01. Observando As Estrelas
05h26
4 de agosto
Washington D.C.
"A vida é uma corrida contra o relógio e nós sempre estaremos atrasados."
Ouvi meu pai dizer para minha mãe em uma discussão que tiveram quando eu tinha 10 anos de idade e isso nunca mais saiu da minha mente. De tempos em tempos, aquela frase ecoava na minha cabeça nos piores momentos possíveis.
Jonathan e Maia Reed definitivamente não eram os melhores pais do mundo. Ambos se esforçavam para não terem essa fama, mas estavam longe de serem o suficiente. Não estou dizendo que eles não amavam a mim e a Bruno, pois éramos o único laço familiar que tinham, já que os dois não possuíam irmãos, os pais já haviam falecido e os poucos primos e tios, estavam muito distantes.
A nossa relação sempre foi complicada, pois quando éramos crianças, passávamos mais tempo com a nossa babá do que com eles. Meus pais eram cientistas físicos muito bem-sucedidos graças ao legado do meu avô por parte de pai, Kennedy Reed, um dos físicos mais famosos e premiados do país.
Eles se conheceram na faculdade e em pouco tempo, já estavam noivos, muito bem empregados e realizando projetos inimagináveis para jovens daquela idade. Um pouco de privilégio? Com certeza. Mas não tiro o mérito de que meus pais foram as pessoas mais inteligentes que conheci em toda a minha vida.
Eu cresci com a ferida de ter os pais ausentes, por mais que nunca tenha me faltado nada mais. Estudei nas melhores escolas, tinha as melhores roupas, os melhores sapatos, os melhores brinquedos, mas não tinha o que muitos amigos tinham: uma família normal.
Bruno também se sentia da mesma forma, mas sempre foi mais otimista do que eu. Tentava a todo custo me fazer bem e demonstrar que ele sim estava presente para mim quando eu precisasse. Talvez fosse algo que irmãos mais velhos faziam, além da irritação gratuita todos os dias, o lado protetor sempre prevalecia. Temos 7 anos de diferença de idade, mas as vezes, sinto que parece até mais pela maneira em que ele acabou se responsabilizando por mim na ausência de nossos pais.
Apesar do buraco que o senhor e a senhora Reed haviam deixado no meu coração, eu sempre quis impressioná-los, os fazerem me notar de alguma forma. Tirava as notas mais altas nas matérias de física e química no colégio, criava algo mirabolante para apresentar nas feiras científicas, as quais eles nunca iam, até me matriculei na mesma faculdade em que se formaram. Posso dizer que nutri um amor induzido pelo mundo da física, mais especificamente pela astronomia. Eu queria viajar no espaço e trazer alguma descoberta e mostrar a eles quão boa eu poderia ser, que merecia ser uma Reed cientista.
Quanto mais o tempo passava, mais eu vi que nada daquilo adiantaria, pois eles sempre estavam muito ocupados descobrindo sei lá o quê a anos-luz de distância no meio do universo e nunca veriam o que estava perto, a poucos metros, para ser mais específica.
No entanto, nem tudo na minha vida foi uma grande frustração. Havia outro sonho dentro de mim, um sonho que me ajudou muito, além dos anos de terapia, a superar pouco a pouco essa dor; a música.
Desde pequena era algo que me fascinava e acabou sendo uma válvula de escape para meus problemas internos. Acredito que meus pais se aproveitavam desse hobby para encher a minha cabeça e não pensar muito na falta deles.
Aprendi a tocar piano aos 8, violão aos 9, bateria aos 10, guitarra e baixo aos 11, perdi a vergonha de soltar a voz aos 12, violino aos 13. Meu repertório só foi aumentando conforme os anos, mas eu sempre enxergava isso como um segundo plano. Tinha um objetivo e precisava continuar o legado da minha família. Meu irmão já estava cursando a faculdade de física e tinha planos para continuar nessa carreira, até ser tão bom quanto nossos pais.
Quando fiz 19 anos, Bruno já estava em seu terceiro curso e trabalhando na NASA com eles, seguindo a tradição Reed. Eu estava prestes a iniciar o segundo ano da faculdade, mas eu não estava feliz e estava cansada de me sentir testada, talvez mais por mim mesma do que qualquer outra pessoa.
— Você tem certeza disso, filha? Eu gosto da ideia, ficarei feliz se você estiver. — Meu pai me olhou com um sorriso sereno no rosto, que mais soava como um alívio, na noite em que disse a ele que iria trancar a faculdade de física e... cursar música. — Você sempre teve esse dom, eu amava ouvir você tocar piano. Isso me acalmava.
Lembro que aquela afirmação havia me pegado de surpresa. Meus pais foram em apenas dois concertos em que me apresentei e eu apresentei muitos. Imaginei que, talvez, ele tenha ouvido alguns ensaios pela casa, quando estava.
— Jenni, quero que saiba que nós te apoiamos. Adoraríamos vê-la conosco descobrindo estrelas por aí, mas se esse é o seu sonho, então o torne real. — Minha mãe me abraçou no dia seguinte quando soube da notícia pelo meu pai.
Me esforcei muito para não aparentar emotiva, mas ambos pareciam que tinham tirado uma tonelada de suas costas, o que era muito estranho. Não queriam que eu seguisse os mesmos passos? Com Bruno, a reação foi totalmente o contrário, até parecia uma obrigação o meu irmão estar com eles. Prometi a mim mesma que nada mais daquilo me importava, que iria reescrever minha própria história longe da sombra de Jonathan e Maia Reed. Na semana seguinte, já estava em Berkeley, na Califórnia.
Só que não era tão simples quanto eu imaginava. Tinha conseguido uma carta de crédito para arcar com os custos da faculdade, mas logo no primeiro dia descobri que meus pais já tinham deixado tudo pago. Não era isso o que eu queria, eu precisava viver a vida por minha própria conta e risco, mas claramente eles não deixaram naquela hora.
Os anos se passaram e, por mais que eu tivesse tentado me desvencilhar das asas deles, sempre davam um jeito de me manter por "perto", leia-se financeiramente falando. Isso soava a coisa mais fútil na minha cabeça, mas eu queria muito viver uma vida onde não existia o privilégio em ser uma Reed.
Quando eles morreram, parecia que o mundo tinha sido congelado. Foi tão repentino que demorei dias para acreditar. O velório passou e mesmo assim eu ainda achava que era uma grande mentira. Não havia derramado uma gota de lágrima sequer. Estava em total estado de negação. Meus pais foram vítimas de um massacre que ocorreu em uma convenção de cientistas na cidade de Nova York. Ninguém sobreviveu, nem mesmo os assassinos que tiraram suas próprias vidas após o atentado.
Tudo isso veio à tona como um tsunami na minha cabeça há três dias quando Bruno me ligou, e pediu para que eu viesse a Washington o quanto antes possível, para falarmos de alguns documentos que nossos pais haviam deixado com ele. Não disse exatamente do que se tratava e que também não poderia falar sobre pelo telefone.
Instantaneamente um nó, do tamanho do planeta Terra, se formou na minha garganta, trazendo de volta todos aqueles sentimentos ruins que vivi um ano atrás quando eles se foram. Depois daquele trágico dia, demorou cerca de duas semanas para meu mundo desabar em um dilúvio intenso. Sentia raiva pelo acontecido, queria me vingar, queria respostas, mas o que mais me machucava era a culpa. Uma culpa sem sentido, mas ela estava ali e pesava muito. Parecia que eu tinha falhado em algum momento com meus pais e não percebi.
Uma semana antes do dia mais triste da minha vida, eles estavam comigo e Bruno na minha formatura na Universidade de Berkeley. Parecíamos uma família feliz. Olhando para trás, aquele dia soa como uma utopia depois de tudo o que aconteceu.
Passei a vida os querendo por perto e quando se foram, percebi que nunca saberiam o quanto significavam para mim, mesmo com todos os problemas e a relação estranha que tínhamos. Eu deveria ter tentado mais, deveria ter insistido em seguir o mesmo caminho. Meu sonho era ser igual a eles e, agora, eles estavam mortos.
Assim que cheguei em Washington e encontrei o meu irmão, ele me entregou uma carta assinada pelo meu pai. Ao lado do meu nome no envelope, havia um desenho de um pássaro azul.
Quando eu era criança, ele me deixava recados em um post-it grudado na porta do meu quarto. Sempre finalizava com esse desenho. Em um deles, me explicou seu significado:
"Você deve estar se perguntando o porquê desses pássaros. Eles simbolizam uma bússola, significa que, não importa quão longe eu esteja, sempre acharei meu caminho de volta para casa, para vocês. Te amo. – Papai"
Era uma maneira de tentar parecer presente no meu dia a dia, mas conforme eu fui crescendo, a quantidade de post-it foi diminuindo.
E ver aquele desenho estampado em uma carta do meu pai morto, doía demais. Com certeza, um tiro doeria menos.
Quando abri, vi apenas um parágrafo de desculpas e um pedido no final, que só fui entender depois de tudo o que Bruno me explicou nas horas seguintes. Eles sabiam que iriam morrer naquela noite. Por que não tentaram impedir? Isso não entrava na minha cabeça.
"Jenni, sei que é tarde para dizer isso, mas me desculpe. Falhei com você e com o seu irmão. Eu só quero que você seja feliz, tenha a vida que merece ter. Se permita a viver isso. Você é a nossa estrela mais brilhante. Você é a nossa esperança. Por favor, não abandone Bruno, pois ele nunca te abandonará. Ele sempre será o que nunca conseguimos ser para você: uma família. Não deveria te pedir nada, pois não mereço, mas o seu irmão sim. Faça por ele, por vocês. Talvez você não entenda isso agora ou talvez nunca chegue a entender. E tudo bem. Seja qual for a sua decisão, saiba que sou o pai mais orgulhoso do universo e talvez de todos os outros também. Te amo muito. – Papai"
Era a quinquagésima vez que eu lia aquela carta quando o alarme do meu celular disparou me despertando dos devaneios. O relógio marcava 06h30. Fiquei uma hora olhando para o teto pensando no furacão de coisas que habitavam a minha cabeça nesse momento. No minuto seguinte, meu celular apita novamente com uma mensagem de Bruno:
Encontramos o lugar.
Venha para cá quando puder.
Que ótimo. Além de todos aqueles sentimentos estarem mais vivos do que nunca na minha pele, eu aceitei fazer uma viagem interdimensional. Seja lá qual for o objetivo final dos meus pais, eles poderiam ter escondido isso em algum lugar aqui, nesse mundo, nessa realidade.
Tomei um banho, peguei a minha bolsa e sai o mais rápido que pude do hotel, chamando o primeiro taxi que avistei na rua para seguir rumo a NASA.
Bruno havia me explicado dois dias atrás sobre a Ata Houdini. Era um plano de viagem intergaláctica, a princípio. No entanto, nossos pais codificaram as informações dessa Ata para ser, na verdade, uma viagem entre dimensões. Meu irmão e sua equipe estão há um ano decodificando cada detalhe do documento em busca de uma resposta que faça sentido para uma mensagem assinada por todos os cientistas mortos naquela noite na convenção.
"Observando as estrelas, para além delas. Observando o céu, para além dele. O universo é uma possibilidade."
Essa era mensagem que abria a Ata e, também, a mensagem que estava bordada nos jalecos dos falecidos cientistas.
A partir dessa simples mensagem, Bruno conseguiu entender que aquele plano não era sobre enviar uma sonda espacial em busca de vida em outra galáxia. Era um plano em busca de uma solução em outro universo. Meu irmão sabia dos estudos dos nossos pais, suas teorias e tudo aquilo que eles não poderiam trazer à tona, como muitas outras coisas descobertas pela NASA.
Afinal, o mundo como conhecemos, já é caótico o suficiente.
— Senhorita? — O taxista me chamou me despertando dos meus pensamentos. — Te trouxe para a NASA e você já chegou na lua?
Ele me arrancou um pequeno sorriso no canto da boca que há dias não se formava ali. Paguei o motorista e saí andando pela entrada com a minha credencial.
Assim que o elevador chegou no andar da sala da equipe do meu irmão, abri a porta e vi a sala cheia, com pelo menos 12 pessoas espalhadas pelo local. Algumas concentradas em frente à um computador, outras rabiscando algo na lousa e outras duas abrindo algumas caixas de papelão.
— Jenni! — Bruno veio me receber com um abraço. Quando me soltou, vi que seu rosto estava cansado, os olhos afundados em olheiras. Com certeza, ele estava há dias sem dormir. — Você chegou cedo.
— Você disse para vir assim que possível. — Respondi forçando um sorriso e percebendo que quase todos concentraram a atenção em nós. Voltei a olhar para ele e perguntei:
— Então, para onde eu vou?
Um homem de cabelos ruivos atrás de Bruno, e que parecia ter a mesma idade do meu irmão, logo respondeu sem muita cerimônia terminando de abrir a caixa de papelão e pegando um... gibi? E olhando para mim, ele disse:
— Você vai para Gotham City.
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