Cara a cara
Voltei da casa de tia Ana depois de no decorrer das horas chorar como uma criança. Vovô não estava mais comigo e eu me sentia um pouco melancólica e desamparada. Por muito tempo minha tia fora minha única família. Era importante para mim ter um espaço conservado que era tão puramente "ela".
No caminho, pouco antes de chegar à casa de Borjan, encontrei a senhora Dorotey. Era uma viúva baixinha, magrela, de nariz comprido e cabelos lisos grisalhos. Tinha olhos castanhos muito espertos e andava um pouco encarquilhada.
— Vejam só — a velha me olhou de baixo a cima — que mulher bonita você é.
— Obrigada pelo elogio. — Agradeci um pouco encabulada.
— Como vão os preparativos para o casamento? — Perguntou como quem não quer nada.
— Bem, senhora Dorotey. Espero que nos agracie com sua presença.
— Certamente, menina. Certamente. Não poderia perder o casamento do único Alioth que restou. — Ela olhou para os lados antes de continuar. — E se quer saber, é o único que prestou também.
— Não sei o que dizer sobre tal afirmativa. — Na verdade eu tinha muitas opiniões, mas a prudência não deixa falar mal da finada família do noivo para uma senhora de língua afiada.
— Você tem a mesma opinião que eu, mas não quer falar. Está correta, menina. Nunca fale dos assuntos de família para aqueles que não são da família. Não é seguro.
Com curiosidade fitei o rosto daquela mulher. Surpreendida pela sua franqueza.
— Agora me diga... — ela olhou para os dois lados antes de continuar. Quando falou novamente a voz saiu em um sussurro. — Seu avô tem pretendente?
Soltei uma sonora gargalhada, mas parei quando percebi que ela não ria junto, pelo contrário, me encarava com ares de azedume. Era sério. Limpei a garganta antes de responder.
— Não estou inteirada dos assuntos amorosos de meu avô. — Tentei parecer tímida e reservada.
— Bem, se por acaso surgir a oportunidade, espero ser apresentada a ele.
— Claro, senhora Dorotey. — Concordei.
— Agora preciso ir. — Ela aprumou o corpo jogando os ombros para trás — Foi um prazer conversar com a futura senhora Alioth.
Senti meu rosto esquentar. Não me acostumava a ser chamada de "senhora Alioth".
— O prazer foi inteiramente meu, Senhora Dorotey. — Sorri discretamente.
A viúva se foi e deixou-me na rua com uma gargalhada ressonando internamente em minha mente. Segui meu caminho cantarolando e pensando que vovô estava bem arranjado de pretendentes. Ele ficaria perturbado quando soubesse, isso se já não sabia, claro.
Abri o pequeno portão e andei até a porta de entrada contando as pedras do calçamento. Girei a maçaneta ainda cantarolando, depois abri a pesada porta e entrei na casa. Coloquei o chapéu no suporte e ajeitei os cabelos e o vestido, caso encontrasse meu noivo queria estar alinhada. Seria no mínimo terrível se ele pensasse que estava se casando com uma vassoura, tamanho o desgrenho.
Senti cheiro de comida vindo da cozinha, mas ouvi a voz de Borjan vinda da sala, e apesar de ser uma escolha difícil, foi para a sala que segui.
Estupefata, com medo e envergonhada. Foi como me senti quando abri as portas da sala e fiquei cara a cara com meu passado recente. Eu tinha fugido deles, mas eles não me deixariam seguir o caminho da covardia sem cobrar a conta. Senti um nó no peito quando olhei para o rosto de Arthur. O peso de toda a minha culpa naquela cicatriz horrenda. Não adiantaria fugir afinal. Era preciso ter coragem.
Estranhamente, os dias que convivi com Borjan me deixaram mais confiante de minhas decisões e do caminho que eu seguia, por isso me senti firme para o enfrentamento.
Os convidados e meu noivo se levantaram para me receber. O ambiente parecia pesar sobre todos.
— Lira. — Borjan andou até mim. — Seus amigos vieram visitá-la.
Ele parou ao meu lado e segurou minha mão, transmitindo para meu coração uma maravilhosa sensação de paz. Durou o tempo de uma piscada, mas era bom sentir que eu tinha apoio. Respirei fundo e olhei para o teto antes de dizer algo.
— Sejam bem vindos ao nosso lar. — Minha voz saiu um pouco nervosa.
Élora, que segurava uma xícara, apenas sorriu. Arthur e Timaki também sorriram claramente desconfortáveis.
— Você é uma fujona, Lira! — Timaki reclamou. — Não acredito que fez isso conosco.
Olhei para Arthur antes de falar.
— Não era de vocês que eu fugia, mas sim de minha culpa.
— Não existe culpa se eu já perdoei você. — Arthur me cortou com seriedade. O lado do rosto dele que estava queimado dava a assustadora impressão de que ele odiava o mundo.
— Se ele próprio perdoou, o que nós poderíamos dizer? — Élora completou. — Me deixou desgostosa o fato de você sair sem avisar. Alguém poderia tê-la atacado pelo caminho, Lira. Já pensou em tal consequência?
Olhei para o chão, como uma criança repreendida.
— Quase morremos de tanta preocupação. Tentamos segui-la, mas você usou voo e ficou difícil seguir em seu encalço. — Timaki apertava uma mão na outra com certo nervosismo.
— Seu avô nos enviou um aviso de onde você estava. E nós viemos resolver esta questão de uma vez por todas. — Arthur disse.
Meu amigo se levantou do estofado onde se sentara um pouco antes, andou até mim e segurou meus ombros para em seguida olhar em meus olhos e falar:
— Não se martirize mais. É apenas uma cicatriz, Lira. E eu sou seu amigo. Não importa se meu rosto está imperfeito. O importante é que meu coração está tão pleno quanto sempre esteve.
Ele soltou meus ombros deixando em mim apenas a impressão da paz.Que homem admirável Arthur se tornara. Que homem!
— Saiba que sempre será bem vinda na ilha, Lira. Todos cometem erros, você não é pior, ou melhor, por isso. Somos criaturas singulares, mas nossa base é humana afinal. — Élora falou enquanto pousava o pires de sua xícara sobre a bandeja que fora usada para carregar o aparelho de chá.
— Não se torture, Lira! — Timaki chamou minha atenção com a firmeza de suas palavras. — A culpa nos torna vulneráveis. Não se permita passar por isto.
Borjan apertou minha mão com mais firmeza e meus olhos marejados começaram a derramar lágrimas de alívio. Aquela era a forma deles de dizerem que vieram até ali porque me amavam.
— Eu não vou mais carregar esse peso. — Prometi.
Borjan me abraçou e eu sequei minhas lágrimas em sua roupa.
— Ora, nem se casou e já está agarrando minha neta.
Ergui o rosto e vi que vovô estava na porta da sala e sorria.
— Vovô! — Fechei a cara em repreensão, mas soltei Borjan por precaução.
— Temos visitantes, que grande prazer! — Vovô se aproximou de Élora e a cumprimentou.
Borjan aproveitou a oportunidade dos cumprimentos e me puxou para fora da sala, para o corredor.
— Lira — ele mirou seu olhar nos meus olhos — eu os convidei para o casamento.
— Isso é ótimo!
— Eles insistem em ajudar com a decoração. — Avisou.
O sorriso que estava em meu rosto se tornou uma linha fina de preocupação.
— Usarão magia. — Presumi.
— Provavelmente. — Borjan passou o polegar na lateral de minha face delineando meu rosto. — Estive a pensar se não seria melhor usarmos a área do fundo dessa propriedade para realizar o casamento. É inacessível para curiosos e seus amigos podem ficar à vontade.
Sorri novamente.
— Você faria isso por mim?
— Eu esperei anos por você — ele aproximou o rosto do meu me fazendo mergulhar no verde de seus olhos. — Não importa aonde iremos nos casar, só importa que nos casemos.
Passei a mão em seu maxilar recém barbeado. Ele acariciou meu queixo com o polegar, que subiu para a linha de meu lábio inferior.
Borjan se aproximou devagar e me beijou. Uma mão em minha nuca e outra em minha cintura. Ambas me puxavam para seu corpo irresistivelmente quente. Os lábios macios e a língua ousada trabalhavam em um profundo ritual de provocação. Meu coração acelerou e minhas pernas afrouxaram sob o peso de meu corpo. Enlacei meus braços no pescoço dele, sedenta por mais daquele toque, mas um som nos interrompeu.
Soltei Borjan a contragosto e alisei o vestido, sentindo minhas bochechas afogueadas. Meu avô estava parado no vão da porta, de braços cruzados e sobrancelhas erguidas.
— Sinto muito, Lorde Merak. — Borjan se desculpou. — Preciso de um momento.
Borjan correu dali como um condenado à forca e eu não entendi. Vovô acenou para o cômodo de onde tínhamos saído.
— Venha fazer sala para suas visitas. — Disse com seriedade.
Respirei fundo e, constrangida, obedeci.
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