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No coração da floresta

Despedi-me de todos e fui conduzida por túneis até chegarmos a um portal que se assemelhava a um espelho de superfície avermelhada. Era lindo como um rubi sob a luz de uma vela. Difícil era ver-me nele refletida, a aparência tão diferente de outros tempos. Cansada, um pouco envelhecida e intranquila.

— Este portal não a fará cair em outro lugar. Você precisará andar pelo túnel para chegar ao fim do caminho — Lupvittel avisou.

Com um aceno de cabeça afirmei que entendi e sem enrolas entrei no portal, que realmente se assemelhava a um longo túnel, vermelho, morno e confortável.

Segui em curta caminhada até chegar no final. onde atravessei o portal da saída e desemboquei no meio de uma floresta diferente de tudo que eu já vira. A vegetação era rica, cerrada, tinha cores vibrantes e brilhantes. O solo era fofo, coberto por um grosso tapete de folhas e o delicioso cheiro de terra úmida impregnava o ar.

A floresta era muito viva, cheia de distintos sons emitidos pelos animais, principalmente por pássaros. E eu conseguia ouvir também o som de água corrente misturado àquele fundo musical. Tudo ali era adorável e certamente perigoso.

Voltei-me na direção do portal de onde eu saíra, mas ele tinha desaparecido. Quando voltei o olhar para frente quase morri tamanho o susto. Um enorme felino de cor marrom me encarava. Olhava no fundo de meus olhos, como se lesse o que havia em minha alma. Sua presença era tão intensa que mal percebi o homem montado no animal. Era belo, forte, com cabelos negros, lisos, adornados de penas coloridas e corpo coberto de pinturas.

O homem me encarava com seriedade enquanto descia do lombo de sua onça parda.

— Foi daqui que ela partiu — disse como se já esperasse minha chegada.

— Ela? — Perguntei confusa.

— Jaci. Ela nasceu aqui. — Informou com tom moderado.

Coloquei uma mão sobre a boca, desconcertada pela revelação repentina.

— Você não está morto!

— Não exatamente. — Respondeu com sua voz imponente de timbre misterioso.

— Ela ama-te! Por que não a procurou? — Reclamei subitamente indignada com aquela situação.

Raoni esfregou os dedos nos pêlos entre as orelhas da onça e a felina respondeu ao carinho de um jeito dengoso que era bonito de assistir, mas não me deixei distrair por aquela artimanha.

O olhar que Raoni desviou de mim estava triste. Era como se no tempo do carinho, o indígena tentasse dispersar suas tristezas aparentes. Ele tirou a mão da onça e voltou a me olhar de forma implacável.

— Jaci está viva! Já eu... Não mais. Jaci não pode sair da ilha das mulheres mágicas. E eu não posso sair daqui. Saber a verdade depois de tanto tempo só causaria sofrimento. — Explicou de forma seca.

— Como você sabe sobre mim? E por que Jaci não pode sair de lá? — Ultimamente eu era uma pessoa que perguntava demais, mas um novo mundo sempre se desnudava diante dos meus olhos.

— Menina... — Ele escolheu as palavras com cuidado. — Você é a sucessora, todas as terras, águas e tudo que é ligado a esse mundo sabem de sua existência. Quanto a ela... Não pode sair porque ainda não terminou o trabalho que a ela cabe.

— Mas se pudes...

— Não importa! — Ele ergueu a mão em um pedido de silêncio. — Você está aqui porque a mulher ruim veio atrás da magia de libertação dos mortos.

— Sim. — Concordei um tanto incomodada, o tom da voz de Raoni não trazia bons agouros. — Venho direto dos Carpaţi.

— Ela passou por aqui. — Falou com dureza, mas seus olhos diziam que estava preocupado.

Raoni novamente desviou o olhar, dessa vez para o chão, o qual encarou por um instante antes de, com movimentos repentinos, subir no lombo de sua onça. Admirei o suntuoso animal que abaixou a cabeça e deu um passo em minha direção. Raoni segurava no couro peludo do pescoço enquanto observava o ato de seu bicho.

— Ela quer que você a toque na cabeça. — Explicou.

Ergui ambas as mãos e com muita vontade acariciei os pêlos da cabeça do animal, que ronronou alto em sinal de satisfação. Aquilo me fez sentir orgulho de mim mesma.

— Ela deseja que você use fogo. — Raoni avisou.

— Tem certeza? — Ergui uma sobrancelha enquanto observava o animal à minha frente. Parecia ser um felino comum, como ela tinha conhecimento de meus poderes? — Eles não se assustam com fogo como todo animal selvagem?

— Não ela... — Raoni olhou para a copa das árvores acima de sua cabeça, por onde a luz entrava na fresta entre as folhas. — Ela é única.

Acenei de modo afirmativo com a cabeça e acendi o fogo nas mãos. A onça, que não moveu um músculo, olhava para as chamas como se estivesse hipnotizada. Acariciei-a novamente e senti seu deleite, principalmente quando ela se deitou com a barriga no chão, completamente relaxada enquanto mirava em mim os olhos brilhantes de gratidão.

Em uma rara demonstração de humor, Raoni riu.

— Ela é aficionada pelo fogo mágico. — Contou. — Sente um formigamento bom quando entra em contato com a pele.

Passei a acariciar o pescoço além da cabeça. O pêlo era macio e confortável contra a pele da palma de minha mão, havia um vínculo recém formado entre eu e aquele animal dócil, o que me motivou a ajoelhar no chão e abraçá-la, incendiando todo meu corpo para proporcionar a sensação que ela tanto gostava.

— Como você sabe o que ela sente? — Joguei a pergunta no ar enquanto a onça emitia um som engraçado.

Ele abriu um sorriso onde os dois caninos cresceram tanto que ficaram como dentes de sabre e as pupilas de seus olhos tornaram-se oblíquas.

— Somos como irmãos a maior parte do tempo. — Contou com a voz rouca. — Mas ela é minha mestra, meu vínculo com toda essa floresta e com a magia daqui. É ela quem sustenta minha vida.

Fechei os olhos, ainda abraçada com a onça, e aspirei com força o ar da floresta quente e úmida à minha volta. Havia tanta vida ali que o lugar fervilhava de energia.

— Preciso mostrar algo e você deve seguir viagem imediatamente. — Ouvi Raoni dizer. E a urgência da voz me fez abrir os olhos.

Mesmo relutante em abandonar o carinho, coloquei-me de pé. A onça também se levantou com Raoni em seu lombo e soltou um rugido como se para despertar de um transe. Os olhos faiscaram em luz amarelada.

— Monte-a. — Raoni pediu e acenou para trás de si.

Analisei o animal e em vez de montá-lo, fiz uma pergunta.

— Como posso chamá-la?

Raoni, cujas presas foram recolhidas e os olhos tinham aparência humana novamente, respondeu-me com impaciência.

— Îagûara. O nome dela é Îagûara. Agora faça-me o favor, Lira Merak. Cada segundo é precioso.

— Tudo bem, Raoni, mas não vou montar a Îagûara. — Avisei.

Lancei jatos de fogo no ar, como eu fazia quando queria um cavalo, mas ao invés disso, fiz uma onça. A exibição pirotécnica espantou alguns macacos e aves. Raoni ergueu ambas as sobrancelhas. Havia espanto e admiração em seu olhar. Montei minha onça, que era grande como Îagûara, e deitei meu tronco sobre seu pescoço.

— Pode ir — falei para o homem atônito —, nós vos seguiremos.

Ele sorriu.

— Só direi que, Îagûara quer brincar com sua amiga.

Ele partiu a toda velocidade.

Locomovemo-nos rápidos pela mata e mal pude ver o que existia à minha volta, pois passava em um borrão frenético com diversos tons de verde. Às vezes corríamos no chão, mas quando a vegetação mais baixa era muito fechada e trançada de cipós, corríamos no ar. Îagûara era mesmo muito majestosa tanto em terra quanto no céu.

Sentia-me tão bem disposta que era como se meu animal não estivesse consumindo minha energia vital. Um alívio pensar que eu não precisaria conseguir comida dentro de pouco tempo. O entardecer caía sobre aquele lado do mundo quando nos aproximamos do lugar que Raoni queria mostrar a mim. Eu soube quando chegamos lá, uma vez que as energias ambientes mudaram tornando-se pesadas e me dando calafrios.

O que antes era alegre e cheio de vida fez-se inócuo, e depois morto. Logo entramos em um espaço aberto onde havia sinais de luta. Árvores caídas, vegetação arrancada e amassada, e, veneno fresco. Tão fresco que era como se Katuryna ainda estivesse ali.

Raoni apeou do lombo de Îagûara e eu desci de minha onça também, deixando-a livre para brincar com a amiga de carne e ossos.

— Estamos no coração da floresta. — Disse o pajé. — Era aqui que ficava guardado o Reflexo de Tupã. Não no alto, mas em uma cavidade no chão.

— O que é Reflexo de Tupã? E quem é Tupã? — Perguntei curiosa. Talvez Jaci já tivesse contado, mas eu não me lembrava daquilo.

— Reflexo de Tupã é uma centelha do criador dos céus e da terra. — Disse uma voz grave como um trovejar.

Raoni permaneceu parado enquanto eu olhava em todas as direções a procura do dono da voz. E à nossa frente surgiu um grande veado branco luminescente, com uma cruz no meio da testa, chifres macios por uma cobertura de pêlos e olhos amarelos faiscantes.

Raoni ajoelhou-se no chão e abaixou a cabeça, e Îagûara, que brincava de perseguir e atacar minha onça de fogo, parou, andou até onde Raoni estava, sentou-se e seguiu o gesto de seu companheiro. Eu sabia que devia respeito a aquele ser, mas não sabia exatamente como agir.

O veado aos poucos transmutou-se em um homem alto e forte, com cabelos brancos e olhos faiscantes. Sua pele não era branca, apesar de ter sobre ela uma camada de luz branca e opaca que dava essa impressão. A pele era avermelhada. Era divino nos sentidos metafórico e literal.

— Tupã criou os céus — continuou, com sua voz imponente — e a terra. Nós estamos aqui graças a ele. E diferente de outros deuses, muitas vezes Tupã caminha sobre a terra que criou, para abençoar e punir.

O homem se aproximou em passadas decididas.

— Levante-se Raoni, não temos tempo. Precisamos continuar nosso trabalho. Ultimamente estranhos de terras longínquas tem chegado aos nossos domínios — O homem mirou em mim seus olhos amarelos, fazendo-me estremecer e me sentir a própria estranha invasora de terras.

— Sim, senhor Anhangá. — Raoni levantou-se e Îagûara ficou em pé sobre suas quatro patas.

— Perdoe-me a ignorância — comecei meio hesitante —, mas não o conheço. Sou Lira Merak, Bruja de fogo.

— Sou Anhangá, protetor dos animais. Eu soube de sua chegada assim que respirou o ar de nossas florestas. Presumi que viria para cá. — A fala do homem me fazia estremecer a cada palavra. — Não temos tempo, a mulher levou o Reflexo de Tupã e se usar da maneira que pretende, terá chances de abrir um portal que trará os mortos para a terra.

— Pelo tempo que ela partiu, está perto de concretizar o feitiço. — Raoni considerou.

— Como é o Reflexo de Tupã? — Perguntei. — E por que ele estava aqui?

Raoni olhou para mim e mexeu a boca para responder, mas foi Anhangá em falou primeiro.

— É um fragmento da alma de Tupã, como um fio de cabelo. Ficava guardado sob uma grande seringueira para sustentar a magia de toda a nossa terra. A magia não acaba com o roubo, mas coisas ruins vão acontecer conosco e não teremos mais o que fazer a não ser que tenhamos o fragmento outra vez.

Eu entendia a seriedade e a complexidade da situação, Katuryna era uma criatura terrível, e aquele deus ao qual ela servia devia ser ainda pior.

— Tupã colocou-o dentro de uma pedra — Anhangá continuou —, e enterrou a pedra debaixo da grande árvore de resina flexível. A pedra de Tupã é verde tal qual folha nova e irradia luz, como se um raio estivesse preso dentro dela.

Preocupada, coloquei as mãos na cintura e olhei para o céu azul com poucas nuvens.

— Se ela está na frente, já deve ter concretizado a fase final de seus planos. — Contraí a boca em desgosto.

Enxerguei pela minha visão periférica que Raoni e Anhangá trocaram olhares cúmplices. Não de uma maneira ruim, mas como se soubessem algo que mais ninguém sabia.

— Ela precisa de mais dois itens para concretizar os tais planos. Os deuses não são tolos de deixar tudo tão fácil a ponto de apenas uma fagulha de alma abrir um portal tão complexo. — Raoni explicou.

— De quais outros itens ela necessita?

— De uma porção de terra, batizada com o sangue de uma nação recém extinta e da espada de Suzanoo, Kusanagi Tsurugi que está na caverna onde Amaterasu se escondeu. — Disse Anhangá.

Confusa, cruzei os braços frente ao peito esperando por uma explicação. O que era Amaterasu? E Kusanagi Tsurugi? Eu nunca tinha ouvido aqueles nomes em toda a minha vida.

Îagûara de um salto colocou-se entre mim e Raoni. Rugiu para o céu repentinamente muito irritada enquanto mostrava os dentes ameaçadores. Os olhos de Raoni mudaram e suas presas cresceram enquanto o Anhangá permaneceu impassível. Eu olhava embasbacada Raoni montar sobre Îagûara.

— Sinto muito senhor Anhangá — Raoni falou com voz meio ferina. — Os estrangeiros estão atacando os nativos outra vez.

O Anhangá fez um aceno de despedida.

— Vá Raoni, e cumpra sua missão.

Îagûara rugiu outra vez e eu estremeci diante de sua fúria.

— Lira — Raoni olhou-me —, cumpra sua missão ou todos morreremos. — Gesticulei com a cabeça de maneira afirmativa. — E faça o que fizer, não conte para Jaci que estou aqui, na hora certa ela saberá.

Concordei novamente enquanto Raoni fez um aceno de despedida e partiu. Agora estava sozinha com Anhangá e precisava de respostas.

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