Fênix tupiniquim
— Chegamos ao dia tão esperado! — Tiney bateu palmas antes de comer um bolinho feito de fogo. Algo muito estranho, de fato, contudo era a comida favorita dela.
Sim, ela podia comer apenas a bola de fogo, mas gostava de dar forma de alimentos produzidos por humanos. Quem entende as manias dos seres vivos?
Estávamos na floresta, em um local distante da comunidade. Tiney, Mermeida, Domhany e Gaothin permaneciam ali para ajudar com nossa segurança. Os quatro conversavam animados sobre assuntos que não eram da minha alçada.
Jaci acendeu uma fogueira no centro da clareira e partiu, me deixando sozinha enquanto admirava o fogo. Desviei os olhos do céu e vi a lua cheia como um grande prato iluminado. Ainda cansada do dia anterior, sentada no chão, abracei minhas pernas e deitei a cabeça sobre meus joelhos.
Aquela lua me trazia lembranças de vovô de quem eu sentia muita falta. Na tentativa de afastar aquelas lembranças de minha mente tortuosa, fechei os olhos e coloquei atenção na conversa dos Elementais.
— De toda forma, a base do exército não pode ficar onde humanos alcancem, eles quase sempre destroem tudo que tocam. — Dizia a sílfide.
— Estão destruindo as florestas e morrerão secos. — Tiney inferiu em concordância.
— Soube, por uma mulher que vê o futuro, que eles destruirão e poluirão vários rios. — Mermeide se mostrava preocupada. — Não sei se creio em tal informação, os tolos não conseguem viver sem água, por que destruiriam as fontes?
— Eles destroem a terra também, e é onde plantam os alimentos. — Domhany acrescentou em tom seco.
— O que faremos com a destruição de nossas moradas? — Mermeide questionou.
— Não sei o que faremos, talvez aplicar alguns castigos. — Sugeriu Gaothin.
— Um furacão? — Domhany disse com voz risonha.
— Uma chuva de fogo. — Foi a vez de Tiney sugerir.
Parei de prestar atenção na conversa deles assim que senti a energia de Jaci. Veio pelas minhas costas e parou na minha frente. Jogou algumas coisas na fogueira e um cheiro forte e bom tomou o ambiente. Minha cabeça ficou leve.
— O que é? — Perguntei sem abrir os olhos.
— É umiri e molongó. — Respondeu.
Olhei para a madeira que crepitava enquanto apreciava aquele aroma encorpado que tomou o ar.
— Está pronta para aprender a nova técnica? — Jaci alertava nas entrelinhas que era para eu estar atenta.
— Sim, estou. — Falei sem muito ânimo.
— O que aflige seu coração?
Os olhos de Jaci acompanhavam a dança do fogo.
— Saudades. — Suspirei.
— Seu avô é uma pessoa boa para você, deve mesmo sentir saudades dele.
Sem me conter, deixei vazar em lágrimas a dor que apertava meu peito e me sufocava. Eu não saberia dizer se fui influenciada pelo aroma no ar ou pelo fato de que eu precisava desabafar, mas a angústia saiu.
Jaci olhou para o fogo e sua face entristeceu. Pela primeira vez desde que eu chegara ali, ela decidiu abrir o coração.
— Quando cheguei a Avalon eu não era uma mulher inteira mais. Tornei-me penas cacos de uma pessoa. Essa história começa há muito tempo atrás, quando vim ao mundo. Cresci como uma menina comum, que brincava pelas matas, com os bichos, fazia colar de sementes, enfeites para o corpo, vivia com minha família e não tinha preocupações maiores. A única singularidade de minha existência eram meus cabelos. Meus amigos me chamavam de "criança velha". Talvez em outra tribo tivessem me sacrificado por acharem que eu era uma maldição dos deuses, mas Tupã é sábio e me fez nascer na oca de alguém tolerante.
"Eu amava meu povo e amava minha vida. Cresci como qualquer criança e me tornei uma jovem em nada diferente das demais. Apaixonei-me como manda a natureza comum, mas o infeliz não era de nossa tribo. Seu nome era Raoni. O destino é obscuro demais para imaginarmos suas artimanhas ruins."
"O povo de Raoni não gostava de mim. Chamavam-me de espírito mau e diziam que eu era amaldiçoada. Mesmo assim Raoni dizia que eu era boa e diferente, filha da própria Jaci, a lua. Jaci para alguns povos de onde venho é a deusa da lua. Enfim, Raoni ia ser pajé de seu povo, curandeiro, mas ele preferiu fugir comigo."
Jaci olhou para a lua como se ela fosse um destrave para sua memória.
— Em uma noite enluarada nós escapamos. Fomos para muito longe. Saímos da terra quente e fomos para terra fresca, perto do grande rio que vocês chamam de mar.
"Eu e Raoni fizemos uma oca onde vivemos sozinhos por muitos dias. Tantos que não poderíamos contar. O passar do tempo não é importante quando estamos felizes. Não fiquei prenhe porque ele conhecia muitas ervas que evitavam a cria. Eu não queria filho, mas ele queria. Não importava, eu que mandava em mim. Estudei as ervas com ele. Muitas e muitas ervas, além disso, aprendi rituais."
— Como ele era? — Interrompi e Jaci me olhou de um jeito estranho, como se tivesse sido arrancada das brisas doces do passado.
Ela sorriu e olhou novamente para o céu.
— Ele era alto, forte, com cabelos negros lisos e rosto anguloso. Era muito bonito. Tinha pele avermelhada e quente, e outras coisas que uma menina como você ainda não entende.
— Ele morreu? — Perguntei sem me tocar do quão cruel era aquela pergunta.
A expressão de Jaci foi de sonhadora para perturbada.
— Nós não sabíamos que tínhamos habilidades especiais, até que espíritos maus começaram a nos caçar. Foram anos e anos a fio, nos defendendo como podíamos. — Jaci suspirou. — Raoni começou a falar com os que já morreram e com entidades de outros mundos. Naquela epoca eu não via a maioria deles, meus olhos espirituais não eram abertos. Às vezes eu tinha medo, e uma ou outra vez me recusei a dormir em sua rede. Raoni ficava muito triste e nem sempre entendia. "Dormíamos durante os dias, pois durante a noite era preciso lutar."
"Depois de muito tempo comecei a ficar com menos medo e mais raiva daquilo que acontecia. Não vivíamos em paz. Sempre alguém queria nos matar ou nos levar e foi em um acesso de raiva que meu corpo pegou fogo. Raoni pulou bem longe de mim e olhou assustado. Apavorada, corri para um rio e me joguei lá dentro, mas o fogo não apagava. Não pelas águas, é claro, quando apagou foi porque me acalmei."
"A notícia de minha existência se espalhou pelos ventos, e sem saber exatamente o que eu era, vivi atormentada. Até que um dia aconteceu..."
"Um dia chuvoso... Um exército de mortos cercou nossa morada. E eu senti medo, muito medo. Não tinha maneira de escapar. Não uma maneira certa. Assustado, Raoni largou seu arco e me abraçou. Eu não conseguia admitir que morreríamos ali... fechei os olhos e desejei uma saída. Ela veio... Meu corpo explodiu em chamas."
A voz de Jaci estava embargada. Era como se tivesse uma bola em sua garganta. Seus olhos ficaram marejados enquanto refletiam o brilho do fogo. Os Elementais já não conversavam mais, apenas guardavam um respeitoso silêncio pelo ar de tristeza.
Esperamos até que Jaci estivesse pronta para continuar sua história, o que aconteceu após algumas lágrimas grossas correrem por sua face.
— As chamas vieram em uma explosão... — Sua voz saía com dificuldade. — E acertaram-no, sem piedade.
Jaci colocou as duas mãos sobre o rosto e deixou sair um choro cheio de soluços.
— É uma terrível maldição. Uma ameaça! A pessoa inexperiente no uso do fogo sempre machuca alguém a quem muito ama. Todas elas machucaram alguém. Não está na biografia, mas machucaram. Todas sem exceção. Avalon é minha família, e eu não queria você aqui porque você ainda não machucou ninguém, mas vai machucar. É a maldição do fogo. — Jaci deixou as palavras caírem de sua boca, como pedras. — Eu arrastei o corpo de Raoni até o rio e o joguei, pedindo para Tupã proteger seu espírito. Foi tão difícil.
"Para chegar até o rio, queimei tudo que nos cercava. Voltei para o lugar onde ficava nossa morada, peguei meus pertences e saí sem direção. Foram anos vagando até que Mahina, durante uma viagem, me encontrou. A notícia de que eu não era da Europa me fez bem conhecida. Ela reconheceu principalmente porque eu pintava Guaraci, o sol, na testa."
Jaci parou por alguns minutos e controlou o choro.
— Eu realmente estava perdida. Descobri a bebida alcoólica dos homens brancos e bebi todos os dias até perder a consciência de quem eu era ou para onde eu ia. Para me manter, eu roubava, era fácil. Às vezes me deitava com um ou com outro apenas pelo desprazer de sentir o calor de outro corpo que não era aquele do homem que amei. Eu odiava dormir, porque todas as malditas noites eu sonhava com Raoni.
"Certa noite sonhei que ele corria pela mata montado em uma onça gigante. Senti um arrepio percorrer minhas costas. Era como se ele estivesse vivo novamente."
Jaci sorriu tristemente.
— O fato é que Mahina me resgatou de uma calçada imunda e me trouxe para Avalon. Aqui aprendi e refinei a técnica que lhe mostrarei.
A mudança de foco para o assunto da técnica me fez perceber que o amor perdido ainda a machucava tanto que ela não conseguia mais falar sobre aquilo.
— Estou ansiosa para ver sua técnica. Chamam-te de fênix... Por quê? — Indaguei tentando ajudá-la a mudar de assunto.
Os Elementais olharam para ela esperando a resposta, assim como eu. Jaci olhou para o céu e suspirou como se fosse um fardo passar tal informação.
— Me chamam de fênix porque enquanto estou em chamas, completamente em chamas, se me extinguirem e restar apenas uma labareda, dela me refaço.
Ergui uma sobrancelha sem entender direito o que ela quis dizer.
— Se levante Merak. Vou te mostrar minhas técnicas. — Ordenou.
Jaci se levantou e andou até um pouco longe da fogueira. Segui porque imaginei que era o que eu deveria fazer. Ela firmou os pés no chão e puxou a terra, provocando um pequeno tremor. A terra grudou em toda a extensão de seu corpo, até deixar de fora apenas rosto e cabelo. Jaci incendiou a terra e a ela se tornou tão quente que incandescia vermelha sobre sua pele. Borbulhante. Até correr como fogo líquido.
O ar à nossa volta ficou tão abafado que comecei a suar em bicas. Jaci andou em minha direção e sua terrível armadura não escorreu para o chão apesar de ser líquida. Era como a lava de um vulcão. O calor me ameaçava. Os Elementais nos observavam um pouco assustados e Jaci abriu um sorriso irônico.
— Deixará que eu a machuque? — Provocou.
Observei... Meu elemento era o fogo, então aquilo só podia ser uma anedota.
— Não há como você me machucar. Meu elemento é o mesmo que o seu. — Respondi com certo pedantismo.
Ela sorriu mais largamente. Por onde andava o solo ficava carbonizado.
— Você pensa assim? — Me deu uma última chance de retratação.
Olhei para ela, com um pouco de dúvida. Então, Tiney gritou "não seja tola", mas ao mesmo tempo Jaci jogou fogo em mim. Uma partícula do tamanho de um grão de arroz, que caiu no meu braço como uma pedra e queimou como o inferno.
Aquela gota abriria um caminho em minha carne até chegar a meus ossos se eu não tivesse me sacudido para que ela caísse no chão.
Olhei a carne queimada que doía em um contínuo agudo e terrível. Meus olhos ficaram embaçados pelas lágrimas acumuladas. Eu sentia raiva, mas a dor era tão grande que ofuscava todos os impulsos.
— Eu tentei avisar. — Ouvi Tiney falar.
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Umiri: Árvore comum das Américas central e do Sul. Principalmente na Amazônia.
Molongó: Árvore amazônica de madeira leve que é utilizada na confecção de artesanatos e de móveis.
O óleo balsâmico de Umiri e a essência de Molongó eram utilizados em rituais para confecção de Muiraquitãs, uma espécie de amuleto sagrado.
Eita que a Jaci abriu o coração. Será que Lira machucará alguém?
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