Novo dia, nova vida.
Ao acordar estranhei a textura da cama na qual estava deitada. O peso do cobertor também não era familiar. Na verdade, tudo estava diferente dos últimos tempos. O clima mudara, os sons do ambiente também. Patas de cavalo batiam no chão de forma ritmada, pessoas conversavam sobre assuntos triviais e mesmo que um pouco distantes, os sons eram bem audíveis para mim.
De qualquer forma eu era grata, pois a cama era confortável e o descanso fora bom. Eu não fazia a menor ideia do tempo que se passara desde que fechei meus olhos e caí em sono profundo, mas o sol já ia um pouco alto naquele dia.
Vesti roupas mais apresentáveis que minha fina camisola, ou meu jovem noivo Borjan seria acometido por uma morte precoce ao ver-me usando transparências logo pela manhã. Que medo ele tinha do pecado.
Abri a janela de meu quarto e olhei para a rua, onde duas matronas me encararam de imediato. Com olhos esbugalhados fizeram careta e começaram a cochichar.
— É um prazer ser sua nova fofoca. — Cochichei para mim mesma antes de inspirar forte o ar fresco da manhã. Tinha cheiro de orvalho.
Meu estômago roncou de fome. Esperava que Borjan tivesse bastante comida, pois apesar do fim do treinamento eu ainda comia como uma égua faminta.
Arrumei os cabelos em um coque simplório. Quando passei pelo corredor fiquei tentada a abrir as portas para encontrar o quarto de Borjan. Apesar da intensidade do impulso, não fiz o que desejava. Quem sabe o que se pode encontrar pela manhã?
Desci as escadas enquanto imaginava qual seria a direção da cozinha. Com certeza bem longe da sala, então quando cheguei ao último degrau segui para a direita e não para a esquerda onde ficavam os cômodos de convivência comum. Entrei por um corredor que deu em uma porta fechada. Uma porta de madeira escura e um pouco rústica. Sem pudores girei a maçaneta, disposta a preparar o meu próprio café da manhã.
Uma jovem serviçal já estava com as panelas no fogo e me olhou assustada quando entrei. A moça colocou a mão direita sobre a boca e arregalou os olhos. Nem me incomodei, aquela reação seria comum dali em diante.
— Oi, eu sou... — comecei a me apresentar.
— Merak. Lira Merak. — Disse com a voz abafada pela mão. — Não acredito que é você!
Analisei bem o rosto da moça que me encarava. Tentei descobrir se já a conhecia, mas não tinha lembranças de sua existência.
— Você não se lembra de mim, não é? — Ela disse com um tom que denotava decepção. — Sou Nica Jamita. Reconheci você pelos cabelos e pelos olhos. Sua tia Ana até cuidou de mim uma vez.
Tentei, mais uma vez buscar Nica em minha memória. Olhei para seus cabelos negros e o rosto pequeno, redondo, enfeitado por olhos tão azuis que eram quase brancos. Ela se virou para mexer algum tipo de carne e eu observei sua silhueta de tronco largo. Em um estalo milagroso me lembrei dela. Devia ter quase minha idade.
— Nica! Lembro-me de você. — Falei capturando sua atenção. Ela sorriu feliz. — Como estão seus pais?
O sorriso de Nica murchou e morreu.
— Eles faleceram. Toda minha família. — Respondeu.
— Sinto muito. — Falei sentida e meio sem ação.
— Não tem problema. — Disse. — Faz algum tempo. É por isso que eu trabalho na casa de Borjan, ele dispensou quase todos os antigos serviçais do velho Alioth e contratou a mim e Dionan, meu noivo.
— Ele tem apenas dois serviçais? — Perguntei surpresa.
— Ele não faz muita bagunça. — Ela sorriu. — Vive solitário. Fica mais fora de casa do que nela.
— Não posso acreditar. — Me mostrei um pouco incrédula. Borjan era jovem demais para viver como um velho ermitão.
— Pois acredite. — Ela sorriu.
Meu estômago roncou escandalosamente.
— Olha Nica, estou faminta, então se você não se importar lhe ajudarei no preparo do café da manhã. — Me ofereci quase como uma imposição.
— Claro que não me importo.
Nica me mostrou onde ficavam os ingredientes e os utensílios. Discretamente usei meus poderes para acelerar o processo de cozimento. Não tinha como ela descobrir a verdade a menos que visse fogo brotar de mim. Elizaberta não sentiria orgulho de minha atitude já que o cozimento no tempo certo, para ela, era essencial como respirar.
Quando terminamos o preparo do café da manhã, havia sobre a mesa da cozinha uma montanha de travessas abarrotadas de comida. Nica olhou assustada para o espantoso resultado final de nossa empreitada matinal.
— Senhor Alioth mal come um pequeno pão. — Comentou.
— Acostume-se. — Avisei. — Como muito.
Satisfeita e louca para colocar o garfo em trabalho, peguei três tigelas grandes e segui Nica que levava uma travessa para o salão das refeições.
— Você é forte. — Ela comentou.
— Sou saudável. — Retruquei e sorri de maneira enigmática.
Naquele momento eu sorria, mas durante o árduo treinamento que abrira meu apetite para todo o sempre minha expressão não era feliz. Terminamos de por a mesa e de imediato me sentei para comer. Nica já se preparava para se retirar quando segurei seu braço.
— Senhorita... — Ela claramente expressou dúvida acerca de minha atitude.
Ergui a sobrancelha em uma espécie de súplica e o clima estranho ficou mais palpável.
— Não sei quem é "senhorita", Nica. Tudo que sei é que não vou comer sozinha. Sente-se, por favor. — Pedi.
— Eu preciso trabalhar na cozinha. — O rosto dela estava um pouco vermelho.
Maldita hierarquia. Já estive na base dela e talvez a posição de vovô na sociedade me colocasse quase no topo, mas eu não gostava de estar em uma coluna de títulos, assim como não gostava de seguir as regras da instituição denominada sociedade.
— Eu ajudo você com o cumprimento dos afazeres domésticos, não se preocupe. — Prometi em tom cúmplice.
Ninguém me impediria. Sorri intimamente pensando que Borjan precisaria nascer três vezes antes de me impedir de fazer algo. Nica sentou-se em uma cadeira, pegou um pãozinho e uma xícara de chá branca a qual encheu do líquido quente. Guarneci meu prato e peguei os talheres, fingindo que ainda me importava com a etiqueta à mesa. Se eu comesse na frente de Nica como comia em Avalon, ela sucumbiria à morte, tamanho seria seu horror.
— Então Lira, onde esteve durante tantos anos?
— Em um lugar de onde saiu sem avisos prévios. — Uma voz, que não era a minha, respondeu.
Aquela voz também não pertencia a Borjan. Olhei para o vão da porta que ligava o salão de refeições à sala de estar e vi o dono da fala. Meu coração acelerou, em pânico. Eu não precisava sentir tanto medo, mas que saída tinha? Nem mesmo havia para onde correr. Fui pega como uma criança que apronta de suas artimanhas.
Soltei o toucinho que segurava entre o polegar e o indicador, e em seguida limpei os dedos em um guardanapo, depois tomei coragem e me levantei.
— Vovô.
— Quem mais poderia ser? — Ele girou a mão na frente do corpo como se realmente considerasse alguma opção. — Ah... Claro... Poderia ser qualquer pessoa que você não avisou, Lira!
Sua irritação era ameaçadora.
— Como me encontrou tão rapidamente? — Perguntei confusa tomada por um turbilhão de pensamentos e sentimentos.
Pelo canto do olho vi quando Nica, assustada, se esgueirou até sair do cômodo. E também quando Borjan entrou com os braços cruzados na frente do peito, me olhava de um jeito nada amistoso que me fazia temer por minha estadia ali.
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