Culpa dela!

O bordado de rosas e pequenas folhas enfeitavam a barra da toalha de linho que caia sobre a mesa de forma impecável. Clycia se sentou ao lado esquerdo do irmão e a direita de Aaron. A loba parecia feliz com aquilo enquanto Iani estava aliviada por ter alguém entre as duas. Se possível, seria melhor ainda se ambas não precisassem conversar, mas como se o destino quisesse contrariar seus pensamentos não demorou muito para Clycia lhe chamar a atenção.

—Seu colar é lindo Iani, onde comprou, foi no mundo humano?

—Isso? Bom, foi Aaron que me deu...

—Que sortuda! — um brilho estranho iluminou os olhos da loba junto de um sorriso — Mas imagino que trouxe algo da sua casa, certo?

—Na verdade não...

—Não? Nem uma lembrança? Uma recordação?

—Eu não tinha muitas coisas, e também não imaginei que iria morar aqui.

—Entendo.

—As melhores lembranças são aquelas que guardamos em nossas memórias — a voz de Aaron preencheu o ambiente — E imagino que Iani deva ter ótimas recordações.

A jovem se limitou a sorrir, não era como se a vida no vilarejo fosse fácil e cheia de alegrias, na verdade, as únicas lembranças boas eram com a senhora Lara. Internamente Iani se perguntou como ela deveria estar agora.

—Concordo Aaron, alguns momentos são preciosos de mais para simplesmente serem esquecidos.

Todos olharam para Clycia sabendo o que sua insinuação escondia. Desconfortável, Iani se limitou a bebericar o líquido rosa na xícara de porcelana. A ideia de que Aaron e a irmã de Dave já foram comprometidos era bem desconfortável.

—Mas ficar pensando de mais no passado não é bom — Dave tomou a palavra quebrando um pouco do clima tenso — O que passou passou, o importante é o futuro.

—Você está certo irmão — Clycia arrumou a postura enxugando uma gota invisível de chá nos lábios com o guardanapo — E falando no futuro, já pensaram no que fazer caso uma guerra se aproxime?

Iani parou a fatia de bolo no ar.  A geleia roxa escorria pela massa deixando cair uma gota sobre a toalha.

—Do que está falando irmãzinha?

—Pelos céus Dave, não precisa esconder isso de mim, qualquer um sabe que a presença de um humano por aqui é sinônimo de mal presságio.

—Clycia — os olhos verdes ficaram sérios — Isso não é assunto para agora.

—Como não?! — ela olhou ao redor — Os mais interessados já estão reunidos aqui —  Clycia ignorou Dave —  Imaginem o que acontecerá quando outros povos descobrirem que uma das três alcateias decidiu acolher um humano!

Iani sentiu o estômago doer.

—Sabemos que será um enorme problema caso tentem nos atacar, e mesmo com nossa aliança não temos garantia alguma de que o terceiro nos ajudará — ela fez uma pausa — Isso se Maron não decidir se voltar contra nós.

—Já chega! — Dave bradou fazendo a bebida tremer dentro das xícaras — Tanto Aaron quanto eu estamos mais do que cientes dos detalhes, agora se contenha a desfrutar do chá da tarde com assuntos mais relevantes para a ocasião Clycia!

Com o cenho franzido a loba se colocou de pé encarando Dave com um brilho enfurecido nos olhos.

—Não se esqueça de quantos perdemos na grande guerra, e tudo por causa deles!

Ela mirou toda a raiva para Iani que estremeceu na cadeira.

—É bom rezarmos aos céus para que aquele banho de sangue não volte a acontecer! Ainda mais por causa dela e sua maldita espécie!

—Clycia!

Dando as costas para o irmão Clycia saiu pisando duro largando os três na mesa. Iani sentia como se o mundo fosse desabar em suas costas. De cabeça baixa ela apertava a saia do vestido quando um toque quente surgiu no seu ombro.

—Iani... você está bem?

Sem forças para encarar os olhos dourados a garota se colocou de pé, encarou o luz dos vitrais contendo ao máximo as lágrimas que enchiam seus olhos.

—Peço desculpas por tanto desconforto — o líquido quente escorreu pela sua bochecha — Vou deixá-los comer em paz...

—Iani...espere...

Antes que Aaron pudesse impedi-la a jovem humana já havia alcançado a porta e saído correndo pelos corredores.

—Iani!

—Espere!

Com o eco das vozes dos dois alfas a suas costas Iani continuou correndo sem rumo algum passando por outros lobos que a encaravam com curiosidade. Mas isso não importava. Não importava os olhares tortos, os murmúrios,  ou as vezes que ela tropeçou no longo tapete vermelho graças aos olhos embaçados. Iani apenas sentia todo ódio e a raiva chegarem até ela como um golpe certeiro, vindo das pessoas, das plantas, das paredes e até mesmo dos olhares sem vida das tapeçarias e pinturas espalhados pelo caminho. Era algo insuportável e angustiante que desabava com tudo em cima dela. 

Desde que chegou nesse mundo Iani sabia que muitos não gostavam da sua presença pelo fato de ser humana, isso já estava tão claro quanto água, mas imaginar que uma  uma guerra poderia acontecer pelo simples fato de ela estar ali fazia com que seu peito se contorcesse de forma dolorosa. Iani não queria carregar a culpa de uma tragédia, e imaginar o sorriso doce de Aiko desaparecendo em um corpo sem vida fazia com que ela desejasse ter morrido pelas balas do caçador. 

—I.iani?

Assusta, ela olhou para cima encontrando o rosto de Mary próximo ao seu. Sem saber para onde ir ela havia corrido em linha reta parando em uma espécie de despensa cheia de prateleiras com potes de vidro e sacos de pano.

—Você está chorando! — a garotinha entrou em desespero — Se machucou?! Onde dói?! Quer um copo d'água?! Preciso chamar alguém?! — as mãozinhas foram até a cabeça — Vou avisar o senhor Aaron e o senhor Dave!

—Espere Mary!

Antes que a garotinha pudesse sair Iani segurou sua mão a impedindo. 

—Não foi nada...

Com a mão livre ela enxugou o rosto forçando um sorriso.

—Eu estou bem... 

—Nunca vi alguém que está bem chorar assim...

Iani mirou o chão, mesmo tentando se conter ela não conseguia impedir as lagrimas de caírem. 

—Senhora... 

A pequena se aproximou.

—Não quer mesmo que eu chame alguém?

Iani balançou a cabeça negando, ela se sentia incrivelmente mal, primeiro pelo almoço, depois o vestido, o chá da tarde e agora por estar desabando na frente de uma criança. Aquele era um dos piores dias da sua vida.

—Está assim por causa do vestido? — os olhinhos da garota continuavam preocupados — Não precisa ficar assim, vamos dar um jeito! Eu prometo!

Com um pouco de alegria no peito Iani sorriu, um sorriso fraco que fez com que Mary se aproximasse por conta própria a abraçando. De início Iani ficou surpresa, não imaginava que aquela garotinha tímida e assustada pudesse tomar uma iniciativa como aquela, mas de qualquer forma, ela aceitou o gesto de bom grado se segurando para não desabar de vez sobre a criança. 

—Obrigada Mary... 

As duas ficaram assim por um tempo, tempo o suficiente para Iani se acalmar clareando um pouco os pensamentos.

—Está melhor?

As duas se afastaram.

—Sim, mas confesso que preciso ficar um pouco sozinha...pode me ajudar a ir para o quarto?

—É claro! Vêm, segura minha mão!

Fazendo o que a menininha pediu, Iani foi guiada de volta aos aposentos. Por um instante ela se sentiu receosa em encontrar com Aaron ou Dave, no momento ela queria ficar sozinha, precisava ficar sozinha e organizar os pensamentos antes que eles acabassem com ela, mas por sorte, não havia ninguém quando pisaram os pés no cômodo vazio.

—Vou buscar um chá calmante para você.

—Eu agradeço Mary...mas vou beber a água que está aqui na jarra mesmo...

Chega de chá por hoje. Ela pensou enquanto se acomodava em meio aos travesseiros. 

—Tudo bem, vai precisar de mais alguma coisa? É só falar que eu busco!

Iani sorriu.

—Obrigada pequena,  no momento eu agradeço se puder dizer a qualquer um que venha me procurar que preciso ficar um pouco sozinha.

—Deixa comigo! — Mary levou uma das mãos até a testa como se fizesse uma continência — Não vou deixar ninguém entrar nesse quarto!

Cheia de energia a pequena saiu pela porta deixando Iani sozinha.

—Você não existe Mary... 

Com o corpo pesado Iani se deitou em meio as cobertas enquanto mirava o teto. Os pensamentos em sua cabeça não paravam. Porém, ao se lembrar do rostinho preocupado de Mary, além de um lobinho rolando despreocupadamente na grama alta, ela conseguia sentir uma pontinha de paz e alegria. Uma fresta de luz em meio a escuridão da noite. 

Que, sem que ela percebesse, crescia aos poucos ao seu redor.