Passagem pelas montanhas
Esperei que Borjan dormisse e covardemente esgueirei-me para fora da cama. Caminhei pelo ar até chegar ao meu quarto, onde abri um guarda roupas e encontrei as vestes das quais precisava. Prendi na cintura a inseparável corrente com punhal e vesti-me toda em negro. Não coloquei chapéu, pois a capa tinha capuz. Peguei algumas moedas que estavam em uma trouxinha no fundo do móvel e saí do quarto pela porta que dava no corredor.
Dirigi-me à biblioteca onde escrevi uma longa carta para vovô, pedindo que cuidasse melhor de Borjan e agradecendo por tudo. Escrevi uma carta para Ana dizendo que a amava e que me orgulhava de ser mãe de uma criatura tão fantástica, também pedi desculpas por não poder vê-la. Para Borjan deixei apenas um bilhete com uma frase de três palavras.
Sequei a tinta das cartas, arrumei-as sobre a escrivaninha e parti.
Não me dei o trabalho de andar até a floresta. Subi até o sótão e saltei da janela que lá havia. Voei por todas as redondezas do castelo procurando rastros de Katuryna, mas não encontrei, então resolvi investigar em um raio mais amplo, e foi por esse motivo que voei até as montanhas. Quando cheguei mais perto das formações rochosas percebi um padrão diferente nas árvores da floresta.
Desci para investigar e constatei, com muita surpresa, que estavam encantadas. Alguém lançara um feitiço sobre elas. Segui o rastro do encanto e descobri que formava um círculo em torno da propriedade Merak. Entendi então, que a impossibilidade de ataque dava-se porque alguém traçara uma espécie de círculo mágico em torno da propriedade.
Se Katuryna viera até ali, ela com toda certeza não conseguira passar, mas era provável que estivesse atrás de uma maneira de quebrar o encanto. De toda forma, eu precisava encontrá-la, colocar fim em sua existência. Se ela esteve ali, alguém certamente a viu e, se queres saber o que visita a floresta, pergunte a quem nela habita. Mas a floresta se encontrava em estranho silêncio e eu não sentia a presença de animais. Ridículo, pois entre os caules daquelas árvores habitavam centenas de lobos.
Pousei entre as árvores, já quase na montanha, e não vi sinal de vida. Estranho, de fato. O ar estava denso e frio, o silêncio era esmagador, há quanto tempo os animais sumiram? Para onde foram? Soltei um grito no intuito de ver se algum pássaro voava ou se ouvia algum pio, mas não ouvi nada. E nada vi.
Comecei a correr por toda a extensão apenas para confirmar que não era um delírio, não havia animal algum na floresta. E nem rastros, pois se estivessem mortos o cheiro de suas carcaças impregnaria o ar.
Só havia então uma explicação lógica: os animais subiram os montes.
Voei em direção aos Carpaţi mais próximos, procurando algum sinal de vida, entretanto a noite estava muito nublada e não era possível enxergar do céu. Sem saída e curiosa, aterrissei sobre um trecho de pedra nua e muito íngreme.
Pela posição da lua, eu sabia que era já quase madrugada. Subi alguns passos agradecendo a Jaci por todo aquele treinamento tenebroso que deixou-me fisicamente capaz de vencer grandes desafios. Um trecho escuro de floresta estava logo à minha frente. Era um desafio subir no escuro, mesmo assim eu não acenderia meu fogo. Chamaria muita atenção. O Fogo da Lua não chegava a ser nem mesmo próximo de uma opção, uma pequena chama iluminaria um raio de pelo menos um quilômetro. Enfrentei o escuro usando dos outros elementos para me guiar.
Dois minutos de uma cansativa caminhada entre as árvores e comecei a ouvir um som distante. O primeiro sinal de vida, mas era um sinal muito estranho. Se eu não estivesse enganada, aquele som era de um violino. Uma lindíssima e doce melodia de um violino, que vinha do leste, de perto do rio. Embrenhei-me mais entre os caules e segui a melodia que vinha de algum lugar dos montes.
Andei por minutos, intimamente encantada por aquela música, e a cada passo que eu dava mais alto o som se tornava. A escuridão começou a diminuir quando o número de árvores raleou. A canção estava bem mais alta e se misturava com o som da correnteza das águas do rio.
Surpreendi-me ao ver que, logo em frente, em uma área aberta, onde o chão era pura rocha, estava uma figura peculiar que não tocava um violino, mas uma flauta. Uma longa flauta coberta de musgo verde fluorescente sob a luz da lua. A própria figura emitia uma iluminação leve que a distinguia no escuro da noite. Para meu espanto, logo à esquerda da criatura, uma fila de animais seguia em linha reta até um portal azul aberto na rocha da montanha. Era como se a criatura os guiasse para um esconderijo.
O ser podia ser hostil, mesmo assim saí de meu esconderijo e, voando com minhas asas de fogo, aproximei-me. Inabalável, a criatura continuou a tocar sua melodia na flauta.
A um metro e meio de distância, vi detalhes da figura que não poderia ser definida exatamente como transmorfa ou como humanóide. Tinha cabeça de bezerro, com três olhos ornados por longos cílios. Os três fechados. O corpo misturava o lupino e o humano, sendo a parte superior mais humana e a parte inferior mais lupina. Tudo coberto por muitos pêlos.
Eu almejava conversar com ele, então esperei que terminasse seja lá o que fosse. E demorou consideravelmente para que as dezenas de animais entrassem pelo portal. Quando finalmente findaram o movimento, o bezerro-lobo abriu os olhos. Dois deles ficavam na posição normal e o terceiro no centro da testa. As íris tinham cores diferentes. O do meio da testa era azul como a pedra da alma que um dia eu tivera. O olho direito era vermelho como sangue e o esquerdo negro tal qual a noite.
A criatura fez uma reverência curta antes de falar:
— Posso ajudá-la, Lira?
Perguntei boquiaberta como ele sabia meu nome. Ele sorriu antes de responder:
— Apenas duas Brujas de fogo vivem sobre a terra, uma está em Avalon e a outra procura por um mal que vaga sobre o mundo.
— Você esperava por mim? — Questionei ao me levantar do chão onde estava sentada.
— Sim, esperava. Permita que me apresente, sou Lupvittel, guardião da floresta Merak. — Fez uma reverência curta.
— Sou Lira Merak, possível herdeira do castelo. Então... Para onde foram os animais?
— Para uma dimensão mística no coração da montanha. — Respondeu com simplicidade.
— Por que os tirou da floresta?
— Para que assistam a reunião dos lobos e acredito que o evento é de seu interesse. A inimiga que procuras passou por aqui. — Deu-me a informação que eu buscava.
— E seguiu para onde? — Reagi afoita pronta para seguir Katuryna.
— Não sei dizer, mas os lobos sim.
— Quem fez o círculo de proteção? — Indaguei com as mãos na cintura.
— A Fada. Ela sempre usa o portal da montanha quando quer conversar com seu avô, mas dessa vez veio em silêncio acompanhada de mais vinte encantrizes. Elas fizeram o círculo de proteção. Le Fay, então, conversou com os lobos e partiu. — Lupvittel começou a andar em direção ao portal azulado e eu o segui.
— O que são encantrizes? — Eu nunca ouvira aquele termo.
— São mulheres que fazem encantos. Algumas são conhecidas como "fada madrinha". Pouco tempo depois de sua saída de Avalon houve uma grande reunião de encantrizes, e durante dias de experimentação testaram formas de bloqueio contra criaturas mágicas mal intencionadas. De alguma forma elas conseguiram criar tipos de escudo. Os novos escudos d'O Pomar contam, em sua composição, com fórmulas do célebre alquimista de nome Arthur. Já o encanto que cerca a propriedade Merak é diferente daquele, e funciona de uma maneira específica: membros da família têm passagem livre; humanos comuns têm passagem livre; seres mágicos podem entrar apenas se forem convidados pelos membros da família.
— Meu avô sabe dessa informação? — Questionei surpresa.
— Não. — Respondeu incisivo.
Lupvittel entrou no portal e eu o segui. Assim que adentrei no corredor iluminado por uma luz amarelada, o portal atrás de mim sumiu, deixando-me desconfiada.
— Não se preocupe — a criatura me tranquilizou. — Ele se abre sempre que for necessário, mas creio que não quererá usar esse portal após a reunião.
Ele não me deu tempo de questionar. Apenas pôs-se a andar através do corredor cilíndrico e iluminado. Tudo à nossa volta era terra e luz, apenas. E já ao final do corredor, ouvi uma algazarra de sons.
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