14° sonhos, e sorvete
A noite estava silenciosa, quebrada apenas pelo som do relógio na parede e pelo vento suave que fazia as cortinas balançarem no quarto escuro. Enrico estava deitado na cama, com o corpo inquieto. As cobertas haviam escorregado para o chão, deixando-o exposto ao frio da madrugada.
De repente, sua respiração começou a acelerar. Em seus sonhos, ele estava novamente no campo de batalha, com os sons ensurdecedores de explosões e gritos ao redor. O cheiro de pólvora queimava em suas narinas. Enrico segurava a arma com as mãos trêmulas, o suor escorrendo por sua testa. Ele corria entre destroços e fumaça, ouvindo vozes chamando por ele, mas não conseguia identificar de onde vinham. No momento em que se virou, uma explosão intensa o atingiu, e tudo ficou escuro.
Ele acordou ofegante, o corpo coberto de suor e o coração batendo como se fosse sair do peito. Enrico sentou-se na cama, passando as mãos pelo rosto. Demorou alguns segundos para perceber que estava em casa, longe do caos da guerra. Suspirou, tentando regular a respiração, mas o peso do sonho ainda o prendia.
Sem conseguir voltar a dormir, levantou-se e foi até a cozinha, ainda descalço e sem camisa. A luz da geladeira aberta iluminava suavemente o espaço. Milena estava ali, sentada no balcão, com um pote de sorvete e uma colher na mão, absorta em seus próprios pensamentos. Ela usava um pijama curto demais, e os cabelos estavam presos de forma desleixada.
— Você também não consegue dormir? — perguntou Milena, sem tirar os olhos do pote de sorvete, mas com um leve sorriso no canto dos lábios.
Enrico se encostou na porta, ainda tentando se acalmar.
— Algo assim — respondeu com a voz rouca, esfregando a nuca. Ele hesitou por um momento, mas acabou pegando um copo para encher de água. — E você?
— Estava com fome. E, bom, sorvete pareceu uma boa ideia para distrair a minha mente. — disse ela com um tom brincalhão, erguendo a colher como se brindasse. — Quer?
Ele riu de leve, o sorriso quebrando um pouco da tensão que ainda o rondava.
— É madrugada, e você está comendo sorvete. Acho que isso diz muito sobre você.
— E você está acordado e inquieto. Isso diz muito sobre você também.
Milena o observou por alguns instantes, percebendo a expressão cansada dele, como se carregasse o peso do mundo nos ombros. Ela estendeu o pote de sorvete na direção dele.
— Vem cá. Senta comigo. Às vezes, sorvete resolve os problemas mais difíceis.
Enrico hesitou por um momento, mas acabou cedendo. Sentou-se ao lado dela no balcão e pegou a colher que ela ofereceu. O silêncio entre os dois não era desconfortável, mas cheio de significados. Enquanto compartilhavam o sorvete, Milena, em sua leveza, parecia trazer um pouco de paz ao caos interno de Enrico.
Era uma madrugada comum, mas para ele, aquele momento era tudo o que precisava para se lembrar de que estava em casa, seguro e ao lado de alguém que tornava o peso da guerra um pouco mais fácil de carregar.
—Quer conversar?— ela perguntou de maneira suave.— prometo que serei uma boa ouvinte.
Enrico encarou a colher em sua mão, hesitando por um instante. O peso das palavras de Milena pairou no ar, suaves, mas carregadas de uma sinceridade que ele não sabia se estava pronto para enfrentar. Ele respirou fundo, sentindo o aroma familiar de café que ainda impregnava a cozinha desde o início da noite.
— É complicado — respondeu finalmente, a voz grave e baixa, quase um sussurro. Ele mexeu no pote de sorvete com a colher, sem realmente pegar nada. — Não sei por onde começar.
Milena deu um pequeno sorriso, paciente.
— Então não comece. Apenas diga o que vier à cabeça. Não precisa fazer sentido, não comigo.
Ele olhou para ela, os olhos encontrando os dela por um momento mais longo do que o habitual. Havia algo no jeito de Milena. sua calma, sua leveza, que fazia com que ele se sentisse... seguro. Não julgado. Era uma sensação rara para alguém como ele, que carregava tanto por dentro e mostrava tão pouco por fora. Enrico suspirou profundamente, passando a mão pelos cabelos bagunçados antes de finalmente falar:
— Sabe qual é a pior parte de estar no exército por tanto tempo?
Milena balançou a cabeça levemente, apoiando o queixo na palma da mão enquanto o observava.
— Não, me diga.
— É saber que tantas pessoas dependem de você... do seu comando. — A voz dele soou pesada, carregada de um cansaço que ia além do físico. — Cada decisão que você toma pode salvar uma vida... ou acabar com ela.
Ela permaneceu em silêncio, sem interromper, permitindo que ele continuasse.
— E depois vem a noite. Fechar os olhos é a pior parte, porque você sabe o que está esperando por você lá. — Ele pausou, encarando o vazio como se estivesse vendo algo que ela não podia. — Pesadelos... todas as noites. Rostos, vozes, momentos que eu gostaria de apagar... Muitos soldados não aguentam a pressão psicológica. Eu mesmo... às vezes sinto que estou à beira de quebrar.
Milena desviou o olhar por um momento, mordendo levemente o lábio enquanto refletia sobre o que ele havia dito. Quando voltou a encará-lo, havia uma mistura de suavidade e determinação em seus olhos.
— E como você faz para lidar com isso?
Ele deu uma risada curta, sem humor.
— Não sei se lido. Eu apenas... Sigo em frente. Um dia de cada vez, fingindo que estou bem.
— Fingindo para quem? — perguntou ela, a voz baixa, quase um sussurro.—
Enrico a olhou, a intensidade em seus olhos encontrando a dela.
— Para todo mundo. — Ele deu de ombros. — É mais fácil assim. As pessoas não fazem perguntas, não olham para você como se estivesse quebrado.
Milena estreitou os olhos, como se considerasse as palavras dele com cuidado.
— Eu não acho que você está quebrado, Enrico. — Ela cruzou os braços, inclinando levemente a cabeça. — Mas eu acho que você precisa parar de fingir.
Ele ergueu uma sobrancelha, surpreso pela franqueza dela.
— E como você sugere que eu faça isso?
Ela colocou uma mão suave em seu braço, um toque leve, mas firme.
— Comece falando. — Ela sorriu de maneira encorajadora. — Você acabou de dar o primeiro passo, sabia?
Enrico soltou o ar que nem percebeu que estava prendendo, sentindo o calor da mão dela em seu braço. Havia algo naquela mulher que desarmava todas as suas defesas, e isso o assustava tanto quanto o confortava.
— Você faz parecer fácil.
— Não é fácil — admitiu ela, sorrindo de lado. — Mas as coisas mais importantes na vida nunca são.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos, apenas olhando para ela antes de falar.
— Eu sonho com isso quase todas as noites — começou ele, sua voz ainda hesitante, mas agora um pouco mais firme. — Com a guerra. Com tudo que aconteceu lá. É como se eu nunca tivesse realmente saído de lá. Mesmo aqui, mesmo agora... ainda sinto o cheiro da fumaça, ouço os gritos. Não importa o que eu faça, não consigo desligar. — Ele pausou, olhando para a mesa à frente. — E quando acordo, tudo volta.
Ela colocou o pote de sorvete de lado, deslizando para mais perto dele no balcão.
— Você não precisa carregar isso sozinho, Enrico — disse ela suavemente, sua voz quase um sussurro. — Você tem procurado ajuda? Alguma terapia ou sessões com um psicólogo?
Enrico desviou o olhar, mexendo no copo de água em suas mãos, como se estivesse tentando organizar os pensamentos. Ele soltou um suspiro pesado antes de responder:
— Já tentei, algumas vezes. — Sua voz soou hesitante, quase culpada. — Mas nunca consegui me abrir de verdade. Sempre parece... estranho. Falar com alguém que só está ali porque é o trabalho deles.
Milena inclinou a cabeça, sem desviar os olhos dele.
— Talvez você não tenha encontrado a pessoa certa. — Ela deu um sorriso pequeno, mas encorajador. — Não é fácil confiar em alguém assim, eu entendo. Mas sabe... não é fraqueza procurar ajuda. Na verdade, é uma das coisas mais corajosas que você pode fazer.
Enrico riu baixinho, um som sem humor, mas menos carregado do que antes.
— Você está cheia de lições de vida hoje, não é?
— Eu só estou sendo sincera. — Milena deu de ombros, mas havia um brilho travesso em seus olhos. — Além disso, eu tenho um talento especial para me meter onde não sou chamada.
Ele finalmente ergueu o olhar para ela, um pequeno sorriso se formando em seus lábios.
— Eu percebi.
Milena riu, apoiando-se no balcão.
— Bom, se não funciona com um terapeuta, talvez você só precise de alguém para ouvir... sem julgamentos, sem anotações em um bloquinho.
Enrico ficou em silêncio por um instante, as palavras dela parecendo ressoar em algum lugar profundo. Ele sabia que precisava de ajuda, mas admitir isso para alguém , ainda mais para Milena, era mais difícil do que ele gostaria de admitir.
— E você acha que pode ser essa pessoa? — perguntou ele, com um tom misto de ceticismo e curiosidade.
— Não sei. — Ela deu de ombros novamente, mas havia uma leveza em sua expressão. — Só sei que estou aqui. E enquanto você quiser falar, vou ouvir.
Ele ficou encarando-a por um momento, tentando decidir se aquilo era mesmo real. Milena tinha uma forma estranha de desarmá-lo, de fazê-lo sentir que, por um breve instante, o peso em seus ombros poderia ser compartilhado.
— Você é algo, sabia? — disse ele finalmente, repetindo as palavras que tinha dito antes, mas desta vez com um sorriso mais sincero.
— Já ouvi isso algumas vezes — respondeu ela com uma piscadela, antes de abrir novamente a geladeira e pegar o pote de sorvete. — Agora, já que estamos nessa sessão terapêutica improvisada, acho que merecemos mais sorvete.
Ele riu, balançando a cabeça e a analisando profundamente. Milena era totalmente diferente das garotas que já surgiram em sua vida.
— Talvez você esteja certa.
Ela cutucou o sorvete com a colher, fingindo seriedade.
— Eu estou falando serio...Você sabia que comer sorvete na madrugada pode ser considerado uma forma de terapia?
Ele soltou um riso de verdade desta vez, baixo, mas genuíno.
— Não sabia.
— Então está aprendendo comigo. — Ela ergueu a colher, triunfante. — Você está no meio de uma sessão terapêutica muito séria, então trate de comer mais uma colherada.
Enrico riu enquanto se servia de mais sorvete... Pela primeira vez em dias, o peso no peito de Enrico parecia um pouco mais leve. E naquela madrugada, enquanto dividiam um pote de sorvete e conversavam sobre nada e tudo ao mesmo tempo, ele percebeu que talvez Milena fosse exatamente o tipo de refúgio que ele precisava.
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