Prólogo
Às nove da noite de uma quarta-feira, perto de um dos pontos de encontro dos jovens locais, fora descoberto um corpo de uma mulher beirando os vinte à vinte e cinco anos deitada em um ângulo bastante antinatural na margem de um lago. O rosto pálido congelado em eterna confusão, quase que aterrorizada demais para compreender a dimensão do ataque, estava parcialmente submerso. Ela usava um vestido fino, de cetim cinza, e os pés descalços estavam dobrados contra a grama fresca. Não tinha como não imaginar as inúmeras possibilidades que se desdobraram para gerar aquele resultado mórbido e concluir que o responsável simplesmente largou ela lá sem prestar socorro ou decidiu que abandoná-la evitaria ser associado ao incidente.
Ela possuía uma identidade, claro.
Os flashes das câmeras dos peritos que coletavam fotos do caso ofuscavam ligeiramente meu campo de visão em pequenas explosões aleatórias. Pelas avaliações preliminares com os indícios encontrados na cena do crime é certo dizer que a vítima e seu algoz fossem velhos conhecidos. Amigos, colegas, parentes, namorados, nunca se imagina serem capazes de ações atrozes até estar em uma circunstância que revele a verdadeira faceta.
A morte é um fenômeno esquisito e assustador se subtrair as crenças mais filosóficas. Oculta nos pesadelos mais sombrios, permeando o imaginário e sendo fonte de inúmeras idealizações que tentam incansavelmente explicar sua natureza para preencher a efêmera existência humana de paz. Talvez seja uma óptica pessimista a julgar pela forma como é retratado, mas ninguém pode escapar de seu jugo, nada pode evitá-lo. A humanidade tentou, por séculos, encontrar uma fórmula para romper o ciclo natural e ser imortal, um anseio que facilmente corromperia até o mais digno dos homens, sem nunca obter um resultado.
As faixas amarelas quebraram a monotonia das matizes escuras ao redor.
Quando você lida, por anos, com a morte começa a enxergá-la com menos rigidez e mais como uma velha companheira. Uma parceira que te acompanha em alguns casos ou que te relembra a efemeridade da vida — tudo desaparece com um sopro. Nunca fui muito de imaginar o fim como um ponto final definitivo. Se tratando de mediunidade as coisas soam mais simples e menos aterrorizantes de certa forma. Há um “após” e nada se perde para sempre, exceto se algo obstruir o fluxo da vida.
No entanto, não significa que seja um júbilo confrontá-la, assistir o esgar vazio consumindo aquilo que está vivo.
Ao lançar o feixe de luz da lanterna sobre o corpo meio submerso de Júlia Carmel, a jovem que estampou cartazes de desaparecida nas últimas semanas, ficava mais difícil não sentir que não fiz o suficiente para salvá-la. A jovem saiu em uma festa e sumiu no meio do percurso de volta, um incidente que acendeu a fagulha de apreensão sobre seu paradeiro não somente aos pais, também a cidade inteira.
Em meio ao desespero e sem novas informações, a família Carmel me contratou como um recurso extra para investigação com a esperança que pudesse trazê-la em segurança para casa. Trabalhando nesse ramo há mais tempo do que deveria, sabia que muitos desses casos não se resolviam com um desfecho favorável. Muitas pessoas que perdem entes queridos nutrem a expectativa, mesmo contra todas as probabilidades, de revê-los sãos e salvos por essa razão acabava sendo a portadora de más notícias.
Olhei por cima do ombro, empoleirada na margem mais distante do lago, Julia fitando seu corpo, murmurando baixinho como se estivesse se agarrando a ideia de que estava delirando. Caminhei até ela ciente de que precisava realizar o que chamava de “expediente extraordinário”, ignorando a onda de emoções complexas demais para descrever que emanava dela. Seus sentimentos, sobretudo o dissabor de ter desencarnado tão cedo, se intensificavam a medida que compreendia a gravidade da situação.
— É assim que tudo termina? — ela murmurou com os grandes olhos de corsa transbordando lágrimas. — Eu não queria que nada disso acontecesse. Por que? Como fica minha família? Meus amigos? Meu namorado?
— Vamos resolver isso, fica tranquila — respondi com o timbre que usava para transmitir confiança. Para cumprir meu propósito precisava garantir que esses espíritos fossem acolhidos e processassem o ocorrido.
— Você pode me ver. — me encarou. — Os outros não podem. — indicou os demais policiais.
— Digamos que trabalho pra os dois planos — expliquei, não comentando muito sobre o que eu seria. — Vamos descobrir quem fez isso e assim você poderá descansar em paz.
Julia assentiu, embora fosse evidente que não era tão fácil aceitar que, de uma hora para outra, você não poderá retornar a normalidade e estar com quem ama.
— Agora que achamos o corpo poderemos proceder com o caso.
Fechar o relatório era o que chamavam de “hora da verdade”, passar quase a madrugada inteira redatando e ainda tendo a preocupação de manter um ritmo pra não me atrapalhar devido ao cansaço não consideraria o melhor envolvendo trabalho.
Respirei fundo, mandando uma mensagem para minha melhor amiga avisando que talvez teríamos que pular a chamada de sexta-feira. Mi Seo-Yeon ou Mimi é o que considero minha alma gêmea. Somos próximas desde que éramos crianças e sua família se mudou pra cá, também foi a única pessoa que contei sobre meu segredo e meu papel como guia para os espíritos. Ela nunca me questionou ou tratou como se fosse uma aberração, simplesmente escutou e entendeu. Conversar com ela sobre isso ajudava um pouco a espairecer, embora evitasse certos relatos.
Suspirei, enviando o arquivo para o e-mail para a avaliação.
Engatinhei sobre o colchão para encontrar um espaço confortável para deitar, meditando sobre o dia e Julia Carmel. Segurei meu celular e vasculhei o chat para ver se Mimi tinha me respondido, pelo costume, ela não demorava tanto e se passaram cinco horas sem nem uma visualização.
— Talvez os horários não batessem. — sorri cansada. — Deve ser o inconveniente fuso horário. — suspirei. — Mimi tem razão, acho que preciso mesmo de alguém pra cuidar de mim. — ri baixinho ao soar tão idiota ao falar aquilo em voz alta.
Fechei os olhos prometendo a mim mesma descansar por alguns segundos antes de ir tomar banho e colocar um pijama.
Estava escuro. Muito apertado.
Escutava apenas os sons da minha respiração superficial e desesperada. Por mais que quisesse mudar de posição, o espaço comprimido não me permitia, não tinha para onde ir e nem como me mover se gerar mais dores e desconfortos. Bati na parede e senti uma leve vibração, um impacto amortecido em uma estrutura de madeira tão pequena que desencadeava uma sensação de asfixia e claustrofobia. Com as unhas, lasquei o que seria a tampa, machucando os dedos no processo. Sem luz sequer podia vislumbrar a gravidade dos ferimentos além de uma vaga ideia.
Acordei com o telefone tocando do meu lado. Resmunguei mais pelo sonho estranho do que por ter sido despertada, na verdade, fiquei aliviada que tenha saído antes que ficasse mais bizarro. Tateei o colchão para buscar o celular e atendê-lo e vi, com a visão meio borrosa pelo sono interrompido, o número de Garu o primo de Mimi piscando na tela.
— Alô?
— Lina, desculpe te acordar — ele pausou para tomar fôlego. — Mas a Mimi te mandou algo?
— Não. Ela nem me respondeu quando enviei mensagem. Por que?
— Faz um tempo que não a vejo, a gente combinou de fazer compras, mas nada dela.
— Já tentou ligar? — bocejei, espantando a letargia.
— Já. Está desligado. — havia uma preocupação mascarada nas palavras dele. Uma que se adiantava ao perigo. — Liguei pra todo mundo e você era minha última esperança.
Meu coração falhou algumas batidas.
— Tem alguma coisa acontecendo?
— Eu não sei, mas, ao que tudo indica...
Essa e a última palavra que uma pessoa deseja escutar: desaparecida.
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