A reunião dos lobos
A dita algazarra era a ressonância de barulhos feitos pelos animais da floresta que ali se encontravam acomodados em repouso, no chão do espaço circular. Todos olhavam na mesma direção, o centro da grande câmara de pedra, onde, sobre uma rocha elevada havia uma mesa de pedra cercada por cadeiras onde sentavam-se dez figuras humanóides. Suas aparências eram mistura de lobo e homem, e assim como os traços da aparência variavam, as cores dos pêlos também não eram as mesmas. Havia castanho, castanho avermelhado, preto, alaranjado, amarelo e cinza.
Um deles, claramente ancião, pedia silêncio à bicharada que assistia.
Lupvittel, ao meu lado, começou a tocar sua flauta mágica e captou a atenção de todos os animais, fazendo com que fizessem silêncio.
Os transmorfos olharam em nossa direção e ao contrário do estranhamento que esperei por minha presença ali, eles na verdade sorriram, mostrando suas presas afiadas.
— Sou grato, Lupvittel. — Agradeceu o mais velho que tinha pêlos cinza claro e grandes sobrancelhas brancas cujo comprimento ia até a altura do queixo. — Não sei o que faríamos sem seu apoio.
— Não precisa agradecer, Veterilupus. E peço que não desvie do foco, pois se não ficarmos atentos essa reunião nunca terminará. Lembre-se que os animais precisam voltar para a floresta antes que algum comum note sua ausência. — Lupvittel com sua voz suave falou ao meu lado.
— Está certo. — O transmorfo de nome Veterilupus lançou o olhar sobre mim e apertou as pálpebras. — Você é quem penso que é?
— Se pensas que sou Lira Merak, então a resposta é sim. — Falei. — Lupvittel convidou-me para a reunião e aceitei, apesar de não saber o tema da conferência.
— Excelente. — Respondeu Veterilupus. — Aquela que você procura esteve na floresta.
— O odor da morte pôde ser sentido à grande distância. — Disse uma transmorfa de pêlo amarelo. — Agitou a todos!
Como se concordassem, os animais começaram a fazer barulho.
— Sim, Claralupus tem razão. Nós conseguimos sentir, mas somos criaturas mágicas de faro apurado. Os que não têm a mesma habilidade não conseguiram ver o perigo iminente. — Veterilupus explicou.
— Onde vocês moram? Na montanha? Meu avô parece ignorar vossa existência! — Comentei.
— Nós moramos nas aldeias e fazendas dos arredores. Somos quase humanos, conseguimos controlar nossas transformações. — Informou um transmorfo de pêlo profundamente negro e voz grave. — Vivemos entre eles para proteger as terras dos Carpaţi.
— Como, mesmo meu avô sendo um grande cão, não notou vossa existência?! — Exclamei indignada.
O mesmo transmorfo respondeu.
— Ele não nasceu como criatura mágica, mas foi transformado depois de adulto, suas habilidades são extraordinárias, porém não tem o refino das eras.
— Noctilupus está certo. — Disse Veterilupus. — Ele não tem o refino das eras, o trato dos tempos, e não percebe o perigo a não ser no último momento. Também não percebe que os Carpaţi são terras mágicas onde muitas feras vagam sob a lua.
Fazia sentido. Os montes Carpaţi tinham uma grande extensão e haviam milhares de lendas relacionadas àquela porção de planeta, possivelmente todas verdadeiras.
— Lira — Lupvittel olhou diretamente para minha face com seus três olhos de bezerro —, aquela escuridão de morte não é bem vinda entre nós. Os animais que ficaram no caminho daquela mulher, morreram. Não posso deixar que os animais morram, essa é minha função primordial. Trata-se de equilíbrio da natureza.
— Nós sabemos que ela queria alcançar sua família. — Falou uma transmorfa de pêlos acastanhados. — Nós sabemos porquê ela os odeia.
— Sim, Castaneilupus. Lembro-me bem de quando ela era humana. — Claralupus inferiu.
Algo me ocorreu.
— Como vocês podem morar tanto tempo entre os comuns sem que eles notem que há algo estranho?
Todos os transmorfos trocaram olhares, mas foi Veterilupus quem respondeu.
— A flauta de Lupvittel não serve apenas para chamar os animais. Ela também controla os homens. Nós chegamos como humanos jovens. Acompanhamos o tempo e em uma noite, quando já parecemos velhos demais para estarmos vivos, nós partimos. Quando a noite sem lua cai sobre a vida, Lupvittel toca sua flauta e suga da mente dos homens todas as memórias de nossa existência.
— É um processo muito delicado. — Lupvittel complementou a explicação. — Excluir as lembranças sem apagar as memórias e sem deixar um vazio sem sentido.
— Você refaz as memórias? — Questionei.
— Às vezes. As memórias mais fortes dos homens comuns são afetivas. Os transmorfos dessa região formam famílias entre si, portanto as memórias mais fortes nunca são formadas com os homens comuns. — Lupvittel explicou. — Assim, quase não há o que mudar.
— Depois do processo quem partiu volta jovem outra vez? — perguntei, sentindo os animais ficarem impacientes.
— Sim. Voltamos jovens, partimos velhos, voltamos jovens. — Noctilupus resumiu.
— Se formam famílias entre si, por que são tão poucos? — Interpelei. — Não se reproduzem?
Os transmorfos, mais uma vez, trocaram olhares entre si.
— Nossos filhos, quando temos, são presentes dos deuses, mas sempre que um de nós nasce, outro do grupo morre. É a lei para nosso clã. Não fomos nós que a fizemos, mas a aceitamos, pois o fino equilíbrio do mundo não deve ser quebrado. — Veterilupus replicou.
— Se vocês são transmorfos e podem se transformar em qualquer animal, por que preferem ser lobos? — Indaguei de maneira idiota. Não era essencial aquele conhecimento, mas era interessante.
Depois de um momento de silêncio os transmorfos caíram na gargalhada.
— Alcatéias são admiráveis enquanto estrutura social. — Respondeu Castaneilupus. — Lobos são fortes, resistentes e lidam bem com a solidão. Além disso, se algum acidente ocorrer e um comum nos ver, irá nos confundir com lobisomens.
— É mais difícil encontrar um lobisomem. — Disse Claralupus ainda rindo. — Um sétimo filho, de uma família desfeita que se transforma no dia de lua cheia. As lendas têm fundos de verdade, mas lobisomens são selvagens e raros. As condições para existência de um são difíceis de encontrar.
— Ficam intrigados por anos. — Disse Veterilupus. — Sempre buscando por uma família que entre na lógica de existência de um lobisomem.
Todos gargalharam outra vez. Pareceu-me que para eles aquela era a melhor piada e eu até entendia os motivos. A confusão gerada pelo engano devia ser hilária. Uma pena que eu não tivesse tempo de ficar e me divertir mais com as peripécias de meus novos conhecidos.
— Agora precisamos ser rápidos. Em pouco tempo o sol despontará no horizonte e faz-se necessário devolver os animais para a floresta. — Veterilupus disse, retornando a seriedade. E depois se dirigindo aos animais: — O mal tocou nossa floresta. Levou nossos irmãos e irmãs, e nós temos aqui a criatura que não deixará que isso aconteça outra vez.
Ele apontou para mim e todos os animais me olharam. De lobos comuns até serpentes.
— Há muito tempo uma mulher amou Barakj Merak, e não tendo sido correspondida, em nossa floresta jurou vingança. Nós ouvimos sua raiva e subestimamos até onde a rejeição a levaria. A mágoa de seu coração foi alimentada, ela buscou o auxílio do mal do mundo e voltou com o poder de mudar sua forma natural. Entrou no castelo sob os olhos de todos e matou a esposa do grande general de Lord Vlad. O objetivo principal dessa monstra era causar dor em Barakj, e sendo ele um homem muito amoroso e ligado à família o pior castigo para Barakj Merak é a morte de seus entes queridos. Porém recentemente nos chegou aos ouvidos que as ambições dela cresceram.
Um burburinho de preocupação tomou conta do salão da caverna. Os animais faziam sons que deixavam evidente o medo que sentiam, o que não era bom sinal. Veterilupus também parecia muito preocupado assim como os demais transmorfos.
— Katuryna aliou-se ao culto de Kinorotten, antes dela ele recrutou Rimek. — Um silêncio sepulcral tomou o salão. Muitos animais desmaiaram e ficou claro como água que seja lá o que Meva estivesse fazendo, era terrível.
— Quem é Rimek? — Perguntei para Lupvittel em um sussurro tenso.
— Rimek foi recrutado por uma entidade que quer se opor a todos os deuses e tomar domínio do mundo. A entidade entrou em uma dimensão desconhecida e não conseguia voltar, mas se um de seus seguidores tomar o poder seremos todos aniquilados para que comece seu reinado. Já Rimek, era um garoto com uma habilidade muito especial e única, mas o pobre foi golpeado e tornou-se um mau espírito que muda de forma.
— É preciso ser muito tolo para tentar derrubar os deuses, ele nunca conseguirá. — Falei.
— Se voltar, ele conseguirá! Para onde a criatura foi o mau te torna um deus. Um deus inevitável de destruição e dor. Se voltar para terra começará uma guerra. O mundo místico e o mundo comum irão se misturar, o caos terá início. Os deuses descerão ao planeta, mas não podemos deixar que isso ocorra, pois após vencer o inimigo, eles próprios podem tentar reclamar o mundo. Trata-se de preservação do equilíbrio ou destruição certa do mundo. — Lupvittel explicou. — Por isso os deuses nos colocam aqui para manter o equilíbrio. Eles não podem habitar conosco sem romper acordos.
— Eles são deuses, por que não criam mundos para si? — Questionei achando óbvia aquela premissa.
— Não me pergunte sobre a lógica dos deuses. Sou um mero subordinado.
— Lira Merak! — Uma voz chamou-me a atenção e olhei prontamente. — Se desejar seguir Katuryna temos o rastro.
— Sim, desejo! — Gritei.
— Pois bem, Noctilupus e Lupvittel lhe guiarão até um portal que a levará diretamente para as terras onde Katuryna foi. — Avisou. — Ela procura por um pajé poderoso, ele tem uma fórmula para libertar os mortos do além. Katuryna deseja trazer seu exército do Reino dos Mortos.
— Não permitirei! — Prometi.
— Confiamos em sua palavra. — Veterilupus afirmou.
— Se me derem a licença, desejo fazer-lhes um pedido. — Falei com humildade.
Todos se entreolharam preocupados.
— Diga. — Veterilupus incentivou.
— Cuidem de minha família. Principalmente de meu marido e de minha filha.
Os transmorfos sorriram com serenidade.
— Nós sempre cuidamos. — Respondeu Claralupus.
— Ele sempre dispensa a guarda, ficamos vigilantes nestas ocasiões. — Disse Castaneilupus.
— E não precisa pedir para cuidar de Ana! — Noctilupus se pronunciou.
Todos os humanóides gargalharam e fiquei perdida.
— Noctilupus adora Ana. — Lupvittel explicou. — Sempre que pode ele a visita. Ela gosta de histórias e ele as conta aos montes.
Lupvittel riu ao meu lado.
— Normalmente Noctilupus é muito ranzinza, mas com ela ele se abre como uma flor. É como se tivesse ganho uma sobrinha.
— Fico feliz por isso. — Meu coração se encheu de orgulho.
— Todos ficamos. — Retrucou com rapidez.
— Você também a conhece? — Questionei um tanto enciumada.
— Sim, quando ela anda pelos montes eu a vejo, mas ela não me vê. — Informou-me.
Uma voz distante chamou nossa atenção.
— Foi uma honra conhecê-la, Lira. Noctilupus e Lupvittel vão levar-te até o portal.
Noctilupus saltou do púlpito de pedra onde estava e bateu as patas em uma parede, depois em outra, então chegou onde eu me encontrava.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro