29. Desafortunados
07:52
21 de dezembro
São Francisco
DICK GRAYSON
Existem sonhos que parecem reais, outros que não fazem o menor sentido e alguns que até soam como uma memória distante. Ninguém sabe ainda dizer cientificamente por que sonhamos. Há uma teoria de que criamos uma simulação da vida real, como uma forma de resolução de problemas baseada em estratégias emocionais de sobrevivência. Eu gosto dessa teoria.
Não costumo lembrar dos sonhos que tive e, ultimamente, mal estou conseguindo dormir direito. Não me orgulho disso, porque para levar a vida que levo, ter um sono regulado e em dia é essencial. Mas, às vezes, esse é o preço que se paga por querer fazer a coisa certa.
Só que essa noite, dormi tão bem que parecia que eu estava sonhando que estava dormindo bem. As tais das estratégias emocionais de sobrevivência. Quando olhei a hora no celular, até achei que fosse mais tarde. Só que a primeira coisa que percebi, antes mesmo de ver o horário, era que Jenni não estava mais ao meu lado e nem sinal de estar pelo quarto.
Me levanto e vou até o banheiro, vejo que sua mala ainda está ao lado da minha. Talvez ela tenha tomado banho, porque o banheiro estava molhado e é o que eu farei agora também. Não que eu estivesse com receio de que ela tenha fugido, porque sei muito bem que não teve motivos, mas confesso que fiquei surpreendido. Achei que ela estaria aqui. Eu gostaria que ela estivesse aqui.
É a primeira vez que sou deixado para trás depois de ter passado a noite com alguém. Já fiz o inverso e, mais uma vez, outra situação pela qual não me orgulho, mas aconteceu uma vez e outra. O dever chama e não dá para ficar revelando a minha dupla identidade para qualquer pessoa. O que implicava em inventar desculpas e maiores explicações, é complicado.
Só que Jenni não é qualquer pessoa. Ela nunca foi.
Ainda nem sei como explicar direito o que estou sentindo por ela, apenas tenho certeza de que sinto. Eu não estava procurando outro romance e nem esperava que fosse me sentir dessa maneira de novo tão cedo. Apenas aconteceu. Só que é algo novo, é diferente, parece mais forte, mais intenso. Eu deveria estar assustado, mas não estou. Porque, bem, nos conhecemos há poucos meses, mas parece mais. Tudo nela é muito vivo, é como se sua frequência fosse mais alta que a minha, uma carga elétrica de sensações que percorre todo o meu corpo quando estamos perto. É viciante.
Depois de ontem à noite, não vai ser fácil controlar tudo isso e, sinceramente, nem quero controlar. Foi tão real de uma forma que pareceu um sonho, só que muito melhor do que uma ilusão do meu cérebro dormindo, porque estávamos acordados, vivendo, respirando e sentindo cada centímetro um do outro.
Por isso, quando não a vi ao meu lado me senti... frustrado, talvez? Queria acordar e ela ser a primeira coisa que vejo. Mas é claro que até nisso Jenni tem o dom de ser misteriosa.
Coloco uma toalha na cintura e saio do banheiro no mesmo instante que ouço a porta do quarto abrir. Jenni entra por ela com as mãos dentro dos bolsos de sua jaqueta, o cabelo preso em um coque – que parecia ter brigado com o vento e perdido a luta. A ponta do nariz e as maçãs do rosto estavam levemente rosadas pelo frio. Que mulher linda. Ela facilmente é a pessoa mais bonita que eu conheço.
— Bom dia, dorminhoco — ela diz em um pequeno sorriso, graciosamente.
— Achei que você tinha me abandonado — cruzo os braços me recostando no batente da entrada do banheiro.
Seus olhos encontram os meus brevemente e ela estende o sorriso quando desvia o olhar.
— Já está sentindo a minha falta?
— Algo assim — respondo.
Jenni apoia o corpo na cômoda do meu lado oposto e cruza os braços.
— Só precisava sair para tomar um ar, caminhar um pouco. — Ela ainda não me olha, a atenção toda voltada para seus tênis.
— Você quer conversar sobre isso? — Aponto para nós dois.
Ela finalmente me encara por mais de um segundo.
— Precisamos?
— Se você quiser. — Dou de ombros.
Ela fica em silêncio e eu também.
E lá estão elas mais uma vez, as malditas camadas protetoras de Jennifer Reed.
— Eu não vou falar sobre sexo com você seminu em uma toalha. — Ela comprime os lábios, segurando um riso.
Um me escapa pelo nariz.
— Algumas horas atrás isso não parecia ser um problema.
Jenni balança a cabeça e respira fundo. Não tem mais um riso para conter, pois ele foi embora.
— Dick, eu... — ela faz uma pausa, passa a mão pelo rosto, não me olha nos olhos, e lá vamos nós. — Me desculpa, eu não deveria... Quero dizer, não me arrependo de nada, não mesmo. Só não posso transformar isso em outra coisa.
Ela sabe se esconder, mas nesse exato momento, não está dando muito certo.
— Só pra eu entender uma coisa — dou alguns passos em sua direção — você não pode ou você não quer?
Espero que ela me olhe de volta, mas não o faz. Parece até que, se nossos olhares se encontrarem, eu poderia enxergar toda a verdade por trás do que quer que ela esteja escondendo.
— Eu não posso. — Sua voz soa baixo, mas sinto que nós dois a escutamos em alto e bom som.
— E por que, exatamente? — Dou mais um passo para frente.
Jenni abre a boca para responder, mas a fecha, os olhos ainda baixos, e volta a cruzar os braços em um aperto maior.
— Simplesmente não posso, Dick. — Finalmente responde, mas sei que não é isso que ela gostaria de dizer. — Eu queria muito, mas...
— Mas por que, exatamente? — Insisto, interrompendo-a.
Ela descruza os braços em um suspiro e passa as mãos pelos cabelos.
— Já conversamos sobre isso — seu olhar volta a encontrar o meu e tento manter o contato para que ela não o desvie. — Minha vida ainda está correndo perigo e provavelmente continue por um bom tempo. Fora isso, eu... Eu tô no meio de uma bagunça de merda. Não posso me envolver com alguém nesse caos todo.
— Você sabe que quero te ajudar, mas você precisaria me deixar fazer parte. — Agora estou de frente para ela, poucos centímetros nos separam. — Não quero e nem vou pressionar nada, nunca. Mas uma coisa quero que saiba, eu gosto de você, gosto mesmo. Acho que me deixei ser atraído desde a primeira vez em que nos vimos quando você apareceu lá em Heaven naquela noite. E tanta coisa aconteceu desde então, e sei que estamos em busca de respostas semelhantes. E também sei que, atrás dessa muralha que você ergueu, tem uma bondade enorme transbordando no seu coração, isso você não esconde, é uma das várias coisas que admiro em você.
Fico surpreso comigo mesmo, pois quando menos percebo, abro uma vulnerabilidade, mas sei que valeria a pena.
Jenni tenta a todo custo esconder a expressão em seu rosto, mas consigo sentir que não é isso que quer. Não sei o que torna tão difícil, mas quero muito descobrir.
— Me desculpa, eu deveria estar preparada pra esse tipo de conversa. A culpa é minha por ter deixado acontecer — seus ombros cedem, mas todo o resto não, e em seus olhos, vejo uma certa angústia. Estou confuso. — Você não faz ideia de como eu queria que as circunstâncias fossem outras, que tudo fosse mais fácil... Porque caramba, Dick, você é o cara mais incrível que já conheci na vida.
Eu realmente estou muito confuso. Vamos precisar ser específicos.
— Primeiro, não existe um culpado aqui — começo o meu raciocínio, quero ser o mais claro possível. — Segundo, que tipos de circunstâncias estamos falando? Porque essa é a vida que temos, é a vida que tenho, mas sinto que não é disso que você tem medo. E terceiro, sei que é recíproco e você está tentando esconder, só que ficou meio tarde demais pra isso, não acha? — questiono, deixando um sorriso sair, não é a intenção de colocá-la contra a parede para conseguir respostas. Só gostaria de entendê-la um pouco melhor.
Observo o seu rosto, ela parece sem palavras, talvez não esperasse que eu fosse tão direto. Jenni respira fundo mais uma vez e alterna o olhar entre mim e o chão.
— Eu amo e odeio ao mesmo tempo como você consegue me ler tão bem. — Ela diz, por fim.
— Você não é tão difícil de decifrar, só complica um pouco.
— Mas você não me conhece totalmente. — Parece o começo de uma revelação, acho que as camadas podem cair. — Talvez você me odeie.
— Isso é verdade — me aproximo mais, nossos braços se encostam — mas eu jamais te odiaria.
— E como você tem tanta certeza disso? — Agora seus olhos estavam fixos nos meus, sem oscilarem.
— Apenas tenho — dou de ombros e minhas mãos tomam a liberdade de segurar o seu rosto. — Por acaso, você é uma serial killer?
Ela ri e nega com a cabeça.
— Uma terrorista?
— Não.
— Faz parte de alguma seita maligna secreta que maltrata crianças e animais?
— O que? Não.
— Então por que eu te odiaria?
Ela suspira outra vez e suas mãos passam pelos meus braços. Nos aproximo mais quando uma das minhas mãos descem por suas costas.
— Você é bom demais pra mim. — Seus braços envolvem a minha cintura em um abraço.
— Não, eu não sou — viro o seu rosto gentilmente para olhá-la nos olhos mais uma vez. — Mas tentarei ser, porque você merece nada menos que isso.
Jenni não responde, em vez disso, faz algo melhor. Ela leva seus lábios aos meus em um beijo lento e repleto de vontade. Antes, ela parecia querer fugir, mas quero mostrá-la que vale a pena ficar.
Nosso beijo se intensifica e meus dedos deslizam por sua nuca enquanto minha outra mão a puxa para mais perto, como se ainda fosse possível, colando totalmente os nossos corpos.
— Se vamos fazer isso — ela diz ainda com os lábios nos meus — precisamos desacelerar algumas coisas.
Nos afasto bem pouco para conseguir encará-la.
— Acho que começamos da forma errada então.
— Não isso — ela se apressa em dizer e suas mãos sobem pela minha nuca — porque, meu Deus, foi tudo tão bom que eu estaria sendo hipócrita de dizer que não quero. Mas digo da parte sentimental e, não me entenda errado, eu gosto muito de você, Dick. Só não quero estragar o que já temos.
Agora sou eu que respiro fundo e ela não está errada. Talvez eu esteja, pois ela disse várias vezes que não podia, mesmo querendo o contrário. Sou eu quem está correndo os riscos aqui e, sinceramente, estou disposto a enfrentá-los e descobrir os motivos.
— Tudo bem — digo, olhando-a nos olhos. — Podemos fazer isso. Como eu te disse, posso esperar. Que tal ser um dia de cada vez?
— Isso eu posso fazer.
— Então temos um combinado.
A puxo de volta para a minha boca e voltamos a nos perder na nossa própria sincronia. É incrível o efeito que ela tem de me fazer sentir como um adolescente, como tudo fica mais intenso, mais vivo. Seus beijos até parecem de outro mundo. Será que somos tão desafortunados assim? Parece tão complicado e descomplicado ao mesmo tempo. É uma certeza dentro da incerteza.
Até que somos interrompidos pelo toque do meu celular. Demoramos alguns segundos para aceitar que precisávamos nos soltar.
— Seu celular sempre acaba com o clima. — Reclama Jenni e eu não poderia concordar mais.
— Alô? — Atendo e ouço um ambiente barulhento de fundo.
— Detetive Grayson? — Uma voz feminina questiona do outro lado da linha.
— Sim, quem fala?
— Sarah Brown, comissária do departamento policial de São Francisco. Conversamos ontem à noite na mansão dos Klein. Apenas para te informar que o advogado de Martin Goldman já se encontra por aqui. Sei que ele está sob sua investigação pelo departamento de Gotham e ele será transferido, mas caso já queira interrogá-lo, eles estão disponíveis. Ele também vai precisar responder pelo ocorrido de ontem para a nossa equipe.
— Claro, chego em alguns minutos. Obrigado, comissária.
Encerro a ligação e passo uma das mãos pelo cabelo. É uma merda estar de volta à realidade.
— Realmente, já começamos a viver um dia de cada vez. — Digo a Jenni que me encarava esperando maiores explicações. — Vamos lá perguntar para aquele imbecil por que ele quer te matar?
— Não consigo imaginar um convite mais romântico que esse. — Ela diz voltando a me abraçar.
Não sei quão devagar ela quer levar tudo isso, mas espero que seja o mais lento possível para que eu possa tê-la comigo por muito, muito tempo.
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