Mil dias
Uma força me sugou daquele lugar especial onde eu tinha paz e me devolveu para meu corpo físico que parecia estranho, como uma roupa maior que o molde. Demorei alguns segundos para me encaixar com perfeição.
Meu corpo estava cansado demais e eu enxergava minhas pálpebras avermelhadas. Sinal de luz. Findara-se a escuridão? Abri os olhos e vi o brilho avermelhado e o vapor infernal que emanava de um poço de lava. Tentei mover meu corpo para fugir dali, mas estava estranho, descoordenado. Meus ouvidos aos poucos captaram as vozes de alguém.
— Puxem-na! — Alguém ordenou.
Alguém cuja voz eu reconhecia. Jaci... Jaci! Movi meu pescoço para o lado no intuito de investigar. Percebi que meu corpo estava nu e que duas mãos negras seguravam meus braços e me puxavam. Por quê? Eu estava em um estreito limite de pedra à beira de um lago de lava.
Como fui parar ali?
Havia paredes e teto... A caverna. Era a Caverna do Castigo, mas como o piso desapareceu? Fui depositada no chão. Meu corpo coberto de pêlos não aparados. Meus membros pareciam mais longos. Apalpei meu tronco e senti um par de seios crescidos. Olhei para eles. Meus seios estavam nitidamente maiores. Meu cabelo se espalhava pelo chão à minha volta, branco e ondulado. Uma mulher negra se colocou à minha frente.
— Quem é você? — Perguntei perdida em sensações.
Seus olhos me perscrutaram. Ela era magra, com músculos definidos, rosto bonito e muito atraente.
— Não me reconhece? — Perguntou com a voz um pouco rouca.
— Não. — Respondi sentindo que ela era familiar.
— E ela? — A mulher apontou para alguém que estava em pé ali perto.
— Jaci. — Falei olhando para Jaci que estava em sua forma de velha. — E Tiney. — Vi a Elemental ao seu lado, com a mesma postura de sempre.
A mulher à minha frente me olhou com mais especulação.
— Sou eu, Lira. — Piscou de um jeito apressado que eu conhecia bem.
— Timaki? — Perguntei estupefata.
— Sim. — Ela respondeu e deu um sorriso singelo e um pouco endurecido.
— Timaki! — Me levantei do chão, um pouco desajeitada e me lancei contra ela em um abraço.
— O que aconteceu? — Questionei.
Ela me analisou com cuidado e uma ponta de medo, antes de falar:
— Vamos para sua casa.
Concordei com a cabeça, mas primeiro corri para Jaci e a abracei. Era bom vê-la novamente. Quando a soltei ela sorriu. Cumprimentei Tiney e voltei para junto de Timaki.
— Podemos ir? — Ela indagou.
— Claro. — Respondi um pouco animada.
Timaki me pegou no colo e começou a correr. Recolhi meu cabelo sobre o corpo, pois atrapalhava a movimentação de minha amiga.
Algo estava errado, eu podia sentir. Timaki estava tensa demais. Eu queria respostas, mas esperaria até que elas me fossem dadas. No entanto, eu tinha um mau pressentimento. Um péssimo pressentimento, na verdade.
Aquele lago de lava era intrigante.
Chegamos a minha cabana e tudo pareceria como antes, exceto pela multidão de pessoas reunidas, curiosas para me ver. Timaki abriu caminho à força até que algumas pessoas da guarda vieram ajudar. Vários rostos eu não identificava, outros estavam iguais, como os de Murciégala e Caroulinde.
Envergonhada usei todo aquele cabelo para cobrir minhas partes íntimas.
Algumas pessoas me olhavam como se esperassem um monstro. Havia uma espécie de decepção em seus olhares. Outras me olhavam com piedade. E Timaki continuava tensa.
Chegamos à porta. Minha amiga abriu e entramos. Lá estava Élora, sentada em meu estofado que continuava igual. Tudo estava praticamente igual, mas ao mesmo tempo havia coisas diferentes.
— Lira. — Élora disse meu nome em um tom carregado de preocupação e comecei a pensar que não era mais bem vinda ali.
Corri para meu quarto e arranquei a colcha da cama para me cobrir, mas antes de fazer isso vi meu reflexo no espelho da penteadeira. Um reflexo totalmente desconhecido para mim. De olhos arregalados toquei meu rosto e vi reflexo seguir meu movimento.
Aproximei-me para ver a mulher que eu me tornara. As curvas. Meu rosto não mais tão delicado, mas ainda bonito. Meus seios. Minha altura. Eu tinha crescido um pouco mais. Meus lábios estavam mais cheios. E meu cabelo grande demais. Peguei uma tesoura em cima da penteadeira e cortei as madeixas na altura da cintura. Depois eu arrumaria o corte, pois primeiro eu precisava de respostas.
Enrolei meu corpo na colcha e vi a estranha do espelho fazer o mesmo. Respirei fundo para em seguida voltar para a sala.
Não havia outra opção que não fosse aceitar que aquela era eu. Sem dramas, nem tentativas de mudar. Era eu e ponto. Lira Merak não era mais uma adolescente, mas sim uma mulher. E precisava de respostas.
Andei pela sala de cabeça erguida, sentei em uma poltrona e encarei o olhar tenso de Timaki junto ao preocupado de Élora.
— Quanto tempo se passou? — Pedi a informação para ninguém em específico.
Foi Élora quem respondeu.
— Mil dias. Você ficou lá por mil dias.
Assenti com a cabeça tentando calcular mentalmente quanto tempo equivalia dentro e fora de Avalon, mas um nó se formou em minha garganta e meus pensamentos confusos me impediram de chegar a um resultado.
— Quanto tempo em contagem normal? — Resolvi facilitar as coisas.
— Cerca de dez anos. — Foi Timaki quem me informou.
— Você agora tem vinte e seis anos. — Élora anunciou.
Fiquei chocada. Eu já estava à beira dos trinta anos de idade. Era tempo demais.
— O que aconteceu? — Perguntei com a voz embargada.
Élora suspirou antes de começar a contar.
— Nós estávamos em reunião descobrindo uma forma de pegar quem te perseguia quando ouvimos um estrondo. Ignoramos, pois supusemos que a guarda resolveria o problema, fosse qual fosse. Mas uma oscilação na magia ambiente nos deixou alertas. Um membro da guarda avisou que uma das salas estava destruída, e quando vimos, você e um ser estranho brigavam nos céus. Tentamos interferir, mas ele isolou vocês naquelas malditas trevas.
"Você não suportaria sozinha, então Jaci teve a ideia de reunir Salamandras e transferir poder para você. Não era a melhor opção, mas não tínhamos outra escolha. O plano dela funcionou e você triunfou sobre o ser que a ameaçava. Posteriormente descobrimos ser Meva."
Élora suspirou outra vez e colocou uma mão sobre a testa.
— Ela esteve aqui por anos e não descobrimos suas intenções porque aprendeu magias ocultas que estavam além de nossas compreensões. — Élora explicou em tom de desculpas.
— E depois? — Eu queria saber mais.
— Você a incinerou, mas matá-la não foi o bastante. O poder alimentou sua ambição e você escolheu mais uma... Vítima. — Ela disse de jeito receoso. — Você voou contra ele para atacá-lo, tentei contê-la, mas não consegui.
— Ele? — Perguntei preocupada.
— Foi triste, Lira. Precisaram conter você à força. Jaci sugou boa parte do poder, mesmo assim você estava descontrolada demais e foi trancada na Caverna do Castigo. — Timaki explicou.
— Quem foi minha vítima? — Perguntei novamente já sentindo o coração doer, mas Élora fingiu não ouvir.
— Aquele lago de lava são suas lágrimas. Você chorou por mil dias sem parar. Chorou lágrimas de fogo. Você gritava de angústia e toda Avalon ouvia sua dor. — Élora explanou.
— Jaci doava energia para que seu corpo se mantivesse. Ela foi até lá todos os dias, sem exceção. Todos os dias ela ajoelhava e orava para que você sobrevivesse à provação de ter seus poderes arrancados até aprender a lição enquanto nós assistíamos petrificados. — Timaki começou a chorar.
— Quem eu machuquei? — A demora de Élora para me contar a verdade era um indicativo de que aquilo não seria fácil.
Comecei a intuir a resposta.
— Lira... Você precisa ser forte. — Élora pediu. — Precisa se perdoar.
Senti meu estômago se revirar e embrulhar. Élora andou até a porta e fez sinal para alguém. Prendi a respiração enquanto esperava a pessoa entrar. E tive vontade de morrer quando ele entrou em minha cabana.
"Ele" era Arthur.
Arthur que tinha um lado do rosto quase desfigurado pela marca de uma queimadura. A pele um pouco repuxada, e de cor diferente, saltava aos olhos se destacando em contraste com o restante do couro. Meu amigo estava alto, esguio, com uma barba dourada que parecia macia. Conservava os mesmos olhos bondosos de sempre.
Coloquei uma mão sobre minha boca enquanto lágrimas involuntárias abandonavam meus olhos. Uma pontada calou fundo em minha alma e eu quis poder tirar dele aquela maldita marca.
— Não... — Sussurrei.
Eu tinha machucado alguém que eu amava. Fui arrogante e paguei minha língua. Jaci sabia da vida e eu a ignorei. Senti-me a pior mulher do mundo. A mais cruel criatura. Arthur andou em minha direção - agora ele era mais alto que eu -, ajoelhou em minha frente e enxugou minhas lágrimas.
— Tudo bem, Lira, não foi por maldade. — Disse com uma voz meio rouca, mas suave.
Aquilo apertou ainda mais meu coração. Eu não merecia ser perdoada tão facilmente.
— Me odeie, Arthur. — Pedi. — Me odeie, por favor! — Implorei.
Ele me lançou um olhar de piedade antes de dizer:
— Eu não posso odiá-la. Não sou esse tipo de pessoa. Você não teve culpa e já ficou em castigo.
Desesperada e com o choro solto, agarrei-me aos ombros de Arthur e o sacudi.
— Me odeie! Por favor, me odeie! — Gritei desesperada. — Grite comigo, me xingue, me diga que sou um monstro!
Arthur me abraçou forte, tirando minha ação e pude ver que Timaki e Élora choravam diante da cena.
— Eu não vou odiar você, Lira. Nem um único minuto da minha vida será gasto odiando você. — Arthur falou ao pé do meu ouvido. — Você era apenas uma menina que tinha acabado de se descobrir. Eu estou bem, acredite. A dor inicial foi a pior, com os anos passa. E meu noivo não tem problemas com a cicatriz.
Fiquei sem fala. Como falar quando a dor é tão forte que estrangula você? O perdão era um castigo pior que o ódio.
— Me deixem sozinha. — Pedi.
Eu precisava desmoronar sozinha. Precisava lidar com aquela dor. Precisava... Encontrar um fim.
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