A culpa
Olhei meu patético reflexo no espelho. Meio despenteada, desfeita... Completamente culpada.
— Ela estava em sua forma sobrenatural e me atacou. — Continuei. — Entramos em um terrível embate. Saí muito machucada e o medalhão me manteve viva. Mas ela... Ela não tinha a sorte de ter uma família nobre ligada a alguma ordem de raízes místicas — as lágrimas caíram mais fartas —, e por mais que eu tente, não consigo me livrar da culpa.
Arranquei as presilhas com força, desfiz as tranças e me pus a escovar os cabelos, com raiva. Talvez, se me causasse outra dor, aquela sairia de meu peito.
— Às vezes eu sonho com ela. — Passei a escova pelos fios de uma forma tão rígida que poderia facilmente arrancá-los dali. — Sinto que vou enlouquecer com essa perseguição. E pior é saber, que estou mais segura aqui. Que lá, fora do domo, é pior. — Puxei uma mecha com mais força enquanto olhava para os frascos sobre a penteadeira.
Duas mãos seguraram as minhas com firmeza.
Vovô me obrigou a soltar a escova sobre a penteadeira, me fez ficar em pé de frente para ele e me abraçou.
Abraçou-me com força. Com o alento de seu amor. Aninhou-me entre seus braços como uma pequena ave machucada e depois acariciou o cabelo que antes eu usava para me torturar. Fechei os olhos, e senti seu corpo tremer levemente antes de uma gota quente cair sobre meu couro cabeludo.
Vovô chorava.
— Lira... — Falou com um tom que denotava seu lado mais frágil — É isso o que mais me dói. Você está pagando por uma culpa que não tem. Não são seus pecados, não deveriam ser seus inimigos e não era para ser seu fardo.
Entreguei-me completamente ao pranto.
— Você não pode ficar presa a essa culpa. — Disse com firmeza. — Você precisa esquecer, meu amor. Porque se não for assim, a loucura em breve será sua amiga mais íntima.
— É tão difícil. — Desabei, com a voz abafada por seu tórax.
— É Necessário, Lira. É sobrevivência. Você ou o outro. Não existe saída. Não há para onde correr.
Vovô Barakj me soltou, secou o próprio rosto e se joelhou para olhar em meus olhos.
— Se você é diferente, é porque deve ser assim, Lira. — Ele apertou meus braços de um jeito carinhoso. — Você precisa superar essa morte e outras que virão. Superar pelo seu próprio bem.
— Tentarei.
— Prometa, Lira. — Ele segurou meu rosto com ambas as mãos.
— Eu prometo. — Falei um pouco relutante e sem fitar seus olhos.
— Prometa com firmeza. — Insistiu.
— Eu prometo! — Pronunciei as palavras com intensidade.
— Minha garota. — Ele sorriu e me abraçou.
Do lado de fora da cortina de fogo, Timaki chamou meu nome. As comidas estavam prontas para o consumo imediato.
— Arthur e Borjan já estão lá! — Avisou.
Vovô se levantou do chão e esperou eu recolher a cortina de fogo - o que fiz com prazer, pois manter todas aquelas chamas me deixava cansada. E eu já estava com fome. Fui à sala de banhos e lavei o rosto antes de seguirmos para o local das refeições. Quando chegamos, meus amigos já comiam e bebiam enquanto cantavam uma alegre canção.
Os mares desbravei
Muitas lendas conheci
A moça que amei
Já não mora mais ali
No topo da montanha
Onde a casa construí
Deixei lá a minha amada
Antes de ela sumir
Vovô e eu nos sentamos enquanto cantávamos também.
Onde está minha amada?
Em qual gruta se escondeu?
Perdi minha namorada
E depois meu peito ardeu
Terminamos a cantiga aos risos.
— Sabiam que essa cantiga pirata é uma história real? — Timaki perguntou antes de morder o pernil suíno, que segurava com ambas as mãos.
— Não. — Respondi e arregalei os olhos, ávida por mais detalhes.
— Sim. — Foi vez de vovô falar. Ele colocou um frango assado inteiro em seu prato.
Timaki tinha nova concorrência.
Olhamos para ele na esperança de mais detalhes, e ele não frustrou nossas expectativas.
— Havia um pirata que carregava a alcunha de Bello. Ele navegava pelos mares, desbravando, saqueando e lutando contra monstros desconhecidos. Até que um dia desembarcou em uma ilha, onde havia uma bruxa. Alguns, dizem que sua beleza era ordinária. Outros, contam que era tão bela quanto o pirata. — Vovô deu uma pausa e mordeu o peito da ave.
Ele nem se deu ao trabalho de desmembrar a comida. Ergueu a ave inteira e mordeu o peito, como um medíocre sem modos. Adoramos aquilo, pois fez tudo soar mais divertido.
— Quando seus olhos se cruzaram pela primeira vez, debaixo de uma chuva forte, eles se apaixonaram perdidamente. Beijaram-se sob a chuva e... — Vovô nos olhou enquanto escolhia as palavras —... se amaram, sob a chuva.
— Ele quer dizer que eles copularam. — Timaki sussurrou para Arthur e Borjan riu.
Vovô limpou a garganta antes de continuar.
— Depois de algum tempo, o pirata percebeu que a chuva não parava, e desejoso de dar conforto a seu amor, no topo da montanha ele construiu uma casa. Lá eles moraram, por muitos dias. Mas o pirata se cansou daquela vida e voltou para o mar, deixando para trás sua amada com o coração partido.
Ele parou a narração e tomou um gole de vinho.
— E depois? — Borjan incitou-o a continuar.
— Depois de anos, o pirata sentiu saudades de sua amada e voltou, mas encontrou apenas a casa vazia. Naquele dia, foi tomado por uma dor tão arrebatadora, que tentou rasgar o próprio peito para arrancar o coração. É tudo que eu sei. — Concluiu.
— Será que essa história é real? — Perguntou Arthur.
— Francamente, não estamos em posição de duvidar. — Timaki o repreendeu.
— E ela não está errada. — Ergui minha taça na direção de Timaki enquanto olhava para Arthur.
— Um mundo cheio de mistérios. — Borjan refletiu antes de me lançar um sorriso e uma piscada charmosa que me fez derreter.
Vovô rosnou ao meu lado.
— Garoto indecente e folgado. — Resmungou.
— Que tipo de bruxa seria ela? — Arthur especulou.
— Impossível saber, existem tantos tipos. — Timaki pegou sua nova vítima, um peixe com molho de ervas.
— Não era uma bruxa. — Vovô interveio. — Essa gente comum chama todas as pessoas diferentes de bruxa.
— Se não era uma bruxa, então o que era? — Perguntei.
— Sim, o que era, Lorde Merak? — Borjan reforçou o questionamento.
Vovô dispensou os ossos em uma tigela posta para isso. Fez questão de manter a lentidão enquanto segurava o suspense.
— Bem... — Enrolou. — Contarei, mas não digam a ela que contei para vocês.
Todos assentiram com a cabeça.
— Era Elizaberta.
Coloquei a mão sobre minha boca escancarada de surpresa. Timaki olhou para vovô com os olhos arregalados e Arthur engasgou com a bebida, sendo acudido por Borjan, o único que não estava chocado.
— Nunca contei isso para vocês. — Vovô disse em tom de repreensão.
— Para onde ela foi? — Arthur perguntou.
— Ela não foi, Arthur. Ela veio. — Vovô respondeu. — Estava grávida e sozinha, perdeu a criança e ficou louca. Embarcou no navio de outro pirata e viajou por todos os lugares, até perder as esperanças e ir trabalhar em um bordel. Era famosa por estar sempre acompanhada de insetos, e por isso Morgana a encontrou.
— Minha nossa! — Exclamei.
Uma sombra surgiu na porta do local de refeições e todos olhamos assustados para a mulher.
— Velho língua de trapo. — Élora repreendeu. — Felizmente cheguei antes dela.
— Ora, Senhora Le Fay. As crianças que começaram. — Ele se defendeu.
— Nós?! — Perguntamos em uníssono, ultrajados.
Vovô lançou para nós uma piscadela cúmplice e todos riram.
Élora se sentou à mesa e serviu uma taça para si.
— Sua carroça está aí fora, Barakj. — Avisou.
— Depois que enchermos a barriga, daremos a ela a devida atenção. — Ele respondeu simplesmente.
A ceia continuou animada. A certa altura senti meu vestido apertado e desconfortável, e queria guardar os brincos que estavam em minhas orelhas. Pedi licença a todos e fui me trocar. Quando já tinha terminado de por outra roupa, um vulto passou pela janela de meu quarto.
— Tem alguém aí? — Perguntei.
— Sou eu, Lira.
Era a voz de Borjan. Ora, vovô o mataria se o encontrasse ali.
— O quê você deseja?
— Apenas mais um beijo.— Ele sussurrou.
— Borjan, se o vovô...
— Espero você ali, perto da floresta. — Falou antes de correr.
Com um sorriso travesso terminei de me arrumar. Saltei pela janela e corri atrás.
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