Rastro
O cheiro do Reino dos Mortos vinha de uma tenda de especiarias onde um homem negro quase todo coberto comprava algo embrulhado em várias camadas de tecido. O comerciante, desconfiado, olhava para os lados enquanto recolhia uma pequena algibeira de tecido que, pelo tilintar suave, julguei estar cheia de moedas. Uma quantia deveras generosa.
O comprador enfiou o embrulho em um bolso oculto da veste de tecido ordinário e saiu andando a passos firmes, se misturando à multidão. Eu poderia interrogar o comerciante para obter informações, mas preferi ir atrás do cliente suspeito. Segui-o enquanto ziguezagueava através da multidão. Ao mesmo tempo, refleti sobre o tipo de pessoa que ele era. Estava muito bem coberto, o que significava desejo de ocultar a identidade. Era mais alto que a média dos homens nativos dali e também mais encorpado. Conjecturei que talvez fosse uma espécie de guerreiro.
O homem entrou em uma rua um pouco mais vazia, dirigindo-se a uma área muito conhecida pela nobreza da vizinhança. Embrenhou-se em uma ruela mais apertada e completamente vazia. Vendo que estávamos sós, comecei a andar alguns centímetros acima do chão, pisando no ar como se fosse sólido. Era bom andar daquela maneira, pois os passos não produziam barulho e o alvo não notava a presença.
Só que, para minha surpresa, suas passadas ficaram estranhas e velozes, denunciando que ele de alguma forma sabia que era seguido. Foi o maior indício de que não era um homem comum, mas de fato, alguém treinado.
Eu deveria alcançá-lo rápido se quisesse extrair alguma informação.
Aproveitei nossa localização entre dois prédios inabitados e corri no ar até alcançar o homem. Ele tentou se virar e me atingir, mas no ar eu era mais alta que ele e pude facilmente aplicar um golpe que o derrubou no chão. Rapidamente pulei sobre seu corpo, que era bem maior que o meu, e fiz com que o chão cobrisse suas mãos e pés, prendendo-o no solo. Ele tentou gritar, mas manipulei o ar em sua boca para servir de mordaça. Era apenas ar, mesmo assim ele sentia como uma bola de ferro.
Rapidez era importante, afinal logo alguém passaria por ali.
— Muito bem. — Falei. — Não quero machucar você, tenho apenas duas perguntas. Responda-me de maneira objetiva e sincera que não lhe machucarei.
O homem parou de se debater, o que foi um bom sinal.
— Ótimo. — Tentei lançar um sorriso amigável.
Deslizei a mão sobre a boca dele e fiz com que o ar deixasse o estado estagnado para que o homem pudesse falar.
— Concordo. — Pronunciou a palavra com forte sotaque e depois começou a mascar o nada porque sentia a boca seca.
Fiquei surpresa. Eu não precisava fazer uma das perguntas pela qual tinha lutado. A pele negra, lábios carnudos, traços do rosto e sotaque denunciavam que ele não era natural de Bharat.
— Você é escravo. — Presumi com tristeza.
Ele não respondeu, apenas virou o rosto para o lado, envergonhado. Sem cerimônia apalpei suas partes íntimas apenas para confirmar o que eu já deveria saber. Ele não era qualquer escravo, era um eunuco, portanto, tinha contato com o harém do imperador Akbar.
Ao sentir meu toque indiscreto o homem fechou os olhos com força e fez uma careta que deixava claro o quanto aquilo era humilhante.
Aqueles homens eram feitos reféns no Sudão e levados para um mercado onde clientes sem escrúpulos os compravam. No caso do grande imperador, era comum ganhar pessoas como presentes e aquela provavelmente era a situação do homem que vitimei. Por incrível que pareça, trabalhar no harém era ter ainda menos sorte na vida. O indivíduo se tornava escravo de luxo que para não ter relações com as mulheres do imperador, tinha seu órgão sexual decepado.
Apesar de apiedar-me dos escravos, eu não tinha muito tempo para pensar sobre a condição do eunuco. No entanto, eu sabia que era contra as regras ele estar fora do palácio.
— Minha pergunta é simples: Onde conseguiu as moedas? — Fui direta.
O homem finalmente abriu os olhos e me encarou com desconfiança.
— Você é uma Feiticeira. — Decretou com desconfiança.
— Não, sou uma Bruja. — Expliquei. — Uma bruxa de fogo que domina quatro elementos e que não tem muito tempo, então me diga, onde conseguiu aquelas moedas?
— Não as roubei. — Ele se defendeu.
Inspirei fundo e expirei com força.
— Eu não o estou acusando de roubo, mas é suspeito que um guarda do harém esteja passeando disfarçado por aí e comprando coisas que valem muitas moedas. — Cheirei o ar mais perto dele e senti o aroma do que estava no pacote que ele tinha guardado pouco antes. — São especiarias.
Franzi o cenho. Porque aquele homem se envergonhava de comprar especiarias?
— Você vai me denunciar. — Murmurou como um resmungo.
Sem paciência, resolvi encurtar a história.
— Estou no rastro da desgraçada que matou minha filha. Ela é má e vem de um lugar além de sua compreensão. Meu problema não é com você, senhor eunuco. Aquelas moedas tinham o cheiro fétido do inferno de onde aquela mulher saiu. Então seja gentil e me conte onde conseguiu as moedas, ou serei obrigada a bater em você até que fale. — Tentei não parecer abalada ao falar da morte de Lwana, pois a falta de firmeza não ajuda em batalha. Mas meu coração se encheu de dor ao lembrar minha filha.
— Uma concubina do imperador... — o homem começou a falar um pouco hesitante. — Me pediu para comprar ingredientes para um feitiço de amor, pois deseja se tornar favorita.
— Entendo. — Respondi simplesmente.
Era do conhecimento geral as intrigas que havia no harém. Todas queriam ser as favoritas do imperador, e se tivessem sorte se tornariam esposas, mas isso não era fácil. Ser favorita significava privilégios, então a disputa era acirrada. As mulheres geralmente tinham apenas uma chance para se deitar com o imperador e dessa noite deveriam extrair um filho. Se a concubina queria se tornar favorita, então era provável que sua chance estivesse próxima.
Curioso era o fato de ela desejar fazer um feitiço de amor, uma prática muito incomum por ali.
— Feitiço? Começo a entender os motivos de sua furtividade.
— Ela prometeu que, caso se torne esposa, fará de mim um homem livre. — Falou com a voz carregada de esperança e aquilo me cortou o coração.
Um plano tão falho provavelmente não o faria livre. Talvez, e apenas talvez, faria dela uma esposa. E pensando bem, aquela falha estava a meu favor.
— Ela nunca conseguirá, mas eu posso fazer de você um homem livre... Qual seu nome? — Comecei a negociar.
Ele me analisou desconfiado.
— Você fará feitiçaria com meu nome. — Respondeu receoso.
— Ora, minha paciência! Se eu fizesse feitiços não estaria nessa situação. — Olhei para o céu de maneira involuntária, como se pedisse inconscientemente ajuda aos deuses.
— Mazabut, é meu nome. — Revelou.
Eu não sabia se era real, mas eu só precisava de algum nome pelo qual chamá-lo.
— Posso fazer de você um homem livre, se você me ajudar a chegar à mulher que lhe entregou as moedas. — Continuei.
— E como você pode me fazer livre feiticeira? — Mazabut questionou desconfiado.
Olhei para os lados conferindo se ainda estávamos sozinhos. Tendo confirmado a desertidão do lugar, abri minhas asas de vento rapidamente, deixando-o profundamente espantado. Logo as recolhi para não dar chances ao azar.
— Posso voar. — Soprei as palavras no rosto dele.
Senti sua energia menos hostil, o que significava que ele realmente considerava minha oferta. Saí de cima e o soltei, dando-lhe um voto de confiança. Mazabut se levantou devagar e um pouco cambaleante pelos golpes que levou. Lançou-me um olhar ferido e suspirou profundamente olhando para o céu em seguida.
— E que vida eu, um homem emasculado, posso ter fora do palácio? Sei que pelos caminhos da concubina não serei livre, mas poderei gozar de privilégios. — Expôs seu raciocínio.
Considerei bem aquelas palavras antes de responder:
— Não sei, diga-me você. — Retruquei.
Ele bufou, mas ignorei e prossegui em um argumento que julguei ser convincente.
— A vida é mais que a união carnal, Mazabut. A liberdade tem sabor ímpar. Poder viajar, conhecer lugares, rever a família, aprender e escolher seu próprio caminho. É primordial. Você sabe que sim. Todos têm ambições, que não podem ser alcançadas se estão presos. Nenhum privilégio é melhor que a liberdade. Estar em uma gaiola de ouro jamais será melhor que subir no alto de uma montanha e gritar para o mundo. — Discursei com todo meu coração. — Então como primeiro sinal da liberdade vindoura diga-me você.
Cabisbaixo, Mazabut ouviu meu discurso sobre liberdade. Era sincero. Ele ganharia mais se pudesse escolher o próprio caminho. As prisões douradas podem ser cheias de regalias, mas ainda são prisões. Nada substitui a liberdade de um homem.
— Você está certa, Feiticeira. — Falou ainda sem olhar para mim.
Sim. Eu estava. Eu, que já passara por tantas coisas, apesar de muito jovem tinha a mesma visão sobre o mundo que um comum de cem anos.
— Isso significa que vai me ajudar? — Peguei em seu braço e mirei meu olhar para cima, no fundo de seus olhos tristes.
— Sim.
Um rompante de alegria tomou meu ser. Finalmente eu tinha um rastro a seguir, e tudo funcionaria muito bem.
— Como pretende entrar no palácio? — Sua face tinha uma expressão preocupada.
Eu não podia entrar usando meus poderes de Bruja. Causaria muito furdunço. Então eu iria do jeito mais demorado.
— Não se preocupe Maza. Encontrar-te-ei lá. — Afirmei cheia de convicção.
— Não é tão fácil entrar, apenas as mulheres destinadas ao imperador tem acesso ao harém. — Ele advertiu coçando a nuca.
Lancei para Maza um sorriso maroto e acertei um murrinho fraco em seu abdome rijo.
— Eu soube por alto que a Sultana Valide compra moças exóticas para o filho dela. — Falei de maneira despretensiosa.
— Sim, ela compra. — Confirmou confuso, perdido de minha clara linha de raciocínio. — Ele gosta de moças belas e talentosas. Ser exótica é oportuno para quem deseja visitar o leito do imperador.
— Pois bem, Maza. Será preciso apenas parar de colorir meus cabelos e terei passagem garantida para o harém. — Afirmei e com certo divertimento assisti ele me olhar confuso.
Mazabut me olhou com dúvidas, mas haja vista que o plano não exigiria muito esforço de sua parte, não era preciso se preocupar.
— Se você diz, Feiticeira. — Gesticulou com as mãos espalmadas em minha direção, como quem lava as mãos de um ato. — Posso seguir meu caminho sem que seja surrado outra vez?
— Evidente. — Saí da frente dele e acenei largamente com o braço para que ele passasse. — Faça boa viagem.
Mazabut concertou a roupa no corpo para que ficasse completamente coberto e seguiu um caminho. Ouvi perfeitamente quando falou consigo:
— Veremos se conseguirá, Feiticeira. Se conseguir, voltarei para o Sudão.
Sorri internamente porque já tinha um plano.
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Pequena curiosidade: Jalal-ud-Din Akbar é uma importante figura na história da Índia por ter apaziguado disputas étnicas. Era muçulmano, mas estrategicamente diplomático e permissivo. Também ficou conhecido pelo harém numeroso que, reza a lenda, tinha milhares de mulheres.
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