Etéreo agressivo
Antes do nascer do sol, quando as estrelas estavam mais evidentes no céu, eu já estava lá, em frente àquela entrada para algum local que ficava no subterrâneo. Olhei para os lados na esperança de que alguém saísse da floresta e me dissesse que a tarefa era apenas uma anedota, mas, evidente, isso não aconteceu. Fazia muito frio naquela madrugada. Nem mesmo minha capa de veludo negro conseguia me proteger completamente do vento cortante. Havia orvalho nas folhas das copas das árvores e o chão também se mostrava relativamente úmido.
Respirei fundo e olhei para o mapa que copiara do Livro de Tarefas. Sim, era ali.
Existia um aviso terminante para que eu não entrasse com absolutamente nada que iluminasse o lugar, então fui obrigada a deixar ali, no chão, minha lamparina a óleo cuja luz eu usara para me guiar pela floresta.
Abaixei-me e puxei as pesadas portinholas douradas onde havia o entalhe de duas mulheres, uma de costas para a outra. A primeira era prateada e a segunda dourada, ambas idênticas em suas formas. Depois de muita labuta para erguer o peso do metal, finalmente logrei meu objetivo. Felizmente havia um ponto positivo naquilo, pois o frio me abandonara durante o processo.
Inspirei o ar com força enquanto reunia coragem e expirei quando pisei no primeiro degrau da escada escura que conduzia ao subterrâneo. Desci, degrau por degrau, com uma mão apoiada na gélida parede de pedra, enquanto meu coração se sobressaltava de medo.
Quando o último resquício de luz me abandonou, senti-me ainda mais aflita, com a sensação de que não sairia viva daquele lugar. Era estranho, como ser enterrada viva, ou, como se tivesse sido abandonada para morrer.
O medo aumentava a cada passo. Senti meu peito pressionado pela sensação ruim. Minhas pernas fraquejavam e o receio da morte me tomou por inteira. Tentei voltar, mas minhas pernas ficaram pesadas demais e eu não conseguia erguê-las para subir os degraus. Não poderia voltar. Se desmaiasse, rolaria escada abaixo, e mesmo não sabendo a extensão da escada era certo que não chegaria com vida ao final.
A escuridão não era apoio naquela jornada. Tornou-se impossível enxergar e desejei que minhas habilidades estivessem sob meu controle.
Desejar não era o bastante, pois não tornava aquilo real.
Desci a escadas sob a pressão daquela sensação insuportável e senti certo alívio quando meus pés tocaram uma base mais larga. Não era um degrau, era um piso. Um piso liso. O escuro era silencioso.
Silencioso demais. De um jeito opressivo. Palpável.
O silêncio se transformou em um som agudo, constante, e o ar ficou tão pesado que, literalmente, começou a me esmagar. Era forte demais, desnorteante. Meus pulmões estavam vazios, pesados e ardidos. Meu corpo se curvou para o chão até que eu não me pudesse aguentar em pé e acabei por cair de joelhos.
Ouvi uma voz distante, mesmo estando quase incapaz de distinguir as palavras.
— Ela não pediu ajuda.
Silêncio. Mais dor, mais pânico.
— Ela não pediu ajuda.
A dor cessou, mas o peso ainda me empurrava contra o solo.
Uma luz se acendeu no centro da câmara de terra. Não, não era uma luz, eram duas luzes, uma dourada como o sol e a outra prateada como a lua.
Minha visão estava desfocada, mas eu podia distinguir a aparência de duas mulheres idênticas que emanavam brilhos distintos.
— Ela não clama por ajuda.
As bocas de ambas se moveram ao mesmo tempo. Entendi que falaram juntas, mas parecia ser a mesma voz, uma única voz.
— Onde está seu deus, Lira Merak? — Perguntou a mulher dourada.
Elas eram muito altas, esguias e tinham cabelos cacheados e volumosos que arrastavam no chão. Trajavam vestidos de mesmo modelo, mas cores diferentes. Vestidos incrustados de pedras.
— Onde estão seus deuses? — Perguntou a mulher prateada.
— Peça ajuda, Lira Merak! — Ordenaram.
— Quem é seu salvador? Aquele que te disseram que deves amar?
— Os demais deuses tomarão como uma ofensa, seus poderes são presentes deles. Por que não os cultua?
A mulher dourada defendia o deus que conheci na Igreja e a outra defendia deuses que mal conhecia. Elas me induziam a pedir ajuda para me livrar da dor. Qual a decisão correta a tomar? O que fazer? Uma oração?
— Tenha cuidado, Lira. O Altíssimo se ofende com pedidos que não sejam sinceros.
— Os outros deuses, eles a abnegarão caso aceite a tutela apenas D'Ele.
— Onde está sua fé, Lira?
De repente as mulheres não eram mais sólidas. Tornaram-se fumaça brilhante, circulando pelo ambiente e a pressão sobre meu corpo aumentou. Meu rosto já quase tocava o chão.
Sim, eu precisava de ajuda.
— Peça em voz alta, Lira.
— Sim, peça ajuda.
— Não peça aos pagãos, você será condenada.
— Não peça ao cristão, você será queimada.
Confusa, eu já não sabia qual das mulheres falava. A dor era tão forte que cerrei os olhos em um reflexo de defesa, me obrigando a suportar aquele peso que amassava minha carne contra o solo e forçava meus ossos. Os senti estalarem ao se vergarem quase ao ponto do rompimento.
— Você tem fé?
— Você sabe o caminho?
— Onde está seu caminho espiritual?
— A quem você serve?
— Qual o propósito de estar viva?
— Você crê?
Suas perguntas eram muitas e eu fazia mais que ouvi-las, eu sentia as dúvidas. Sentia no âmago do meu ser, onde jamais havia explorado antes. Havia um vazio ali. Uma dúvida singular.
Eu devia clamar por um deus. Era necessário clamar por ajuda, mas existia dúvida em mim, pois eu sempre servira ao deus cristão, no entanto, não sentia que ele era meu caminho. Não todo o caminho. Por que eu tinha dúvidas? Ele me salvou de ser queimada na fogueira! Porém eu não sentia que o servia com sinceridade e totalidade.
A dor aumentou. Não havia apenas a pressão sobre meu corpo. Eu sentia minha pele queimar e arder como se brasas acesas estivessem sobre ela.
Tentei gritar. Não consegui. Não havia ar. Eu estava sufocada.
— Peça, Lira.
— Se sua fé não for sincera, você queimará até a morte.
— Onde está sua fé?
— Em quem você crê?
— Apenas um deus é correto, clame por ele!
— Você foi para a fogueira e a culpa é D'Ele!
— O que sua alma diz? — Novamente o uníssono.
— Se mentir, morrerá.
— Matamos os mentirosos.
— Poder e falsidade são um veneno para o mundo! — Disseram juntas.
Meu rosto fora esmagado contra o chão de pedra. Sangue corria de minha boca. Meu corpo queimava em agonia e eu sentia uma estaca cravada em meu coração. Eu não conseguia respirar. Precisava de ajuda, mas não queria escolher. Não era certo escolher apenas um. Não era justo, nem sincero. Apesar de ser grata ao Altíssimo, outros deuses regiam minhas forças, eles também protegiam o mundo, também defendiam a humanidade.
Mas eu precisava escolher. Era obrigatório, ou eu morreria.
No entanto, se escolhesse apenas um, seria leviana em minhas crenças profundas, incompleta em minha fé. A fé que eu não conhecia, mas que habitava em mim.
Senti minha vida sair de meu corpo. Se esvaindo aos poucos, sem cerimônia.
Estava quase morta. Foi necessário decidir.
Perscrutei o profundo de minha alma e finalmente fiz minha escolha. Poderia morrer por ela, mas era autêntica. Era melhor morrer pela verdade que pela mentira. Sim, eu escolheria meu próprio caminho. O que achava correto. Era certo, justo...
Tentei abrir a boca e falar, mas meus lábios não se abriam. Não havia uma oração própria, não havia uma fórmula, era preciso seguir meu coração. Se minha voz não podia ser ouvida por elas, que meus pensamentos fossem ouvidos pelos deuses. Por todos eles. Mesmo que minha alma não fosse salva, me firmei no caminho que escolhi.
"Deuses... Eu não escolho. Certo é sempre aquele que ajuda, dá vida e faz florescer o homem e as boas coisas do mundo. A este propósito serve minha alma, meu espírito e meu corpo. Este é meu caminho!"
"Está certa de sua escolha?" — Um milhar de vozes disse em minha mente, dando-me a sensação de que ela explodiria tamanha a graça. Vozes esplêndidas. Que me fizeram sentir abençoada.
"Morrerei por ela" — Respondi. Uma lágrima correu de meu olho e caiu no chão antes que meu corpo explodisse em mil pedaços.
Este foi o meu fim.
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