
— Imagino que seja difícil apagar tudo isso. Eu não posso nem... nem imaginar o que você viu lá. — Ela hesitou por um segundo, sem querer pressioná-lo. — Se quiser falar sobre isso, estou aqui, Enrico. Não precisa lidar com tudo sozinho.
Ele a olhou, com um misto de surpresa e alívio.
— Eu... nunca fui de falar sobre isso, nem nas sessões... As pessoas acham que é simples. Que você volta e esquece. Mas, às vezes, aquelas imagens... — Ele fechou os olhos por um instante, revivendo os flashes. — Elas aparecem do nada. Como hoje. No sonho... — Enrico parou, respirando fundo, tentando reunir forças para contar.
Milena apertou seu ombro, o toque transmitindo uma calma que ele parecia precisar.
— Eu nunca quis que ninguém visse essa parte. — Ele balançou a cabeça, um leve sorriso triste surgindo. — É por isso que nunca falo sobre isso... É por isso que não me envolvo com ninguém... É por isso que não durmo com ninguém, geralmente é só sexo e cada um segue o seu caminho. — suspirou.— É uma parte da minha vida que eu... gostaria de esquecer.
Milena se aproximou um pouco mais e, sem pensar, envolveu Enrico num abraço suave, quase como se quisesse protegê-lo do que ele havia passado.
— Não precisa esquecer para seguir em frente. — murmurou ela, sua voz baixa e calma. — Essas coisas... elas fazem parte de quem você é, Enrico. E talvez, só talvez, falar sobre elas torne o peso um pouco mais leve.
Ele a abraçou de volta, surpreendido pela delicadeza dela, sentindo pela primeira vez em muito tempo que talvez, apenas talvez, não precisasse carregar tudo sozinho. Enrico permaneceu em silêncio por mais alguns instantes, como se absorvesse aquele conforto inesperado. Era uma sensação nova e, de certo modo, libertadora. Milena se afastou um pouco, ainda segurando uma das mãos dele, oferecendo um sorriso suave.
— Sabe, eu sempre achei que tentar apagar o passado era a única maneira de seguir em frente. — Ele finalmente quebrou o silêncio, com o olhar fixo nas mãos entrelaçadas. — Mas talvez... talvez você tenha razão. Talvez compartilhar alivie um pouco desse peso.
Milena balançou a cabeça com um sorriso encorajador.
— Tudo tem um jeito, Enrico. E você não precisa carregar tudo sozinho.
Enrico soltou uma risada fraca, quase agradecido pela leveza que ela trazia.
— Você é maravilhosa sabia? Obrigada por me aturar...
— Não precisa agradecer Tenente. —Ela apertou a mão dele antes de se levantar, em um movimento inesperado, quase brincalhão.— Agora chega de conversas tristes! — disse com um sorriso maroto, puxando-o para se levantar. — Vamos para a cozinha. Acho que depois de tanto drama, você merece algo doce.
Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso.
— Doce? Agora?
Milena sorriu de maneira travessa, inclinando a cabeça para o lado enquanto cruzava os braços.
— Claro, agora. Quem disse que existe hora errada para comer algo doce?
Enrico riu, sacudindo a cabeça em uma mistura de incredulidade e diversão.
— Você realmente tem um talento para mudar o clima de uma conversa, sabia?
— É um dos meus muitos talentos Tenente. — Ela piscou para ele, indo em direção ao guarda roupa e pegando uma camiseta dele antes de abrir a porta para ir para a cozinha, e deixando-o sem escolha a não ser segui-la. Ele rapidamente vestiu uma roupa leve e logo depois partiu atrás dela.
Quando chegou à cozinha, Milena estava abrindo os armários com confiança, como se estivesse em sua própria casa. Enrico se encostou à bancada, cruzando os braços enquanto a observava.
— Está confortável? — ele brincou, levantando uma sobrancelha.
— Muito. — ela respondeu, sem nem olhar para ele. — Aliás, você precisa de mais chocolate na sua vida, Tenente.
— Chocolate?
— Sim! Chocolate cura tudo: dores de cabeça, dias ruins, conversas emocionais pesadas...
— Eu pensei que era o sorvete?
— Também ajuda bastante. — falou de forma divertida abrindo outra prateleira e encontrando o que procurava. uma barra de chocolate meio amargo, e sorriu como se tivesse ganhado um prêmio.—
— Você é sempre assim? — Enrico perguntou, sem esconder o sorriso.—
— Assim como?
— Descomplicada, leve. Como se nada te afetasse... Mas ao mesmo tempo, maluca e intensa?
Milena parou por um momento, o sorriso diminuindo levemente. Ela olhou para ele enquanto partia o chocolate em pequenos pedaços.
— Não é que nada me afete, Enrico. — começou, sua voz mais suave agora. — Eu só aprendi que carregar o peso do mundo nos ombros não ajuda. Já tentei ser assim, sabe? Ser forte o tempo todo, não deixar nada transparecer...
Ela deu de ombros, colocando o chocolate em uma tigela e começando a derretê-lo no micro-ondas.
— Mas percebi que a vida já é complicada o suficiente. Então, por que não encontrar pequenas coisas que trazem alegria?
Enrico a olhava atentamente, como se cada palavra dela fosse uma lição que ele precisava aprender.
— Você é... diferente. — ele disse baixinho, quase para si mesmo.
— Diferente bom ou diferente estranho? — ela perguntou, rindo enquanto tirava o chocolate derretido do micro-ondas.
— Diferente bom... Muito bom.
Milena o olhou de relance, e o brilho nos olhos dela mostrou que ela entendeu o que ele quis dizer, mesmo sem palavras extras.
— Agora, me diga, será que tem frutas por aqui? —
— Frutas?
— Sim! Vamos fazer fondue improvisado.
— Fondue? No meio da noite? — ele riu, levantando as mãos como se estivesse rendido. — Você realmente não tem limites.
— Ah, agora você percebeu? — Ela piscou, indo até a geladeira. E para a sua sorte encontrou morangos, uvas e banana e começou a cortar as frutas em pedaços pequenos.
Enquanto Milena trabalhava, Enrico se aproximou, pegando uma fatia de banana e colocando na boca antes que ela pudesse reagir.
— Ei! — ela protestou, batendo de leve no ombro dele.
— Só estou testando a qualidade.
— E está aprovada?
— Definitivamente. — ele respondeu, com um sorriso brincalhão e roubando um beijo dela.—
Quando terminaram de preparar o improvisado fondue, levaram a tigela de chocolate e as frutas para a sala, sentando-se no sofá. Milena espetou um pedaço de morango no garfo e mergulhou no chocolate, oferecendo a Enrico.
— Toma.
— Vai me alimentar agora?
— Não reclama Tenente.
Ele riu, mas aceitou o morango e, quando o sabor doce e amargo se misturou, Enrico fez uma expressão de aprovação.
— Está muito bom.
— Eu disse.
Eles continuaram assim, compartilhando frutas e chocolate, conversando sobre coisas leves, rindo das pequenas provocações. Por um momento, parecia que o mundo lá fora não existia.
Enrico olhou para Milena, a luz suave da sala refletindo no rosto dela. Ele sabia que algo havia mudado entre eles naquela noite. Não era só atração ou desejo. Era algo mais profundo, mais real.
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