O caminho de fogo
Interessante como, com o passar do tempo, os sons mudam.
Quando comecei minha meditação, os moradores da ilha estavam agitados, entretanto aos poucos, com a chegada da noite alta, a calmaria tomava conta das moradas, dos bosques e dos pomares. Avalon adormecia enquanto eu andava acompanhada por Meva que segurava firme minha mão.
Pelo cheiro e pelos sons eu distinguia os lugares nos quais passávamos. A temperatura ambiente também era um ótimo indicativo, já que mais ao centro da comunidade, o clima era abafado, afinal a centena de árvores gigantes não deixava o vento circular livre.
Levamos quase uma eternidade para cruzar o centro das habitações porque meus passos eram lentos e hesitantes. Chegamos a um pomar que não era curto. Eu podia sentir o aroma característico que as frutas exalavam nos ares da noite. Meva respirava de maneira descompassada e pesada. Aquilo não combinada com seus modos habituais, sempre muito suaves e gentis. Mais que cansada, ela parecia ansiosa.
Sua mão suava e escorregava um pouco. Presumi que era resultado do calor emanado por minha pele.
Colocamo-nos a subir em alguma direção.
O som do medalhão estava mais claro e alto. Era reconfortante. E familiar também, como se tia Ana cantasse para mim. Talvez esse fosse o motivo de ela nunca ter me falado sobre o encanto do medalhão, eu já sabia.
O trigésimo tropeço da noite me arrancou de meus pensamentos. No fundo eu sentia que Meva era como uma âncora me mantendo presa ao solo. Demorou um pouco para distinguir esse sentimento, mas ficava cada vez mais certo que era assim. Outros passos na subida e o escuro de minha pálpebra foi iluminado. Como se nos aproximássemos de uma luz forte.
O som tornou-se tão nítido que ousei falar com Meva.
— O sol já nasce? — Questionei.
— Não, Lira. Não ainda. É uma pergunta muito específica, aconteceu alguma coisa? — Indagou com estranhamento.
— Não, é apenas que...
Não terminei de falar porque instantaneamente minhas pálpebras se tornaram iluminadas demais, a ponto de eu enxergar o vermelho na pele.
Soltei a mão de Meva e perdi um pouco do equilíbrio, pois estávamos em uma região muito íngreme. Esfreguei as pálpebras com as pontas dos dedos, na esperança de que aquilo fizesse o fenômeno parar, mas o calor da mão apenas fazia clarear mais a pele que tapava os olhos.
Ficou insuportável.
Abri os olhos, incomodada pela claridade, e em primeiro lugar vi apenas o escuridéu. Olhei para todos os lados e não enxerguei mais que o escuro. Onde estava Meva?
O som da lira soou mais alto e instintivamente segui em sua direção. Tropecei uma, duas, três vezes antes de cair de joelhos no chão e rasgar o vestido em uma pedra pontiaguda. Levantei-me com alguma dificuldade e continuei seguindo na penumbra.
— Esse caminho devia ser pelo menos iluminado. — Resmunguei enquanto mancava.
Senti o sangue escorrer de meu joelho. Passei a mão sobre a ferida e estava demasiado quente. Limpei a mão no vestido e bufei. Um vestido a menos.
Estava já sem paciência para tanta enrola, não precisava mais agir com parcimônia, então simplesmente comecei a correr sem me importar com os riscos. Uma mega dose de coragem que veio acompanhada de uma super dose de adrenalina.
Correr no escuro era assustador e libertador. Comecei a me empolgar e soltei dois gritinhos de alegria.
— Seria melhor se o caminho fosse iluminado! — Berrei enquanto dava um giro de braços abertos.
Foi aí que um caminho de fogo surgiu repentinamente. Começava em meus pés e seguia na direção de um enorme espelho que refletia as labaredas. Não era reto, na verdade ele se elevava e depois descia.
Sem temer as consequências, com uma segurança sobrenatural, comecei a correr pelo caminho de fogo. Ele não me queimava e era tão firme quanto qualquer solo que eu pisasse.
Aos poucos a escuridão se dissipou e pude ver tudo à minha volta.
Para minha surpresa, o caminho no qual eu corria era elevado do chão. E logo minha corrida me levou até um lugar familiar, que eu visitara poucos dias antes. Era a clareira, onde Arthur me levara. E o espelho que refletia as chamas, na verdade era a água do lago que eu via imóvel. De dentro da água vinha o som do medalhão.
Apressei a corrida e rapidamente chequei à água.
Sem pensar nas consequências, me lancei do final do caminho dentro das águas do lago, e vi, lá no fundo, meu medalhão brilhar envolto em fogo. Tomada por aquela coragem singular e ignorando o peso de minhas roupas, nadei até o fundo do lago onde agarrei meu medalhão e o puxei. Estava preso em um tipo de estranha raiz.
Puxei com mais força, desesperada, pois meu corpo quente consumia todo o ar muito mais rápido do que deveria. O medalhão não queria se soltar.
De repente senti como se serpentes subissem pelos meus braços e se enrolassem, me puxando para baixo. Arrisquei a sorte e mentalizei firme o fogo saindo de meu pulmão, andando por minha corrente sanguínea e se materializando em minhas mãos.
Para minha surpresa, funcionou perfeitamente.
Graças ao fogo de minhas mãos tudo ficou mais iluminado e pude ver que correntes de água e areia me prendiam ao fundo do lago. Com as mãos agarrei as sólidas correntes e as forcei até se romperem. Já estava a tempo demais debaixo da água.
Agarrei o medalhão com firmeza e nadei para a superfície. No entanto, uma nova corrente agarrou meu pé direito e subiu por minha perna, me forçando a nadar com mais força. Debati-me, sentindo o ar ficar cada vez mais escasso e o desespero aumentar quando outra corrente imobilizou meu pé esquerdo. Ambas as correntes imobilizaram minhas pernas, me impedindo de subir, mesmo assim, em um ato desesperado, movimentei os braços.
Não havia saída. As correntes me puxaram até o fundo. Acabaram os incentivos para lutar, então me entreguei. Observei o fogo e o medalhão em minhas mãos. Aos poucos as labaredas se extinguiam, junto com minha vida. Olhei para a superfície e vi a sombra de Meva, imóvel.
Fechei os olhos e me entreguei à morte fria na água gelada.
Senti minhas pernas se agitarem. Algo rasgou meu vestido e me deixou apenas de calçolas. Abri os olhos em um último esforço e os mirei na direção de meus pés. Com a visão embaçada, vi uma imagem iluminada em azul. Era um rapaz, de cabelos longos e ondulados, tronco forte e da cintura para baixo tinha cauda de peixe como um vidro azul e furta cor, porque todo seu físico era de água. Água firme e sólida.
Ele soltava minhas pernas.
Quando terminou de me soltar, enlaçou meu pescoço com ambos os braços fortes e colou sua boca na minha em um beijo que foi minha salvação. Ele respirava a água, mas mandava apenas o ar para meus pulmões. Mole demais para reagir, aceitei passivamente.
O homem tinha olhos azuis e cintilantes, como o restante de seu corpo. Enquanto eu os fitava, ele nadou levando meu corpo para a superfície.
Quando estávamos próximos à beira da água, sua cauda se transmorfou em pernas. Assim, ele parou de nadar e começou a andar, me levando nos braços para me depositar na beira do lago.
Eu quis agradecer, mas não tinha forças para falar. Ele sorriu e voltou para a água. Foi a primeira vez que vi um homem completamente nu, e nem era um homem de verdade, era um Elemental.
Naquele dia, fui salva pela própria água.
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