Fim da alegria
Borjan fora tomar um banho que eu sabia que seria rápido. Como eu já estava preparada para dormir me deitei na cama e esperei meu marido. Subitamente o clima da casa ficou estranho, os cômodos foram invadidos por um frio pesado e repentino. Olhei para as janelas do quarto, mas já estavam fechadas desde muito cedo.
Meu sentido de alerta puxou meus pensamentos para as crianças.
Comecei a soprar fumaça branca quando saí no corredor. Estava frio demais. Eu poderia usar meus poderes para aquecer o local, mas não queria correr o risco de Gertrudes levantar e me ver usando magia. Estremeci brevemente e abracei meu próprio corpo enquanto a passos largos alcançava o quarto das gêmeas. Quanto mais me aproximava, mais frio sentia, meu coração acelerou e fiquei alarmada. Terminando o caminho em curta corrida, irrompi no cômodo.
Uma névoa malcheirosa soprou contra meu rosto. O frio do mundo dos mortos se enroscou em mim como serpentes vorazes antes de a conhecida escuridão tomar o lugar. Ouvi minhas filhas chorarem no escuro antes de sentir o cheiro podre que eu já conhecia de outros tempos. Acendi meu corpo em chamas e abri minhas asas de fogo. Aquela escuridão estava mais branda que o comum e não sugava meu fogo como a de outrora, mas eu não tinha dúvidas de que era aquela treva negra vinda do Reino dos Mortos.
Iluminei a direção do berço.
— Mamãe! — Lwana gritou com voz estridente entre o choro desesperado.
— Lwana! — Corri para salvá-la, mas a coisa que a segurava pulou para o outro lado do quarto.
Arranquei o medalhão da Ordem que estava no meu pescoço e joguei dentro do berço.
— Segura, filha! Segura o medalhão da mamãe! — Gritei para Ana que chorava e gritava apavorada.
Mesmo berrando de medo ela pegou o medalhão, enroscou a corrente em suas mãozinhas e segurou com firmeza. O medalhão irradiou luz roxa que cobriu todo o corpo de Ana.
— MAMÃE! — Lwana gritou desesperada enquanto a fera que a segurava gargalhava terrivelmente.
— Cale a boca, criança! — O monstro ordenou.
Possessa de ódio, lancei duas bolas de fogo no ar para iluminar mais o ambiente, foi quando vi que o ser perverso era uma forma aterrorizante de Gertrudes.
— O que está fazendo, Gertrudes? — Gritei completamente perdida, enquanto pensava em um plano para tirar minha filha das mãos daquela velha monstrenga maluca.
— Gertrudes, Meva... Tantos nomes. — A criatura falou e me deixou em choque.
— Não pode ser! — Meu coração errou uma batida para depois disparar como se fosse fugir do peito.
— MAMÃE! — Lwana me chamou outra vez.
Avancei na direção de Gertrudes, mas ela se transformou no monstro coberto de veneno. Aterrorizada tentei acertar o braço que segurava minha filha, porém ele não incendiou.
— MAMÃE! ME PEGA, MAMÃE! — Lwana gritou chorando muito enquanto meu coração pesava no peito.
— LWAAANAAAAAA! — Ana chamou pela irmã em um berro que cortou minha alma.
Minha cabeça ia explodir.
Fiz um mar de fogo na direção da criatura. Se minha filha caísse nele não a queimaria. Usando o domínio de terra, arranquei algumas lascas de madeira dos móveis e acertei na criatura para desestabilizá-la. A monstra gritou de dor.
— VOCÊ NÃO VAI ME VENCER, LIRA MERAK!
— SOLTE MINHA FILHA! — Corri em sua direção mais uma vez, eu arrancaria o braço dela para recuperar Lwana de sua mão, mas a coisa foi mais rápida que eu. Gertrudes abriu a bocarra e em uma mordida arrancou a cabeça de Lwana fazendo jorrar sangue do que sobrara do pescoço.
— NÃAAAAAAAAAAAAAAAAAAAOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO! — gritei chocada e desesperada enquanto via a criatura mastigar a cabeça do meu bebê.
Minhas pernas não me sustentaram e caí prostrada de joelhos. Lágrimas de ódio saíam de meus olhos e evaporavam. Não me permiti ficar ali, jogada. Sem controle da raiva puxei o fogo lunar feito dos raios que entravam pela janela e arremessei contra aquele monstro maldito, que jogou no chão incendiado o que restara de minha filha decapitada.
— VOCÊ NUNCA ME PEGARÁ, IRA DO DRAGÃO!
A criatura gargalhou em deboche enquanto abria um portal na parede. Meu fogo branco acertou a mesma parede um instante depois de o portal se fechar. As chamas se alastraram rápido pelo quarto devastando quase tudo. A escuridão desapareceu junto com a criatura maldita e eu rastejei de joelhos até o que restara do corpo de Lwana.
— NÃAAAAAAAAOOOOOOOO! — Berrei agarrada ao corpo ensanguentado e sem cabeça. — MINHA FILHA NÃO! MINHA FILHA NÃO!
Se Meva tivesse arrancado meu coração e comido na minha frente não doeria tanto. Se eu passasse por mil dias de tortura, não doeria tanto. Mesmo que me abrissem viva, não doeria tanto quanto doeu abraçar o corpo frio de Lwana.
— NÃAAAAAAOOOOOOOOO! — Mais uma vez gritei meu desespero enquanto chorava abraçada ao cadáver pequenino e carbonizado. — NÃAAAAAAAAAOOOOOOOOOOOO!
As lembranças de Lwana sorrindo invadiram minha mente, seguidas por todas as lembranças desde o momento do nascimento até aquele fatídico dia.
— LWAAAAAAAAAAAAAANAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA! — Esgoelei aos prantos sem me importar se todos os vizinhos ouviriam minha dor. Que ouvissem. Eu não me importava. Nada importava naquele momento. Depositei o pequeno corpo sobre o piso e caí de testa no chão.
Meu peito parecia tão cheio de dor a ponto de explodir. Era isso que eu sentia. Doía na alma e no espírito. Cada célula do meu corpo fora tomada pela dor e não importava o quanto eu gritava e esperneava, ela não saía. Eu sentia culpa, remorso, medo e ira. Uma ira forte de um jeito que eu nunca sentira antes.
— ISSO NÃO VAI FICAR ASSIM! — Jurei. — NÃO VAI FICAR ASSIM!
Bati no chão com os punhos fechados enquanto berrava minha dor. Minhas mãos sangraram devidos os machucados surgidos por causa da intensidade do castigo que eu dava para minha carne. O fogo ainda estava ali. Crepitava intenso sem nada queimar.
— LWANA, PERDOE A MAMÃE! — Implorei completamente ensandecida com meu grito rouco. — ME PERDOE!
As lágrimas passaram de líquido comum para algo pastoso e incendiário. Gotas de lava caíram no chão abrindo pequenas fissuras. Segurei-me para não chorar mais, ou destruiria a casa com Ana e Borjan.
Ana e Borjan! Recolhi o fogo e olhei para o quarto que estava vazio. O choro de Ana vinha do corredor e a voz de Borjan que tentava acalmá-la. Como eu explicaria para Ana aquilo que ela viu?
A culpa me dominou. Tudo aquilo só acontecera porque eu estava em meu estado de negação. Reneguei quem eu era. Abaixei a guarda completamente quando tentei viver uma vida normal, porque pensei que aquele demônio não mais me atormentaria. Mas eu estava enganada. A voz de Jaci ecoava em minha cabeça falando sobre responsabilidades. Ela me ensinara uma lição que eu não tinha realmente aprendido até aquele momento.
Minhas crianças não tinham inimigos. Eu tinha. A culpa era minha e chegara a hora de finalmente cumprir minha missão de exterminar aquele demônio. Era isso. Eu tinha uma missão. Uma voz soprou em minha mente. "Sua missão. Feche o portal do Reino dos Mortos."
Podia ser minha consciência, mas não era. Era a voz dos deuses, me chamando para cumprir minha sina. Eu poderia culpá-los pela morte de Lwana, mas que culpa eles tiveram? Eu era uma Bruja poderosa, podia ter protegido meu bebê, mas não o fiz.
— Por favor, recebam minha Lwana e lhe deem paz. — Sussurrei com voz embargada. — Um dia a encontrarei novamente, e você vai me perdoar por ser uma estúpida, minha filha. Eu prometo.
Com o coração em frangalhos busquei a colcha do berço de Lwana e enrolei seu corpo em um pacotinho. A dor latejava me destruindo, mas que opção eu tinha?
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