Maradentro
Foi o portal mais curto pelo qual passei. Jalian realmente tinha muito poder e habilidade para construir portais já que manipular uma estrada pelo espaço tempo entre dimensões requer talento e muito treino. Não levou três segundos de viagem antes que eu apontasse no céu acima de uma ilha pequena. De onde eu estava, era possível ver que havia algumas construções, mas eram muito entremeadas com as árvores.
Em volta da ilha, do mar ao topo, havia uma redoma multicolorida que vibrava e brilhava. Eram centenas de portais que levavam para inúmeros lugares.
Voei em alta velocidade rumo a terra abaixo de mim, pronta para lutar. Não podia deixar que Katuryna passasse dali. Porém, contrariando minhas expectativas, quando cheguei tudo que encontrei foi desgraça.
Aproximei-me das casas que não tinham alicerce no chão, elas flutuavam no ar, mas ficavam paradas no mesmo lugar, como se algo as prendesse ao solo. Eram cercadas por grandes árvores não tão grandes como as d'O Pomar, mas deveras suntuosas. O chão tinha algum tipo de gramínea baixa de cor verde esmeralda.
Pousei sobre a areia da praia e andei até as casas, que estavam vazias. Meu coração acelerou já prevendo o pior, não havia mais vida em Maradentro. Eu não era uma mulher inocente, pelo cenário já podia antecipar o que acontecera.
Senti muita raiva de mim mesma. Se não tivesse parado para me alimentar, nada ruim teria acontecido com as pessoas que ali habitavam. Já era tempo de tirar minhas energias dos ambientes e é o que eu faria a partir de então.
Eu já sabia que Katuryna tinha me vencido naquela etapa e com passos raivosos aproximei-me da aldeia. O cheiro de sangue atingiu-me em cheio e o segui até encontrar o chão ao lado de um rio forrado de cadáveres. Todos os corpos estavam atravessados por espinhos venenosos, nos rostos, expressões de profundo desespero ficaram congeladas. Não havia indício de muita luta, provavelmente o povo de Maradentro era pacífico.
Katuryna tinha a terra lavada pelo sangue de uma nação e eu precisava encontrá-la a seguir, mas como a seguiria? Como encontrá-la?
Respirei fundo e o cheiro acre de sangue e veneno encheu meus pulmões fazendo com que meu estômago ficasse embrulhado. Ergui as mãos e com dois jatos de fogo incendiei todos os cadáveres. Eu poderia enterrá-los, mas era mais seguro queimar. E se Meva os revivesse de alguma forma?
A carne dos corpos crepitava sob a mira de meus olhos ardidos pela fumaça e o cheiro no ar ficou ainda pior. Dei meia enquanto era tomada pela terrível consciência de que não tinha como voltar para o mundo comum. Estava tão certa de que os salvaria que não elaborei outro plano, o que passou a significar mais atraso para mim.
Andei em direção às casas outra vez possessa de raiva contra minha própria pessoa, minha esperança era que dentro de alguma das construções tivesse um tipo de mapa que explicava qual a serventia de cada um daqueles portais.
Movi-me de casa em casa observando as mobílias simples e comuns. Os imóveis eram feitos de tábuas de madeira, assim como o mobiliário. Até o teto das construções era de madeira e a julgar pelo estado de conservação, ali não chovia muito.
Pensei que talvez devesse incendiar toda aquela aldeia, para que ninguém mais precisasse morar naquela terra amaldiçoada. E foi com esse intuito que saí de uma das casas onde eu estava e alcei voo, pronta para incendiar aquelas que eu já havia visitado.
Foi quando um menininho apareceu, correndo debaixo da estrutura da construção.
Vestia uma espécie de túnica presa na altura da cintura por uma faixa. Era careca e tinha no máximo oito anos de idade. Acenava freneticamente com os pequenos braços. Estranho, eu não sentia calor em seu corpo então hipoteticamente ele não estava vivo.
Pousei logo à sua frente para ficar cara a cara com a expressão assustada estampada naquele rosto.
— Senhora, não queime, eu suplico! — O menino tinha lágrimas estancadas nos cantos dos olhos. — Não queime, por favor.
Coloquei a mão direita sobre a cabeça dele e fitei seus olhos castanhos. Não estava vivo, de fato. Não havia respiração, nem calor, e aquele corpo não era físico, mas espiritual.
— O que fazes aqui? — Questionei. — Por que apenas você?
As lágrimas que estavam somente estancadas no extremo da pálpebra correram soltas pelas bochechas morenas.
— O espírito que atravessa o rio perdeu-me pelo caminho! — Falou com estridência enquanto chorava. Suas fartas lágrimas caíam rumo ao chão, mas desapareciam antes de chegar nele.
— Espírito que atravessa o rio? — Ergui as sobrancelhas sem entender.
— Quando nosso povo morre um guardião nos ajuda a atravessar o Rio da Tormenta para chegar aos Prados do Repouso. No rio vivem monstros que protegem os Prados contra ameaças externas. São monstros fortes como deuses. — O menino soluçou e estremeceu. — Quando a mulher má veio, matou todos que aqui viviam, e os espíritos vagaram até que o guardião nos buscou para realizar a travessia. Ele fez com que todos flutuassem, pois o portal que leva para lá é aquele — o garoto apontou para o topo da redoma, o único portal de cor negra entre todos, ficava bem no centro de tudo. — Mas antes de chegar ao portal eu parei de flutuar e caí.
O garotinho chorava ainda mais e senti meu coração se despedaçar.
— Não tenho mais povo, o guardião não voltará. A morte avisa a ele uma vez apenas! — O garoto esfregou os olhos com as mãos fechadas em punho. — VOU TER QUE VIVER MORTO E SOZINHO!
O menino abriu um berreiro. Segurei seu queixo e o ergui, fazendo com que a criança olhasse em meus olhos.
— Qual seu nome? — Perguntei e esperei que ele se acalmasse um pouco.
— Lhiunitchavinoxytey. — O menino respondeu entre soluços.
— Oi? — Reagi perplexa.
— Meu nome é Lhiunitchavinoxytey. — Falou um pouco mais calmo e curioso pela minha reação.
— Você tem um apelido? — Passei a mão sobre a face do garoto, secando o úmido das lágrimas.
— Sim, minha mãe me chamava de Huwixiwity, que significa "menino levado". — Explicou.
— Que nomes estranhos. — Comentei sem perceber que poderia soar ofensivo.
— Qual seu nome? — O garoto tombou a cabeça para o lado, analisando-me.
— Lira. Meu nome é Lira Merak. — Apresentei-me.
— Seu nome também é estranho, não tem significado na minha língua. — Disse. Então estalou os dedos polegar e indicador ao lado da cabeça. — Como você fala minha língua e acha meu nome estranho?
Mais confusa que ele, passei a mão entre os fios de meus cabelos.
— Não falo sua língua, infante! Nem teria como, seu povo vivia isolado de tudo. — Explanei.
— Sim, você fala minha língua. Está falando neste instante! — Exclamou cheio de razão enquanto cruzava os pequenos braços.
— Não, você que está falando a minh... — Calei-me antes de terminar a frase porque me ocorreram todos os lugares pelos quais eu já tinha viajado antes sem tomar lições de idioma. As pessoas do mundo não falavam o mesmo idioma ou dialeto, ainda assim eu me comunicava com elas naturalmente porque para mim elas falavam meu idioma nativo. Exceto no Industão, onde eu realmente aprendi a língua comum para me comunicar nos dois anos em que procurei o rastro de Meva.
Não precisava ficar encabulada e nem pensar demais para saber que, possivelmente me encantaram, assim como encantaram Avalon. Quando? Eu não saberia dizer.
Como levei tanto tempo para perceber algo tão bobo? Um detalhe que me passou na desatenção, mas que na prática fazia muita diferença. Se eu não "falasse" todos aqueles idiomas, a comunicação ficaria impossível e seguir rastros se tornaria ainda mais difícil.
Acordei do transe do pensamento com o menino dando tapinhas leves em meu rosto e chamando "senhora", para me despertar.
— Eu... — comecei a falar ainda titubeante —... Sou mágica.
Era a forma mais breve de justificar.
— De qualquer forma, o chamarei apenas de Huwi. Posso? — Acariciei a bochecha dele com o polegar.
O garoto ergueu a mão esquerda aberta e rente com as pontas dos dedos em minha direção e a acenou para cima e para baixo.
— Sim. — Permitiu.
Entendi que aquele gesto era um equivalente da cultura dele a acenar a cabeça de maneira afirmativa.
— Huwi, você não pode ficar nesta ilha sozinho. — Endireitei o corpo e cruzei os braços na frente do peito. Minha capa negra me tapava quase inteiramente.
— Mas não tenho escolha. — Ele abriu bem os olhos despertando algo adormecido no profundo do meu coração.
— Sim, você tem. — Bati um pé, séria. — Eu levo você até lá.
— Você não pode. — O garoto ergueu os braços em um movimento de abertura e depois os deixou pender novamente. — O Rio da Tormenta é muito difícil de atravessar, justamente para que nosso povo tenha paz após a morte. Nenhuma criatura que seja menos que um deus, poderá passar por aquele lugar.
Ele dizia que eu não podia ir, mas havia esperança em seus olhos. Ele queria que eu o salvasse de passar a existência do mundo perdido entre as lembranças naquela ilha vazia.
— Confie em mim como confiaria em sua própria mãe, Huwi. — Pedi.
— Está certa disso? — Seus olhos faiscaram de esperança.
— Claro. Prometo que o levarei até lá.
O garoto jogou-se contra mim e abraçou minhas pernas. Afaguei-lhe a cabeça e olhei para cima. Promessa é dívida, principalmente quando feita para uma criança.
— Verei minha mãe outra vez. — Falou com a voz embargada, a face escondida no tecido de minha capa negra.
Eu já estava decidida a levá-lo, mesmo que aquilo atrasasse minha busca pela demônia chamada Katuryna. Pensar nela fez-me lembrar de questionar sobre os portais.
— Huwi, você sabe para onde cada um desses portais leva?
Ele afastou-se de meus membros inferiores antes de fazer aquele gesto com a mão outra vez.
— Sim, todos nós sabíamos.
Meu coração bateu mais rápido.
— Qual deles leva para a terra comum? O lugar onde vivem os humanos. — Enchi-me de esperanças.
Huwi apontou para a esquerda. Um lugar a meio caminho do domo, onde havia um portal azul escuro.
— Aquele portal diferente leva para sua casa. — Falou meio vacilante. — Você me abandonará?
— Não! — Reagi enérgica. — Só desejo saber por que quando voltar para cá, preciso retornar para minha casa.
— Aaaah... — Ele respirou aliviado.
— Preciso pegar a monstra que matou todos daqui. Antes que destrua o mundo. — Expliquei.
— Mas se você vai seguir ela, não deveria pegar o mesmo caminho a mulher tomou? — O menino colocou as mãos na cintura.
— Ela não foi por ali? — Indaguei enquanto passava a mão por entre meus cabelos.
— Não! — Respondeu rápido como um raio. — Ela entrou naquele que leva para a dimensão de Nemozio.
O menino apontou para a direção oposta, um portal amarelado, muito parecido com outros.
— Que dimensão é essa? — Dessa vez fui eu quem colocou as mãos na cintura.
— É a dimensão do tempo lento. — Falou. —Lá o tempo passa tão devagar que vários dias na terra comum parecem um curto espaço de tempo. Se um humano comum entrasse lá, quando voltasse para a terra ainda estaria jovem enquanto os demais já envelheceram.
— Por que ela iria para lá? — Fiz uma pergunta retórica, mas o menino parecia ter uma resposta.
— Se você a está caçando, talvez outros também estejam, certo? — Ele questionou segurando o próprio queixo com expressão pensativa.
— Certo. — Afirmei.
— Então, talvez ela queira ter o bebê em paz. — Revelou uma informação que ninguém tinha.
— Que bebê? — Expressei minha surpresa arqueando a sobrancelha.
— Ela está grávida, Lira. A barriga estava grande, sabe, como uma grávida. — Fez sinal de barriga arredondada frente à própria barriga reta.
Coloquei a mão sobre minha boca aberta. Havia algo muito errado naquela história, mas se era verdade o que Huwi supunha, então Katuryna daria descanso por algum tempo. Porém, incomodei-me com aquilo. Quem era o pai do bebê de Katuryna?
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