2: Estância Helen e Joey
"É nosso dever defender e preservar o meio ambiente,
criado e entregue por Deus para desfrute e uso comum
de todos os seres vivos, essencial à sadia qualidade de vida."
(Marcos Alves de Andrade)
Yarra Valley, 6 de janeiro de 2026
20h32
Depois de quase 24 horas de viagem, incluindo os dois voos, finalmente chegamos a Melbourne. Senti quase como se estivesse em casa ao ver um rosto conhecido entre as pessoas no aeroporto quando desembarquei.
Tio Joey parece um pouco castigado pela vida. Não me refiro ao fato de ele estar mais velho do que a última vez que o vi pessoalmente, anos se passaram, claro que estaria com uma aparência mais envelhecida. Está mais magro e abatido, coisa que não deu para perceber muito pelas chamadas de vídeo, provavelmente esse estado dele se deve à morte de tia Helen, apesar de já ter mais de cinco anos. Os olhos dele não apresentam a felicidade de antes.
— Tio Joey! — disse Isabella, animada, largando as malas e abrindo os braços.
Joey, um senhor de meia-idade, alto, de porte médio e olhos azuis, retribuiu com um sorriso e a abraçou de forma acolhedora.
— Deixe eu olhar para você — disse ele, afastando-se um pouco para olhá-la, enquanto Isabella inclinava o rosto para o lado, em uma feição que era uma mistura de falsa timidez e travessura. — Quanto tempo faz? Sete anos?
— Exatamente, uns sete anos, na nossa querida Itália, um pouco antes da pandemia.
Os olhos do homem nublaram por alguns instantes, mas em seguida ele forçou um sorriso para a garota à sua frente.
— Você está uma moça. Pronta para casar.
— Ah, tio Joey, não venha o senhor também. Já chega a minha família, eles têm mania de casamento — disse ela, fingindo estar zangada.
Isabella apresentou a equipe a Joey, e eles seguiram o estancieiro até o estacionamento. O vinicultor tinha uma van — o que era muito útil, por conta da pequena pousada que tinha, assim poderia levar os hóspedes em passeios pela região.
O trajeto do aeroporto até Yarra Valley, que é no interior de Melbourne, leva em torno de trinta minutos. Essa região circunda o rio Yarra e por isso recebeu o nome de Vale do Yarra. Isabella aproveitou o percurso para tomar as suas primeiras impressões do lugar e aprender um pouco mais sobre ele.
Durante o percurso até Yarra Valley, deu para conhecer um pouco da região. Fiz algumas perguntas sobre os prédios que chamaram mais a minha atenção, e o tio Joey ou o Sr. Guerra me respondia. Não é a primeira vez do meu professor em Melbourne, então ele já está familiarizado.
Passamos por Royal Arcade, que é um prédio muito bonito e antigo, do século XIX, dentro existe uma galeria comercial com lojas lindíssimas. Se são realmente lindíssimas ou não, eu não sei, mas foi o que o tio Joey disse, ele costumava ir lá com a esposa.
Passamos pelo teatro e pelo museu da região; o principal shopping da cidade, Melbourne GPO; a St Francis Church, que é a igreja católica mais antiga do estado de Victoria, construída algumas décadas antes do Royal Arcade.
O Centro tem prédios antigos e modernos. Meus pais visitaram uma vez tio Joey e amaram. O Sr. Dante Camponelle, por conta da arquitetura moderna; e a Sra. Beatrice Camponelle, por causa das construções históricas. Por ser uma viagem muito cansativa para as minhas irmãs, que na época ainda eram crianças, eu fiquei com elas na casa dos meus avós.
Há muitos restaurantes e bistrôs, pareceram bem agradáveis. Meu foco, quando puder retornar ao Centro, será experimentar as maravilhas da culinária local. Isso certamente é um dos pontos fortes em viajar. Por conta do meu tio que é gastrônomo, estou acostumada a experimentar pratos diferenciados e eu adoro isso.
Teremos um mês para explorar o lugar como pesquisadores, cientistas, mas também como turistas. Não pretendo ficar com o nariz enfiado no habitat dos cisnes, voltada apenas para a exploração da flora e da fauna. Gosto de pesquisar, gosto da natureza, mas não faço o tipo nerd antissocial. Amo interagir, fazer novas amizades. E é exatamente o que pretendo ter nessa viagem.
Depois que nos afastamos do Centro, tio Joey quis saber um pouco sobre a nossa pesquisa. Sobre a relevância de estudarmos os cisnes negros e coisas assim.
— Okay, eu entendi que vocês vieram estudar o cisne negro por aqui ser o único habitat natural dele — repetiu Joey. — Mas ainda não ficou claro o que ele tem de diferente que não possa ser estudado através do branco, além da plumagem e do bico — indagou. Não parecia fazer sentido para ele pessoas atravessarem o mundo só para estudarem uma espécie que, aparentemente, existia no próprio país também, apenas com pequenas diferenças.
O Professor e a Isabella fizeram menção de falar ao mesmo tempo, então a aluna fez sinal com a mão, dando a vez ao professor, afinal, ninguém melhor do que ele para explicar.
— A questão é que o cisne negro apresenta traços de linguagem com algumas distinções em relação ao cisne branco — respondeu o professor.
— Espera, linguagem? — interrompeu o vinicultor.
— Todos os animais possuem uma linguagem. — Eduardo se antecipou, tirando os olhos do celular pela primeira vez durante o trajeto. — Seja através de sons ou expressão corporal. Com o cisne não é diferente.
— Sim, exatamente... Há o relinchar do cavalo, o mugido dos bovinos, a dança das abelhas, a exibição do pavão — complementou Isabella.
— Certo... Eu sei que os animais se comunicam entre si... Mas é que eu nunca pensei nisso como linguagem exatamente. Sempre pensei na linguagem como uma coisa apenas humana — justificou Joey.
— Mas o ato de se comunicar é linguagem. Se os animais se comunicam, eles têm uma linguagem — Adriana entrou na conversa, até então, estava atenta à paisagem, olhando pela janela, enquanto Andrew usava o ombro dela como travesseiro, já que tinha adormecido.
— Exatamente — disse o professor.
— É verdade. E tem bicho que se comunica mais do que gente. O Volk mesmo é um exemplo — disse Joey.
— Volk?! — Isabella e Adriana disseram ao mesmo tempo.
— Ihhh!!! Vem daí, Isa... — disse Adriana, fazendo uma alusão à crença popular antiga de que quando duas mulheres falavam ao mesmo tempo uma palavra, significava que uma das duas estava grávida ou que em breve ficaria.
— Sai fora... — retrucou Isabella, de imediato. — Primeiro que meus pais me matariam, principalmente os meus avós. Segundo, é impossível, você sabe muito bem disso.
— Impossível até o momento... né, minha filha? Algo pode acontecer nessas férias — provocou Adriana.
— Não estou crendo que você está falando isso — disse Isabella, claramente envergonhada e dando um beliscão no braço da amiga, que estava no lado esquerdo da van, enquanto ela estava na fileira da direita, mas como as duas estavam no assento do corredor, teve acesso ao braço da vizinha.
— Aiii!!! Tá doida, garota?!
Com o grito da irmã, Andrew despertou assustado.
— O que foi, gente? O que foi isso?
— Meninas, já chega! O que é isso? Vou ter que colocar vocês no cantinho do pensamento? — disse o Sr. Guerra, interferindo no atrito entre as alunas.
— Culpa dela, essa maluca que só fala besteira — defendeu-se Isabella, enquanto Adriana ria de seu constrangimento.
— Besteira mesmo, pois ninguém vai engravidar na minha estância, principalmente a Bella, que está sob a minha responsabilidade — disse Joey, incisivo.
— E sob a minha também — acrescentou o professor.
— Sim, o Sr. é o responsável perante a faculdade, e eu perante a família — Joey respondeu, demarcando o território de cada um.
Enquanto isso, Isabella fazia sinais para a amiga, como quem diz: você me paga, aguarde. Andrew, percebendo serem as implicâncias corriqueiras entre a irmã e Isabella, voltou a fechar os olhos, dando de ombros. Eduardo já tinha voltado ao celular, pois o assunto de seu interesse já tinha acabado.
— Então, tio Joey. Quem é Volk? Ele não fala? — Isabella voltou ao assunto, claramente queria tirar o foco da brincadeira que Adriana fizera.
— É um rapaz que vive na floresta. — Os olhos da jovem se abriram como pratos. — O que ele menos faz é usar a linguagem. Mas ele sabe falar sim. Só não faz muito uso disso.
— Por quê? — quis saber, a curiosidade crescendo.
— É uma longa história.
Isabella abriu a boca na intenção de continuar perguntando, mas foi interrompida pela reação entusiasmada do professor, que tinha acabado de ver um canguru na beira da pista.
O assunto mudou, e um pouco depois, eles chegaram à Estância Helen e Joey. Uma parte da propriedade era dividida entre criação de cavalos e acomodações para hóspedes, e a outra parte era destinada ao vinhedo.
Joey e a esposa construíram a casa com oito quartos. A intenção era que fossem ocupados pelos filhos e que também tivesse quartos de hóspedes, mas os filhos não vieram. Helen era estéril. Só descobriram após anos de tentativas frustradas.
Tentaram a adoção depois de mais de dez anos de tratamento para engravidar, mas a mãe das crianças que eles tentaram adotar, um menino e uma menina, reapareceu e conseguiu recuperar os filhos na justiça. Eles ficaram arrasados com isso e acabaram não querendo tentar uma nova adoção, preferiram se dedicar aos animais. E para não ficarem sozinhos em uma casa com tantos quartos, acrescentaram mais alguns e transformaram o lugar em pousada.
Isabella saiu da van e se alongou um pouco. Estava muito cansada da viagem. O sol estava a pino, também era verão na Austrália, as estações coincidem com as do Brasil. Apesar do calor, havia também um vento fresco. Ela respirou fundo para sorver o ar puro de Yarra Valley. De repente, um uivo foi ouvido ao longe. Lobos?, ela indagou a si mesma. Claro que não, cães selvagens, provavelmente.
A propriedade é maior do que eu imaginava. Há cavalos de diferentes raças. Depois pretendo interagir um pouco com eles para conhecê-los melhor e iniciar um vínculo de confiança. Minha preferência é pelos Mustangs, por serem mais selvagens e velozes, mas escolherei para montar aquele que me escolher também. A conexão precisa ser das duas partes.
Hoje, na verdade, não exploramos muito o lugar. Estávamos cansados da viagem, então basicamente fomos acomodados em nossos quartos, tomamos um banho, almoçamos, depois tio Joey nos mostrou tudo na pousada.
Está praticamente vazia, há apenas o casal Stencer, Sr. Anthony e a Sra. Chloe, eles são ingleses e sempre vêm passar férias na Estância, desde a época da tia Helen. E o Pierre, um senhor aparentando já ter passado dos 60, pensei que fosse francês, mas ele é italiano. Tio Joey explicou que quem tocava a pousada era a esposa, ele cuidava dos cavalos e das uvas. Com a morte dela, a pousada foi deixada um pouco de lado.
O casarão não é suntuoso, é simples, em um estilo mais rústico, porém aconchegante. Piso de madeira, imensos tapetes por toda parte, sofás de couro. Os quartos são de tamanho médio e com varanda: dois no primeiro andar, dez no segundo e mais dois no terceiro.
Não são muitos funcionários. Tem a Matilda Gonzales, uma porto-riquenha de uns 35 anos, viúva e com um casal de filhos. A menina aparenta ter uns 7 anos, e o menino uns 4 ou 5, ambos com a pele e os cabelos mais claros dos que os da mãe. A viúva é uma mulher atraente, uma beleza sensual simples e natural, com seus cabelos negros e ondulados um pouco abaixo da altura dos ombros, pele bem morena e grandes olhos cor de mel. Percebi o professor espichando os olhos para ela, mas pode ter sido apenas impressão minha (eu e minha mania de shippar, já shippei a Drica com o Ed, mas não rolou).
Matilda comanda a cozinha. Victoria, a jovem esposa de William Stevens, um ajudante do tio Joey, é responsável por cuidar dos quartos. Mas como o serviço na cozinha aumentou por causa da nossa presença, a moça foi chamada para ajudar. A jovem Sra. Stevens não aparenta ter mais do que 25, é bem magra, o que lhe confere ares de pré-adolescente. Tem uma beleza mais básica, comum. É bem branquinha, cabelo castanho-claro e olhos azuis, mas não muito chamativos. O marido é alto, corpulento, os olhos também azuis, porém um tom mais claro, e o cabelo... eu diria que loiro-médio. Provavelmente já passou dos 30. Eles têm um filho. O menino parece mais com o pai e deve ter uns 5 ou 6 anos. Isso talvez signifique que ela é um pouco mais velha do que aparenta, a não ser que tenha engravidado antes dos 20.
Há também os irmãos Sullivan, Matt e Malcon. Os irmãos são parecidos, ambos têm cabelo castanho-claro, altura aproximadamente de 1,80, porém um tem olhos verdes e o outro olhos avelãs. São jovens, mas não perguntei as idades, acredito que tenham entre 20 e 23. Eles chegaram no ano anterior para a colheita e ficaram, ajudando com uma coisa ou outra. Fazem de tudo um pouco.
Nenhum deles se parece com o rapaz que vi quando meu pai estava falando com o tio Joey. Estava escuro, mas deu para perceber os cabelos longos, também aparentava ser mais forte, maior. Talvez tenha cortado os cabelos, emagrecido, não sei. Mas não importa, nem sei por que estou escrevendo sobre isso.
O período de maturação das uvas é de janeiro a março. Em breve outros trabalhadores chegarão para a colheita deste ano. Alguns vêm em família e trazem os filhos. Por isso, tio Joey disse que nessa época sempre contrata a Srta. Miller para dar aula de reforço para os pequenos.
Matilda, o casal Stevens e os irmãos Sullivan moram na propriedade. Na estância, há um alojamento para o período em que trabalhadores são contratados para a colheita de uvas, e que está sendo usado apenas pelos irmãos. Há mais três pequenas casas para funcionários. Uma está sendo usada por Matilda, a outra pelo jovem casal Stevens, e a terceira está vazia.
Tio Joey e William dão conta dos cavalos e monitoram o vinhedo. Matilda e Victoria cuidam da pousada. Os irmãos ajudam com tudo o que é preciso. E isso é tudo. Apesar que tio Joey mencionou que tem ajuda extra com os cavalos, mas acho que se referia a um veterinário que deve vir de tempos em tempos. Talvez seja ele o tal rapaz que vi.
Após conhecer meu pai, tio Joey seguiu as orientações dele e adaptou a estância para ser sustentável. Construiu um sistema de coleta e tratamento da água da chuva, a água que cai da calha recebe um tratamento básico. Após isso, a água pode ser utilizada para irrigar as plantas, limpar o piso, os carros e coisas do tipo. Outra adaptação foi com a eletricidade. A energia solar fotovoltaica faz parte das fontes de energia renováveis. Os painéis solares captam os raios solares e os transformam em energia elétrica. É assim que a pousada é iluminada.
Tudo isso nos foi informado enquanto éramos levados de cômodo em cômodo (a parte sustentável eu já sabia, claro). Hoje conhecemos, de fato mesmo, apenas o interior da pousada. As dependências mais próximas, nós olhamos da varanda, é possível ter uma visão dos estábulos, dos currais, do alojamento e das casas ao longe. Como estávamos cansados da viagem, uma melhor exploração da propriedade ficou para amanhã.
Tio Joey cogitou contratar mais alguém para ajudar na pousada, mas eu e o resto da equipe nos comprometemos a manter a limpeza dos nossos quartos em dia, assim não será preciso contratar outra pessoa só por nossa causa. É o mínimo que podemos fazer, já que tio Joey não quis receber nada, insistindo que somos seus convidados. Para reduzir o trabalho, eu e Adriana dividimos um quarto, Andrew e Eduardo o outro, e o professor ficou sozinho. Assim ocuparemos apenas três em vez de cinco. O Sr. Pierre está no primeiro andar, e o casal Stencer no terceiro.
Quando tivemos uma noção geral da propriedade, fomos descansar. Descemos antes das 19h para jantar, após um pouco de conversa, cada um se recolheu ao seu aposento. Desde quando chegamos ao aeroporto, eu e a equipe só conversamos em inglês.
Todos parecem dormir cedo nesta área (dormem com as galinhas, como diria minha vó Eveli). De qualquer forma, ainda que não fosse assim, me despediria de todos após breve socialização, eu e Drica não conseguimos dormir direito à tarde, só um breve cochilo. Em vez de tentar descansar, desfizemos nossas malas e passamos boa parte da tarde arrumando as nossas coisas. Por conta dessa falta de descanso, agora estamos exaustas. Mas antes de dormir, quis registrar tudo nesse diário de viagem enquanto está fresco na memória. Essa foi a recomendação da minha prima San (mania de escritor, achar que as ideias vão escapar). Ela me orientou a fazer descrições, registrar impressões, fazer um apanhado geral de cada dia. Para demonstrar gratidão pelo presente, estou me esforçando para deixar o relato em dia. Só que acho que perdi um pouco o foco na descrição de hoje, já escrevi bastante sobre as pessoas que vivem aqui na estância. Talvez eu esteja sendo um tanto... bisbilhoteira? Não sei se essa é a melhor palavra.
Drica já apagou, estamos dividindo a mesma cama, é enorme, de madeira, caberia fácil três de nós aqui. Parece feita não só para receber um casal, mas os filhos também. Bem, eu ia encerrar o relato de hoje, mas acabei de ouvir um barulho e vou dar uma olhada, acho que é algo nos estábulos. Talvez o relato de hoje não esteja no fim, vamos ver.
Isabella Camponelle
Do alto de sua janela, Isabella viu que um homem de longos cabelos loiros estava no curral com os cavalos, e uma sensação estranha inundou o seu corpo. Um descompasso inexplicável no órgão que deveria apenas se preocupar em bombear seu sangue. É ele.
Olá, Lobinhos...
Espero que estejam gostando.
Próximo capítulo na semana que vem.
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