Deusa
Mãos queimadas pelo veneno. Braços, pescoço e pernas machucados. Minha cabeça confusa se lembrava de pouco do que acontecera fora de minha ira. Fui arrastada para um lugar terrível. Um lugar de punição.
Levantei-me e acendi uma labareda em minha mão retalhada. A chama estava fraca demais, mas consegui distinguir dentre as úmidas paredes de pedra qual delas tapava a entrada daquele lugar. Corri contra a parede e gritei em súplica. Bati com os punhos fechados, mas a rocha fria apenas devolvia o silêncio. Não cessei o apelo. Bati até que meus punhos sangrassem.
Sem efeito, ninguém respondeu.
Tentei puxar o vento para forçar a pedra, mas não consegui. Minha magia minguava a cada instante. Naquele escuro um frio intenso começou a tomar meu corpo. Tentei acender uma pequena fogueira, mas apenas concebi uma faísca.
Abracei meu próprio corpo e comecei a fazer a única coisa que estava em meu alcance: chorar. O que acontecia? O que eu tinha feito? Aquela sede de sangue não era minha. Que monstro me tornou? E eu tentara ferir alguém inocente. Eu tentara ferir...
A voz de Timaki. Era Timaki bloqueando meu caminho. Timaki bloqueando meu caminho. E as demais Brujas me puxavam? Quem era a vítima? Quem eu perseguira?
A caverna era úmida demais. Eu chorava. Chorava sem parar. Apenas as lágrimas eram quentes. As lágrimas traziam o que estava em meu coração. Meu coração era quente. Não era um calor maldito e com sede de ira. Era um calor reconfortante.
Levantei-me, com a mão na parede andei até um canto onde sentei e me recolhi. Abracei meus joelhos novamente enquanto sentia uma pontada de dor no coração. Fechei os olhos, apertei as pálpebras e me peguei com aquela dor. Tentei entendê-la.
Era uma mensagem. Um clamor. Minha essência me chamava. Segui a dor até o profundo de meu peito. Até chegar a meu coração, que pulsava devagar, emitindo um som tristonho. Aproximei-me de meu coração e o toquei. Senti seu agitar na ponta de meus dedos e a mensagem que queria transmitir. A dor aguda de arrependimento. Tristeza pelo descontrole.
Peguei o coração de seu lugar sobre o pedestal e o abracei. Compartilhei da dor. Eu e eu mesma. Meu espírito chorou lágrimas de sangue. Como poderia um espírito chorar lágrimas de sangue? Meu espírito chorou.
Aos poucos, muito aos poucos, após centenas de milhares de pulsos... Acalmei-me. Havia conforto em sentir que ali era quente. Meu coração era abrasador.
Uma luz vermelha irradiou da escuridão e dela saiu um ser com cabeça de leoa, corpo de mulher e rabo de leoa. Tinha curvas perfeitas de fêmea, adornadas por uma roupa diferente e bonita. Seus olhos eram bondosos e dourados.
Por instinto tentei proteger meu coração, mas ela claramente não o queria. O ser aproximou-se de mim com os pés descalços, ergueu meu queixo com os dedos e olhou no fundo dos meus olhos.
— Lira... Sou Sekhmet. — Se apresentou.
— O quê você é? — Perguntei um pouco menos nervosa.
Ela se sentou à minha frente e cruzou as pernas antes de responder:
— Eu sou a Ira de meu pai, mas também sou a Justiça dele. — Replicou. — Sou uma deusa do Egito. Amada e temida.
Uma deusa. Eu encarava uma deusa.
— Por que está aqui? — Questionei tristonha. — Para me punir?
Sekhmet deu uma risadinha de fera antes de responder.
— Não, eu não viria punir você. Vim para contar minha história, pois também sou uma de suas protetoras e quero o seu bem tanto quanto os demais.
— Sua história?
— Sim. — Sekhmet confirmou. — Olhe para lá, lhe contarei minha história.
Sekhmet apontou um canto escuro para onde olhei.
— O que verá não pode ser dito a nenhum outro humano, Lira.
Concordei com ela usando de um aceno de cabeça.
Uma imagem surgiu no ar, era um palácio de paredes brilhantes e um ser irradiante apareceu assistindo a humanidade em uma projeção como aquela que eu via. Os homens estavam guerreando e muitos cadáveres eram amontoados sobre outros restos apodrecidos.
O ser, com cabeça de pássaro, corpo de homem musculoso e pele avermelhada irradiante como o fogo, tinha um sol sobre a cabeça que impossibilitava ver seu rosto em detalhes.
"Os homens estão fora de controle! — Gritou com ira para alguém que não aparecia na imagem. Coçou o queixo antes de continuar sua fala. — Precisam de uma lição. Se apreciam a guerra, lhes darei guerra. Se apreciam as pestes, lhes darei pestes. Porque eu sou Rá, O Sol, e nada escapa à minha vista."
As órbitas de Rá saíram de sua face, deixando dois ocos brilhantes. Ele aparou nas mãos os olhos recém extraídos. Os globos oculares brilhantes sobre as mãos foram apertados, esmagados um contra o outro e na face de Rá nasceram outros olhos.
Rá abriu as mãos onde havia uma massa avermelhada como sangue. Ele a jogou no ar, soprando fogo sobre ela. Aos poucos a massa foi moldada e se tornou um ser com cabeça e rabo de leoa, e corpo de mulher. O deus arrancou um fio do próprio cabelo e jogou contra o corpo de Sekhmet, recém criada, lhe cobrindo com uma armadura feita em pedras preciosas. Ele também arrancou um dente de si e com aquela parte fez uma espada, tão forte e brilhante quanto o sol sobre sua cabeça.
Rá jogou a espada para Sekhmet, que a pegou e se ajoelhou em sinal de obediência.
"Meu pai." — Ela disse.
"Filha, seu nome será Sekhmet, nascida de minha ira, de minha angústia e de minha indignação. Fará guerra e sairá sempre vitoriosa. Tuas mãos podem espalhar a praga e curá-la. Seu coração deve ser a balança da justiça de seu pai, pois o sangue será agradável ao seu paladar. Desça à terra do Egito e mate os homens que desobedecem minhas ordens, espalhando a guerra e o terror entre seus irmãos. Não tenha piedade, pois eles não se apiedam dos demais." — Rá ordenou.
"Sim, meu senhor."
Sekhmet rugiu. Sua cabeça acendeu, brilhando como o sol que existia sobre a cabeça de seu pai, para em seguida ser enfeitada por cabelos de labaredas. As presas ficaram maiores e os olhos se tornaram vermelhos como o sangue.
— Assim desci à terra para fazer a justiça de meu pai. — Sekhmet disse a meu lado. — Eu era sua Ira contra os injustos e me comportei como tal.
Nas imagens, Sekhmet apareceu descendo à terra, bem no meio de uma guerra. Ela rugiu e os homens se espantaram, mas sem medo dos deuses, tentaram atacá-la.
Sekhmet brandiu sua espada e começou a matar aqueles que lhe ameaçavam. Lutou contra todos que estavam no campo de batalha, matando-os com cortes e mordidas e banhando de sangue a terra do Egito. Sua fúria era impressionante, os rugidos, atemorizantes, e os olhos eram como faróis nas noites tenebrosas de guerra.
— Quando matei todos que guerreavam, parti para procurar aqueles que carregavam a intenção de destruir.
Sekhmet, banhada em sangue, abriu asas de fogo e partiu sobrevoando as cidades, soprando doenças sobre as casas, sobre as plantações e sobre as águas. Quando pousou outra vez, mais homens tentaram matá-la.
— Eu não via seus corações, apenas as ações cheias de ódio e desrespeito. E eu cumpri as ordens de meu pai. Matei todos. Mas a raiva é poder que se alimenta dele mesmo. Meu coração se tornou injusto, pois comecei a odiar a humanidade e seu desrespeito. Minha espada e minhas presas não descansavam. Eu queria mais, queria matar, queria punir... Queria me alimentar do medo deles.
Nas imagens apareceram os milhares de mortos e o rio de sangue que correu sobre a terra. Sekhmet, descontrolada, matava todo e qualquer mortal que entrava em seu caminho. Então novamente Rá apareceu, chorando lágrimas douradas como ouro derretido.
"Minha preciosa filha, você se corrompeu, volte para o palácio celeste antes que destrua a humanidade." — Rá comandou.
Mas Sekhmet não o obedeceu.
"Homens são corruptos. Todos que são inocentes um dia serão corruptos como seus pais. Não posso voltar meu senhor Rá, ainda não cumpri minha missão." — Sekhmet respondeu ao seu pai.
E a deusa continuou matando, indistintamente. Até mesmo os inocentes encaravam o fio de sua espada. Rá não queria assassinar a filha, então inventou um artifício para obrigá-la a parar.
Disfarçou-se de homem e desceu à terra onde preparou uma cerveja vermelha como sangue. Depois procurou um menino para quem mostrou a cerveja e instruiu-o a buscar uma planta e misturar na bebida. A criança se foi, e Rá se escondeu voltando à sua forma normal. A criança misturou a frutinha na cerveja e fugiu.
Sekhmet chegou ali e pensou que a cerveja fosse sangue, sedenta, bebeu todo o líquido, caindo em sono profundo. Rá saiu de seu esconderijo, pegou a filha nos braços e levou-a para o palácio celeste, onde a prendeu em um quarto. Ele ordenou para uma deusa com cabeça vaca que descesse para a terra e limpasse a bagunça deixada por Sekhmet.
— Meu pai me amava demais para deixar que me matassem, mas também amava os homens e não podia deixar-me exterminá-los. Além disso, os outros deuses do mundo me caçariam se eu continuasse, porém eu era jovem e não entendia toda a complexidade de uma ação impensada. Quando acordei fiquei furiosa — a narração de Sekhmet era acompanhada pelas imagens onde ela rugia e se batia contra as paredes —, mas a fúria era minha natureza primeira. Meu pai, munido de fé, me deixou presa até que me acalmasse.
— E você se acalmou. — Presumi.
— Mil anos. Foi o tempo que levou para que meu coração se abrandasse. —Sekhmet recolheu as imagens do ar e se voltou para mim.
— E então? — Perguntei.
— Então meu pai me ensinou sobre o bem e o mal e me ajudou a usar meus poderes de cura para auxiliar a humanidade. Desde então visito aqueles que têm ira e me alimento da raiva em seu coração, para que não descontem em seus semelhantes, durante atos impensados. Às vezes puno os injustos, muitas vezes ajudo os que curam.
— Você ajuda a todos?
— Apenas aqueles que têm fé em mim e me cultuam, porque eles me escolheram. Os homens são livres para escolher o deus que quiserem e nós devemos respeitar sua vontade. — Explicou.
— Qual o motivo de sua vinda até mim? — Me mostrei curiosa, pois eu tinha um ser inalcançável bem a minha frente.
— Vim para curar seu coração destruído pela Ira. — Respondeu com bondade. — Como eu, você se perdeu. Deixou-se dominar. Estava despreparada, mas isso não acontecerá outra vez.
— Como posso me controlar?! — Indaguei com certo desespero.
Sekhmet estendeu a mão pedindo para pegar meu coração. Com dúvida, olhei para ele e depois para ela antes de entregá-lo. Ela o pegou e senti suas mãos quentes sobre ele, como se estivessem em meu peito. A deusa soprou chamas azuis em meu coração, que passei a sentir leve como uma pluma.
— Esse é o peso do seu coração justo. Quando senti-lo mais pesado que isso, é porque deve parar.
— E se eu não conseguir parar?
— Chame pelo meu nome. — Seus olhos dourados se tornaram vermelhos. — E eu aparecerei para ajudá-la.
— Obrigada Senhora Sekhmet. — Agradeci.
Ela se levantou e colocou meu coração sobre o pedestal. Levantei-me também para um último cumprimento.
— Agora preciso ir para que você retorne à sua missão. Sua ira estará controlada. Seja humilde. — Recomendou.
Abaixei a cabeça em sinal de respeito e Sekhmet partiu, desaparecendo na escuridão. Olhei para meu coração e suspirei invadida pela paz que só existe no mundo espiritual. Uma pena que aquele momento não tenha durado.
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