Capítulo II - Veritas lux mea
Contagem, Minas Gerais
(A data pouco importa)
Eu sei que é um tanto perturbador voltar no tempo só para contar sobre um evento isolado, mas faz parte da história. Espero que vocês me entendam, ou não.
Vou contar sobre um dos aniversários do Abner e de como ele fodeu com a própria vida. É bem chatinho, confesso, então não percam tempo com isso.
Lá estava ele na praia, deitado numa toalha que havia comprado no caminho. O sol escaldante incomodava sua pele quase pálida e aquilo o fazia arder completamente.
— Desde quando Minas tem praia? —Abner disse e eu senti seu olhar atravessando o reflexo da tela.
Meu Deus, não! Confundi a história KKKKKKKKKKKKKKKKKKK.
Copacabana, Rio de Janeiro
(Alguns meses atrás)
Agora sim.
Lá estava ele na praia, deitado numa toalha que havia comprado no caminho. O sol escaldante incomodava sua pele quase pálida e aquilo o fazia arder completamente.
Suas costas branquelas logo revelaram um vermelho ardente, no minuto em que ele levantou e foi em direção ao quiosque de bebidas. Ele queria beber? Também, mas sua real motivação era a tentadora sombra que cobria a única cadeira vazia do local.
Abner odiava o sol e era engraçado saber que ele não recusou ir a praia durante o verão. Seus amigos insistiram bastante e ele precisava curtir um pouco, mesmo que não entrasse na água do mar nem que o obrigassem.
No dia seguinte, ele faria 20 anos e, sinceramente, não estava nem um pouco animado. Seus aniversários seguiam um padrão: acordar, reclamar, passar o dia procrastinando e dormir de madrugada. Raramente havia uma quebra nesse padrão.
— Me vê uma água de coco e bastante vodka, por favor. —Abner resmungou enquanto dava tapinhas no braço.
— Pra já. —O atendente respondeu.
Seus amigos se divertiam naquela água salgada, como se estivessem comemorando os próprios aniversários, e Abner apenas observava incrédulo. Afinal, ele era o motivo para comemorar. Sem ele, não teria praia, mas ainda assim teria o calor infernal do verão.
— Aqui está, cavaleiro desolado. —O rapaz por trás do balcão entregou um coco sem a tampa e uma dose de vodka.
— Eu disse bastante vodka e não esse copinho mixuruca. —Abner debochou.
— Se quiser, a garrafa é toda sua.
— De graça?
— Lógico que não.
— Amanhã é meu aniversário, não tem nenhum desconto? —Abner piscou várias vezes, no intuito de parecer simpático.
— Posso cobrar metade do valor. —O atendente se aproximou do balcão. — Se não quiser, dê o fora.
A tentativa de parecer simpático não funcionou e Abner decidiu seguir uma abordagem diferente: imitar a carinha do Gato de Botas. A boca seca do rapaz deu lugar a um sorriso infeliz, como se visse a própria desgraça ou algo pior.
— Eu aceito essa porra de desconto. —Abner revirou os olhos. — Achei que Copacabana fosse mais solícita.
— Nós até que somos, só sou eu que tô tendo um dia ruim. —O rapaz se virou para a pia.
— Aí o problema é seu.
— Você é bem esquizofrênico, não acha?
— É, eu tomo remédio tarja preta.
Abner misturou a vodka na água do coco e tomou a bebida na própria fruta, exatamente como um troglodita faria. Sua garganta ardeu suavemente e ele sorriu.
— Qual é o seu nome?
— Kayc. —O rapaz começou a lavar os copos. — E o seu?
— Abner, com B mudo.
— Não perguntei como se escreve.
— Você também toma remédio tarja preta?
— Minha mãe já me levou no psiquiatra, mas eu desisti do tratamento.
— Ela tá precisando te levar é no veterinário, animal. —Abner abriu a garrafa de vodka e tomou um gole generoso.
Os dois ficaram ali se encarando e trocando olhares, mas não olhares de paixão e sim de conexão. Abner sentiu que ganhou um novo amigo tão perturbado quanto ele e isso o deixou mais animado.
Parecia bobeira, mas a sua intuição nunca falhou e ele sabia que esse rapaz era de grande valor. Kayc tinha apenas um único neurônio, assim como Abner.
— Quem é esse? —Um homem pouco maior e com roupa de academia interrompeu bruscamente.
— É um novo cliente do quiosque. —Kayc respondeu nervoso, como se ficasse com medo.
— Opa! —Abner encarou o homem. — Espera aí, seu porra.
— Mantenha a língua dentro da boca se não quiser que eu arranque ela. —O brutamonte semicerrou os olhos.
— Calma, amor! —Kayc interviu, segurando o namorado. — Não vá quebrar nada como da última vez, por favor...
— Mais tarde a gente conversa.
Abner assistiu perplexo àquele show de horrores e se imaginou no lugar do Kayc, tendo que aturar tamanha grosseria pavorosa. Inegavelmente, seu estômago revirou com a possibilidade.
Num leve esbarrão, o brutamonte derrubou a garrafa de vodka, que se quebrou ao tocar o chão. Sem dizer nada, ele saiu bufando e com as costas bem posturadas, dando o vislumbre de uma visão aterrorizante.
— Me desculpa, essa fica por conta da casa. —Kayc se apressou para colher os cacos.
— Não se preocupe, eu pago. —Abner sentiu pena do garoto.
— Tá tudo bem.
— Essa garrafa deve custar uns 40 reais e isso pra mim é pouco, mas e o seu amor próprio? Isso é impagável.
— Se tá falando do meu namorado, ele é assim mesmo. —Kayc disfarçou o olhar triste. — Não liga.
— Meio difícil depois de ver como ele te tratou. Ele tá precisando é de uma lição.
— Deixa isso pra lá, por favor.
— Ele já te agrediu?
Kayc fechou os olhos e suspirou. Era difícil esconder que o próprio namorado o agredia algumas vezes e mesmo que tentasse, não conseguia se desvencilhar por causa da dependência emocional.
— Não precisa responder, isso meio que ficou óbvio. —Abner pousou a mão no ombro do Kayc.
— Termina de beber isso, preciso fechar o quiosque.
— Vai fazer o que depois? Voltar pra aquele lixo de namorado? Sem chance.
— E o que quer que eu faça? —Kayc o encarou com medo da resposta.
— Mais tarde vou numa boate e quero que vá comigo. Você precisa se divertir um pouco.
— E os seus amigos?
— Que se fodam.
Kayc acabou concordando com a ideia e se preparou para fechar o quiosque. Abner pegou o seu número e voltou para a areia da praia, mesmo contra a sua vontade.
Sem grandes expectativas para o resto do dia, ele decidiu mandar mensagem para uma pessoa específica: o riquinho que bancou sua viagem à praia.
Abner era bom em conquistar o que queria e era um grande galanteador nas horas vagas. O riquinho, por infortúnio, caiu em seus encantos e se transformou numa espécie de Sugar Daddy.
Obviamente ele precisaria de algo, só não sabia ainda. A noite prometia esquentar bastante, só não no bom sentido.
O sol satânico deu espaço para a lua, que por sinal estava cheia e essa era a fase favorita do Abner. Falando nele, depois de se arrumar e sair escondido dos amigos, ele se encontrou com o Kayc.
Os dois combinaram de ir numa boate ali perto. O nome? Pouco importa. Tem a ver com vagina em inglês ou algo similar, mas isso realmente não tem relevância.
Eles estavam dispostos a aprontar coisas maquiavélicas, tudo em nome da lição que o namorado vagabundo do Kayc merecia. Como isso ajudaria em algo? Não sabemos, mas na cabeça do Abner fazia sentido.
Entrando na boate, o som alto tremia as paredes do local e era difícil escutar o que as pessoas conversavam. Estava lotado, todo mundo dançando e se divertindo com seus copos de bebida alcoólica em mãos.
No meio da pista, os dois fizeram sua morada. Não demorou muito para eles socializarem e se consagrarem como os reis da noite. Tudo estava indo muito bem, bem até de mais e Abner sabia que algo daria errado. Afinal, tudo na vida dele dá errado em algum momento.
Esse pensamento negativo logo foi trocado por um pino de pó, acompanhado de um homem extremamente gostoso. Abner queria muito beijar aquela cópia perfeita de um deus grego, então não poupou esforços.
— Tá sozinho? —O homem se aproximou do ouvido do Abner.
— Tô com meu amigo, mas ele não vai se importar se você me sequestrar. —Abner sorriu e mordeu o lábio.
— Vamos pro banheiro então.
Abner seguiu o homem até um dos banheiros da boate e montou uma fileira generosa de cocaína. Com um canudinho, ele cheirou a substância e sentiu seu nariz arder. Aquela sensação era maravilhosa e suas pupilas responderam ao estímulo.
O homem montou outra fileira e fez o mesmo, só que suas pupilas não responderam de acordo. Parece que o homem já estava loucão, mas que se foda.
Entre fileiras intermináveis de cocaína, os dois se beijavam intensamente e suas línguas trocavam saliva de forma indecente. Abner estava excitado e pronto para transar numa das cabines, e o homem recusava suas investidas.
— Não tá afim? —Abner perguntou desanimado.
— Eu não sou gay. —Ele respondeu.
— Porra, mas o que isso tem a ver? Cu é cu.
— Não me entenda mal, eu só não curto.
— Mas curte beijar e drogar, né? —Abner guardou o restante que sobrou do pino. — Eu sou menor de idade, caso queira saber.
Era mentira. Abner já era maior de idade e amava zoar com a cara dos babacas que se aproveitavam do seu rostinho inocente.
Sem tempo para perder, ele saiu do banheiro e largou o homem resmungando sozinho. A noite estava esquentando e Abner precisava reencontrar Kayc.
Para a sua sorte, Kayc estava no meio da pista e dançava como se não houvesse amanhã. Aquilo o alegrou e ele percebeu que seu novo amigo realmente precisava se divertir um bocado.
— Amigo! —Abner gritou.
Ele tentou chamar a atenção do Kayc, mas em vão. Seus olhos estavam presos em outro canto da boate: na visão perturbadora do namorado beijando uma prostituta.
Sim, era uma prostituta. A mulher estava de lingerie vermelha e usava um salto agulha tão grande quanto a vergonha que Abner sentiu ao ver a cena.
Kayc se enfureceu, mas sua única reação foi correr para o lado de fora. A princípio, Abner ficou confuso, mas logo compreendeu a gravidade da situação e foi em direção ao cafajeste.
Num empurrão seguido de um soco na cara, ele evidenciou a merda que o sujeito havia feito e desejou um turbilhão de desgraças, ao ponto de sua veia saltar da testa e sua pressão quase cair.
— Fica no chão que é o seu lugar, filho da puta. —Abner cuspiu no homem.
Obviamente a galera não entendeu uma palavra sequer do que ele disse, mas Abner se sentiu vitorioso mesmo assim e partiu rumo ao amigo.
No caminho, ele não perdeu a oportunidade e roubou uma garrafa de whisky do balcão. Do lado de fora, ele viu o Kayc sentado na beira da outra rua e pensou em como se aproximar.
— Ei, não chora. —Abner sentou ao lado do Kayc.
— Eu não tô chorando. —Kayc limpou disfarçadamente suas lágrimas.
— Ainda bem, homem não chora.
Ele abraçou Kayc, na esperança de suavizar o pequeno trauma e também de livrar sua própria consciência da merda que foi arrastar o amigo para lá.
— Se serve de consolo, eu bati e cuspi na cara dele, e ainda roubei essa garrafa.
— Você não vale nada. —Kayc riu genuinamente.
— Vamos embora daqui. Nós mesmos faremos nossa noite.
— Vamos.
Os dois se levantaram, mas Abner não estava satisfeito com a lição que deu no cafajeste. Na verdade, que porra de lição? A única coisa que aconteceu foi o Kayc ter partido o coração.
Sua mente pairava entre a criatividade repentina e o risco de explodir loucamente, e isso o fazia questionar sobre o que deveria fazer em seguida.
— Antes de irmos, preciso fazer algo. —Abner retirou um baseado do bolso e jogou a maconha fora.
— Uai, vai fazer o que com isso? —Kayc o observou confuso.
— Apenas observe e aprenda.
Abner deu um gole generoso no whisky e montou um molotov com a seda. A rua estava vazia e era o momento perfeito para soltar fogos por aí.
— Meu Deus! —Kayc arregalou os olhos.
— Meu aniversário vai ser daqui dois minutos e eu acho justo a gente comemorar de um jeito explosivo.
— Espero que você não jogue isso na boate.
— Na verdade, vou jogar no carro do seu ex namorado. —Abner fitou a fileira imensa de carros estacionados. — Qual é o dele?
— É aquele ali. —Kayc apontou para um Onix Sedan branco.
— Calma, precisamos de uma música.
Abner pegou seu celular e seu Spotify começou a tocar Boys Don't Cry, da desgraçada da Anitta. Foi uma escolha aleatória e ele não estava com cabeça para pensar em algo melhor.
Num arremesso calculado, o molotov quebrou uma das janelas do carro e não demorou muito para o fogo se alastrar pelos bancos. Uma fumaça preta surgiu do lado de dentro e os dois correram quando o alarme disparou.
Como nada foi planejado à risca, houve um erro não programado e então o carro explodiu, levando todos os outros num efeito dominó, até que o último da fileira atingiu a porta de entrada da boate.
Os pedaços flamejantes do carro adentraram o local e obrigaram todas as pessoas a evacuarem. Abner sabia que havia feito uma merda gigantesca, mas que se foda, e suas pernas tentaram acompanhar o ritmo acelerado do seu coração.
Abner e Kayc deram as mãos, e correram como se não houvesse amanhã. Os dois riram sem peso na consciência enquanto ambulâncias e bombeiros passavam na direção oposta, até que uma explosão maior foi ouvida.
Se alguém morreu? Espero que tenha sido o namorado vagabundo e a prostituta. De resto, meus pêsames. Não era a intenção deles.
Tudo parecia estremecer, mas nada parava os dois meliantes. Abner se sentia feliz ao olhar para Kayc e ele sabia que encontrou alguém tão biruta quanto ele.
Ele sabia que essa amizade era valiosa. Ele sabia que encontrou tudo o que buscava e mais precisava: um amigo de verdade.
Quem disse que garotos não podem chorar?
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