Morta
— Você está morta, Lira Merak. — As vozes disseram.
Meu espírito abandonou o corpo e flutuou pela câmara. Era estranho, diferente, creio que a palavra certa seja "peculiar". Era peculiar. Eu podia ver à minha volta. Podia sentir as energias do mundo que me cercava e seus movimentos. Meu espírito perdera a limitação do corpo, mas não as emoções.
Sentia-me triste por estar morta.
Vi meu corpo físico jogado no chão e me senti estranhamente mais velha que aquela casca de aparência frágil. Os espelhos jamais foram capazes de me mostrar como eu realmente era. Frágil, jovem, inocente... Deplorável.
Naquele instante tive dimensão de quão atrasada estava no mundo.
— Quem são vocês? — Perguntei. Gozava de plena capacidade em me comunicar.
— Somos o equilíbrio. A égide da verdade. A balança da justiça — responderam. — Somos a voz dos deuses. Uma de suas muitas vozes. Somos atemporais.
— Bem, creio que por ter falecido, devo ir para algum lugar... Talvez, o inferno? — Questionei temerosa. Meu peito vibrou como se um coração de carne e sangue estivesse ainda abrigado ali, mas não estava.
Fechei os olhos em um reflexo para aproveitar a maravilhosa sensação que me tomava e depois os abri.
— Abra os olhos. — Ordenaram.
De início não entendi, pois estava de olhos abertos, mas então novamente, vozes ecoaram em minha mente, exigindo que eu abrisse os olhos. Senti um queimor na cabeça e depois em todo o corpo. Fechei os olhos do espírito, passando a enxergar os rostos aos quais pertenciam as vozes. Era uma bênção. Uma criatura tão pequena como eu não merecia, mas eu vi... Vi as faces dos deuses. Muitas delas. De muitas formas.
Abri meus olhos e enxerguei uma gema pequena e transparente que flutuava no espaço à minha frente.
— Agora, você voltará para sua missão, Lira — Disse a mulher dourada.
— Uma missão muito importante. — Replicou sua gêmea prateada.
— Qual é minha missão? — Indaguei serena.
— Você saberá — disseram. — Leve a jóia, ela é um sinal de que os deuses estão com você. Uma jóia forjada de sua morte.
Flutuaram a gema transparente para mais perto de minha matéria espiritual.
— A jóia forjada de sua morte. A marca da verdade. A lágrima de coragem. Sua oferta para os deuses. — Proclamaram.
A Jóia agora estava encostada em mim. Eu sentia algo diferente, maravilhoso, difícil de descrever. Era júbilo. Uma alegria tão grande que um corpo físico jamais suportaria.
A gema se fundiu em meu peito. Ouvi uma música inexplicavelmente bela. A Melodia de Todos os Deuses. De meu peito emanava um brilho azulado, como as águas do mar quando anoitece. Escuras, porém belas.
— Os deuses estão contigo, Lira Merak. — Se despediram.
De repente me vi sugada por um vórtice denso. Meu espírito se tornou pesado. As memórias dos acontecimentos ficaram nebulosas e limitadas. Em pouco tempo eu já não lembrava mais da face dos deuses.
Minha garganta secou. E em um gesto involuntário, levei a mão a ela e tossi. Senti o calor de minha pele. Olhei para minhas mãos de carne e osso, surpresa... Eu estava viva outra vez. Em meu corpo.
Apalpei meu rosto para ter certeza. Sim, eu estava viva outra vez.
Levantei-me do chão e mirei com os olhos a câmara vazia. O lugar estava pouco iluminado pela claridade que vinha do topo da escadaria.
O vazio em meu interior que eu só descobrira quando sabatinada, transformara-se em uma grande certeza.
Abaixei a cabeça em sinal de respeito, me virei e subi as escadas.
Quando finalmente saí do local, meus olhos fitaram o entardecer. Eu passara um dia todo ali dentro. Fechei as portinholas da câmara, peguei a lamparina apagada e fui para minha cabana.
Com sorte, eu chegaria a tempo para o jantar.
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