Faz-se necessário
Chegamos à sala azul, onde toda a decoração era da dita cor. Sobre um grande tapete, um piano de calda descansava com um vaso sobre ele, cheio de flores frescas. Entramos todos e vovô fechou a porta atrás de nós. Melhor dizendo, vovô trancou a porta. Olhamo-nos sem saber exatamente o que falar e o que fazer, até que Borjan colocou a mão no ombro de Ana, recebendo um contemplo de expectativa.
— Minha flor, toque e cante ao piano para que sua mãe veja seu talento. — Requisitou.
— Sim, pai. — Ana assentiu com a cabeça e dirigiu-se ao piano.
Eu, vovô e Borjan nos acomodamos em estofados que haviam por ali. Reconheci aquele no qual sentei junto a Borjan como sendo o do enorme mural no salão de bailes, já vovô, escolheu uma poltrona. Ana começou a tocar o piano em uma breve introdução lenta e melancólica, mas logo a música se alegrou ganhando ritmo mais ligeiro. Havia letra a qual ela cantava, abordando a temática de uma noite quente no jardim. Todos nos deleitamos com sua voz incrivelmente afinada.
— Não conheço esta canção. — Comentei com a cabeça deitada no ombro de Borjan, que me abraçava pela cintura com um dos braços enquanto o outro estava pousado sobre a coxa.
— Também pudera, é uma criação dela. — Contou cheio de pompa.
— Que perfeição! — Exclamei impressionada. — Foi ela quem escreveu as partituras?
— Não. — Borjan respondeu com voz rouca e baixa, senti seu peito vibrar. Vovô nos olhou com rosto retorcido em nítido desgosto. — Foi um rapaz dos arredores com quem ela tem tomado lições. Seu avô acredita que eles se gostam e não quer que Ana tenha um romance tão jovem.
Eu ri.
— Ele está certo, ela ainda é muito menina. — Falei para Borjan e a expressão de vovô passou de desgosto para superioridade.
— Nada acontecerá. Sempre os acompanho onde quer que estejam. — Borjan me tranquilizou. — É parte divertida de ser pai.
— Você sabe que vou para a batalha e não sabemos se voltarei, Borjan. Cuide bem de minha bisneta. — Vovô solicitou sucinto, mas seu tom era imperativo.
— É minha filha, velho. Lógico que cuidarei bem dela. — Borjan respondeu um pouco grosseiro, mas havia algo mais ali. A relação deles era amorosa, mas sempre se alfinetavam quando possível.
Vovô riu.
— É mais fácil Ana cuidar de você do que você cuidar dela. — Comentou com desdém.
Borjan abriu um sorriso.
— Não nego, velho.
Ana finalizou a canção e eu aplaudi.
— Fantástica sua composição, filha. — Cumprimentei inchada de orgulho. — Um talento que não tenho.
Ana assentiu com a cabeça e começou a tocar mais uma música.
— Você sabe que precisamos partir rápido, não é vovô? — Questionei e vi que Borjan tinha expressão de decepcionado.
— Sim, Lira. Já está quase tudo pronto para nossa partida. Sugiro que tome banho enquanto visto minha armadura e pego a sua.
— Armadura? — Perguntei. Eu nunca usara armadura antes.
— Sim, armadura, Lira. — Meu avô levantou olhando-me com seriedade e depois se virou para Ana. — Ana, sua canção é extraordinária, mas eu e sua mãe não poderemos permanecer por muito tempo. Venha ajudar-me, você pega a armadura de sua mãe enquanto visto a minha.
Lancei o olhar em Borjan.
— Ela sabe? — Questionei sobre nossa partida.
— Não escondemos nada dela. — Respondeu simplesmente. — Deixá-la inconsciente da verdade seria colocar sua vida em risco.
— Sim, você está coberto de razão, amor meu. — Beijei rapidamente os lábios de Borjan.
— Poupem-me. — Vovô resmungou.
Ana levantou-se do piano, arrumou o vestido elegante com graça singular e foi impossível não imaginar como seria se Lwana estivesse viva e crescida.
— Sim, vovô. — Respondeu com um sorriso triste. Ela sabia que eu partiria e talvez não pudesse voltar porque morreria em batalha. — Você vai gostar da armadura, mãe. Eu mesma ajudei vovô a desenhar.
— Estou certa que sim. — Respondi sentindo o coração apertado como se estivesse amarrado por muitas cordas.
Ana andou até vovô que estendeu o braço para ela pegar. Obediente, a pequena Ana Merak passou a mão pelo braço do bisavô, que de surpresa a pegou no colo, arrancando risos daquele rostinho triste. Vovô andou até a porta e a destrancou enquanto ainda segurava minha filha, depois saiu correndo com ela pelo corredor. Ana gargalhava com a diversão.
"Mais rápido que um cavalo!" — ouvi-a gritar ao longe.
Suspirei e olhei para Borjan que tinha no rosto um misto de sentimentos. Amor, decepção, orgulho, amargura... Seus cabelos grisalhos desalinhados, as pupilas negras refletiam meu desgrenho.
— Ela se parece muito com você. — Falou. — Não muito na personalidade. Com quatorze anos você era mais tímida.
— E não era tão talentosa. — Retruquei. — Que jóia preciosa coloquei neste mundo. Se Lwana estivesse viva ela também seria...
Não consegui terminar a frase. O ar me faltou e a voz ficou embargada.
— Especial. — Borjan também ficou com a voz embargada. — Sim, ela seria.
Levantei-me do estofado e Borjan me seguiu.
— Aonde irá? — Questionou perdido.
— Tomar banho e trocar de roupas. — Respondi. — Preciso ajudar a impedir uma doidivanas de dominar o mundo junto com seu amado maléfico. Parece conto de fadas, mas é a realidade. Aliás, contos de fadas também são realidade.
Suspirei enquanto entrávamos no corredor.
— Isso é mentira, onde está a magia que não vi? — Respondeu irônico.
Virei rapidamente e acertei um chute na parte de trás do joelho de Borjan que começou a cair assustado, mas o aparei no colo e o ergui nos braços. Abri minhas asas e comecei a voar pelo corredor estreito, derrubando alguns móveis.
— É magia que você quer? Magia você terá. — Sorri e ele também.
— Iupi! — Comemorou agitando os braços.
Voei com Borjan no colo até chegar a meu quarto onde o coloquei sobre a cama. Fui para a sala de banhos, abri a janela e puxei água da noite úmida, enchendo a banheira que logo esquentei. Quando tornei o corpo para ir pegar sabão e esponja, Borjan já estava na porta, com tudo em mãos. Colocou os utensílios sobre uma mesinha de madeira ao lado da banheira e começou a se despir. O corpo começava a perder a vigor da juventude, mas eu sentia a mesma atração de antes. Despi-me também, enquanto ele me olhava com desejo.
— Parece tão errado. — Falou com olhos vidrados em minhas curvas.
— O quê parece errado? — Questionei com voz rouca admirando o membro que dava sinais de muita vitalidade.
— Ter seu corpo tão jovem sendo o meu tão velho. — Respondeu meio rouco.
— Você não é tão velho, temos quase a mesma idade. — O abracei, sentindo o calor de seu corpo nu unindo-se ao meu.
— Não é o que parece. — Borjan enfiou os dedos entre os cabelos de minha nuca e tombou minha cabeça para o lado, abrindo espaço para beijar meu pescoço.
Soltei um suspiro de prazer ao sentir os lábios úmidos tocarem minha pele.
— Não importa o que parece. — deslizei as mãos subindo pelos braços de Borjan até chegar aos ombros, e depois as desci pelo peito onde pêlos negros e brancos se mesclavam. — Importa o que é.
Abaixei a mão até o membro rijo enquanto ele me tomava os lábios em um beijo urgente, chupando minha língua com sua boca doce, o que deixou meus mamilos intumescidos a ponto de doer. O desejo represado transbordou.
Borjan aproveitou os dedos enroscados em meus cabelos e puxou minha cabeça para trás, fazendo a graça de colocar-me para olhar em seus olhos.
— E se não for de minha vontade? — Perguntou rouco de desejo.
— Somos casados, você me deve isso. — Cobrei a promessa feita diante do altar.
Borjan beijou-me o queixo, o pescoço e a clavícula. Depois desceu a língua até chegar aos mamilos, onde fez um carinho tão suave que me fez queimar. Devagar entramos na água da banheira. Meu banho não foi apenas um banho, mas a união da carne que se amava desde muito tenra idade. Desde que eu não sabia e não entendia o que era amor.
Como em outras ocasiões, foi impossível não envolver-nos em meu fogo, mas Borjan gostava daquilo. Era uma espécie de incentivo para que ele ficasse ainda mais desejoso de ter-me por inteira.
Cerca de duas horas depois eu estava vestida e penteada, assim como Borjan, que me fitava com um sorriso bobo nos lábios.
— O que acontece, bobo alegre? — Questionei divertida.
— Ora, um homem fica feliz em fazer amor depois de anos. E, um homem se sente sublime após fazer amor com a pessoa que ama, depois de anos sem vê-la. — Respondeu com sorriso fácil.
— Para mim é como se fossem apenas dias. Se eu contasse minhas aventuras, seria impossível você acreditar, bem sei. — Refleti mais que respondi.
— Não sei o que há entre o céu e a terra, mas sei que é bem maior que minha compreensão. Você está lutando pela vida e é apenas isso que penso sempre que sinto saudades. — Borjan abraçou-me e beijei seu pescoço. — Se fizer isso, faremos amor novamente. — Avisou.
Soltei-o a contragosto. Alguém bateu à porta de meu quarto naquele justo momento.
— Que tempo perfeito. — Murmurei enquanto ia abrir.
— Eu consegui ouvir a conversa. — Vovô gritou do lado de lá. — Não podemos deixar que vocês façam... Contratempo... Outra vez.
Ana olhava para todos nós sem entender o significado de "contratempo".
— Vovô! — Repreendi e ele riu.
Meu avô estava com os cabelos presos para trás, amarrados por uma tira de couro, e vestia uma armadura negra com detalhes alaranjados. O material era mais bem feito que o das armaduras tradicionais e cobria peito, costas, braços, pernas e pescoço, mas era muito bem articulada, permitindo movimentos naturais. No peito, o brasão dos Merak. Presa na cintura uma grande espada.
Nos braços, ele e Ana traziam peças de metal acolchoado que supus ser minha armadura.
Precisei de ajuda para colocá-la, mas era muito confortável. Toda ela funcionava como o anel que vovô tinha feito, então muitas partes eram retráteis. Cobria meu corpo quase todo, exceto a parte da frente do quadril. Era negra também e o brasão dos Merak vinha no peito sobre o coração. Tinha o brasão de Avalon nas costas.
Eu não precisava trançar os cabelos. Estavam curtos o bastante para não me atrapalharem em batalha.
Era chegada a hora mais dolorosa. A da despedida e da partida.
— Estamos prontos. — Falei para vovô Barakj.
— Lupvittel nos espera para guiar até o portal que levará a Sagarmatha.
O ambiente foi tomado por tensão e tristeza. Ana abraçou-me e quase não pude sentir seu toque sobre a armadura. Afaguei os cabelos de minha criança e beijei-lhe o alto da cabeça, aspirando bem o cheiro de moça que Ana tinha. Na flor da idade, diferente de mim quando contava os mesmos anos, ela era amada, protegida e nunca comeu restos para viver. Ana tinha sorte e eu esperava que ela crescesse sabendo do privilégio que tinha, para nunca olhar com superioridade aos demais que não tinham fortuna.
Peguei seu queixo e a fiz olhar em meus olhos.
— Ana, você é uma moça afortunada e será uma mulher poderosa. Não sei se retornarei — os olhos de minha filha ficaram marejados —, então quero que me prometa ser justa e gentil. Não deixe que o povo sob nossos domínios passe fome. Não coma se os demais não tiverem o que comer, não deixe que homens ruins batam em mulheres e crianças, não deixe que haja práticas injustas e não apóie a prostituição. Faça com que as mulheres tenham oportunidade de ganhar a vida com dignidade, sem que seja preciso vender o corpo para isso.
"O tempo é muito fluido sempre que me envolvo com magia, e agora seu avô irá comigo, então você e seu pai ficarão no controle de todas as terras e bens. Você é herdeira legítima dos Merak e dos Alioth e não existe outra pessoa além de você."
Ana me ouvia atentamente e assentia. Olhei para Borjan.
— Quero que criem uma casa para acolher órfãos e mulheres necessitadas. Temos condições de sustentar. Deixe o zelo do lugar por conta deles mesmo. Você mesmo deve gerir, Borjan. E você, Ana — olhei para minha filha —, dará lições de pintura para as crianças que chegarem. Quero que conviva com aqueles que não têm a mesma oportunidade que você teve na vida.
— Sim, mãe. — Ana assentiu.
— É meu último pedido. — Falei enquanto olhava no fundo dos olhos de Borjan. — Lembra-se de quando perdi tia Ana, Borjan?
— Lembro-me. Eu não tinha condições de ajudá-la e você trabalhava naquela taverna imunda com homens que se aproveitavam de sua condição. — Borjan fez uma careta de desgosto. — Nunca perdoarei meu pai e meu irmão, mesmo tendo... Morrido como morreram.
Borjan poupou os ouvidos de Ana dos detalhes sórdidos.
— Exatamente. Eu não quero que em nosso território haja moças, mulheres, crianças e até mesmo homens em tais condições, meu amor. Faça valer sua autoridade. Se não obedecerem, chame a família do amigo que pedirei para visitá-lo. — Borjan assentiu.
Inspirei fundo e soltei o ar com força porque não tinha como negar que havia chegado o momento do "ciao", o adeus. E quando esse momento chega, faz-se necessário ter coragem.
Abracei Borjan e beijei-o apaixonadamente, sentindo sua energia emanar para cada partícula de meu corpo. Ele chorou, mas eu me mantive impassível como a guerreira que fui treinada para ser. Abracei Ana e beijei sua bochecha uma última vez. Vovô já tinha se despedido dela e abraçou Borjan quando o soltei.
— Volte para sua festa, Ana. — Falei enquanto girava a maçaneta da porta.
Não olhei para trás. Vovô e eu saímos pelos corredores, ele com passadas pesadas e eu com a respiração difícil pelo choro abafado. Andamos até a entrada de alimentos, onde ninguém estava, apesar de as cozinhas permanecerem agitadas devido a festa que ainda ocorria em uma parte do castelo.
Caminhamos rápidos até o bosque. O metal das armaduras retinindo a cada passada. Não falávamos, não chorávamos, éramos endurecidos demais para tal. Fomos curtidos no calor da esperança, forjados a ferro e fogo para enfrentar os piores inimigos. Não importava o tempo que passado meu avô ainda era um general. Não importava se eu ainda não tinha ido para a guerra, pois minha vida toda foi uma luta sem fim, e eu ainda estava em pé.
Eu tinha fé.
Andamos tranquilamente pela floresta até que estivéssemos tão dentro dela que o escuridéu não nos deixasse enxergar. Foi quando lancei no ar uma orbe de fogo para iluminar nossos caminhos.
— Quando descobriu a existência do clã dos lobos? — Questionei a vovô.
— Quando caçava por estas matas e me abordaram. Descobri que um deles tem grande apreço pela companhia de Ana. Cuida dela como se fosse um familiar. — Meu avô respondeu. — Não se preocupe em pedir novamente para que cuidem de Borjan e Ana, pois eles obedeceram da primeira vez. E quero que saiba que nunca deixei seu marido sem guarda porque eu quis, ele sempre os dispensou, não achava que fosse uma pessoa importante o suficiente para que alguém quisesse tentar contra sua vida.
Lembrei-me da carta que havia escrito para meu avô e sorri.
— Certo, vovô. Sabe que Meva é Katuryna? — Perguntei finalmente. — Quando pretende falar-me sobre ela?
— Katuryna era bela e gentil, mas de família sem bens. Apaixonei-me quando a vi pela primeira vez. Era um dia um pouco frio e eu passeava pelas terras dessa região. Ora, eu era moço e ela bonita. Flertei com seu coração. Tivemos alguns encontros, Katuryna cedeu-me sua inocência, mas eu não a quis mais depois. — Falou com amargura.
— Isso é horrível! — Condenei. Claro que eu devia ser a primeira a condenar o erro de meu avô, como mulher principalmente.
— Horrível, desprezível... Sim, você tem razão. Raros são os rapazes que, como seu marido um dia, mantém os pintos dentro de suas calças enquanto esperam por algo especial. — Ele fez uma pausa enquanto emitia um som estranho e grave vindo do fundo da garganta. Seus olhos ficaram vermelhos. — Já me orgulhei destes atos a certa altura de minha vida, mas nada como muitos anos passados para fazer um homem mudar de opinião.
— Ela matou a vovó. — Passei a mão por meus cabelos.
O rosto de meu avô se retorceu em uma careta assustadora, principalmente porque seus olhos vermelhos brilhavam intensamente.
— Tola. Sua avó tirou de dentro de mim o que havia de melhor. Se Lwana estivesse ciente da história de Katuryna, teria me feito procurá-la para pedir perdão. — Vovô disse com voz monstruosa. — Era esse o tipo de pessoa que sua avó era, você e Ana são exatamente como ela.
— Isso é um elogio. — Respirei profundamente.
— Não. — Vovô fez com que eu olhasse para ele. — Isso é uma exaltação. Lwana não era apenas minha esposa. Era também meu guia no mundo, minha religião, minha bússola e meu sextante. Quando ela morreu, parte de mim morreu junto. Quando seu pai morreu e não pude salvá-lo porque eu era o cão de Vlad, mais uma parte de mim morreu junto. Sua tia Ana morreu e levou mais uma parte de mim, mas você ficou. E por você minha vida voltou a ser honrosa.
Meu avô mirou em mim seus olhos vermelhos de fera e sua voz estrondou de jeito sobrenatural.
— Lira, se você morrer nesta guerra, eu não almejo continuar vivo. Não aguento mais. Todo homem tem um limite e este é o meu. — Confessou.
E na passagem da floresta para as rochas da montanha, meu avô caiu propositadamente com as palmas das mãos apoiadas na pedra. À nossa frente, do escuro, um som de flauta começou a ressoar e meu avô soltou um rosnado.
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