A Raposa E O Arco-íris
Lara me disse para continuar minha caminhada, pois ainda havia outros seres com quem me encontrar. O propósito daquilo eu ainda não sabia, porém, já que era tudo um sonho, faria questão de explorá-lo ao máximo.
Despedi-me de Lara e desejei um bom sono à pequena Wilka e segui a trilha. Enquanto andava, ficava maravilhada com os elementos daquele lugar. Borboletas passavam voando por mim e debatiam sobre qual flor tinha o melhor néctar; coelhos me olhavam como as vizinhas fofoqueiras do meu bairro, curiosos.
Mais a frente, a trilha me guiou para uma floresta, e quanto mais adentro eu seguia, mais as árvores ganhavam troncos robustos e altura. De repente, uma grande árvore, provavelmente a maior de todas, tomou minha visão.
Ela se estendia longamente na vertical, suas raízes eram fortes e saíam da terra como veias dilatadas. O tronco era muito largo e... Espera, aquilo era uma entrada?
No centro da árvore, uma grande abertura em formato de porta se abria. Forcei a vista, percebendo que lá dentro parecia ter lamparinas e livros. Concentrada demais, não percebi uma das raízes e acabei tropeçando, mas consegui me amaparar antes de atingir o chão.
— Você se machucou? — uma voz preocupada indagou e eu ergui o olhar, notando uma raposa-vermelha na entrada da árvore. Seus olhinhos castanhos me analisavam, a cauda felpuda se retorcia, incerta.
Mesmo depois de ver um brócolis falante, eu ainda fui pega um pouquinho de surpresa.
— Não, estou bem. — sorri — Você é uma das criaturas que a Lara falou que eu encontraria?
— Você encontrou Lara Phi? Então, você deve ser a Júlia! Os coelhos ouviram de você dos girassóis e acabaram me avisando.
— Notícias correm rápido por aqui, não? — a raposa riu e um som agudo e meio ofegante saiu. Então, é esse o som que uma raposa faz, pensei. Era... Diferente. — E qual o seu nome?
— Me chamo Carol. — tive impressão de que ela sorria — Eu vi que você estava analisando minha casa, gostaria de entrar?
Aceitei o convite por pura curiosidade e usei as raízes de escada. Já dali pude vislumbrar que todo o tronco da árvore era oco e espiralava com prateleiras cheias de livros, uma escada em caracol possibilitando o acesso às obras.
— Caramba...
— Gostou? — Carol falou, sua voz perdendo o tom mais contido e ficando extremamente energizada. Sua cauda se remexia com a animação e isso me fez rir.
— É incrível!
— Agradeço, demorou anos para que eu reunisse essa coleção! — ela disse, orgulho resplandecendo no brilho de seus olhinhos camuflados pelos pelos laranjas — Acredita que tenho pelo menos um livro sobre qualquer assunto do universo?
Arregalei os olhos e automaticamente me lembrei da minha história. Talvez aquela raposa tivesse um livro sobre como ganhar a habilidade de escrita? Ou como escrever algo bom sem ter o talento?
Quando lhe fiz essas perguntas, a cauda de Carol se retorceu de leve e ela assentiu, mas algo em sua atitude me deixou intrigada. Pedindo para que eu esperasse, a raposa subiu a escada alguns lances e voltou com algo na boca, aparentemente um porta pergaminhos que eu havia visto em filmes sobre história fantásticas.
— O que é isso?
Carol me entregou o cilindro pela ponta que não havia colocado a boca e me encarou com uma certa expectativa.
— Todas as respostas que procura, você as achará aí. Abra e vamos dar uma olhada.
Franzindo o cenho, abri o porta pergaminhos e tirei de lá um papel diferente dos que eu já havia visto. Ao abri-lo, ele reluziu, mostrando nada mais que meu reflexo.
— Mas.. Aqui não tem nada.
Olhei para a raposa desapontada. A animação dela retornou.
— Aí há tudo, Júlia! — Carol deixou que eu absorvesse um pouco suas palavras antes de continuar — Todo o talento e capacidade que por vezes procura está em você.
Muda, eu observei aquela criatura laranja. Antes que pudesse abrir a boca, Carol voltou a falar, o sorriso em seu tom de voz era evidente.
— Hoje é seu aniversário, certo? — assenti, ainda incapaz de responder com palavras — Meus parabéns, pequena. Você merece o mundo.
Sussurrei um "obrigada", e quando dei por mim a raposa já havia me guiado de volta para a entrada da árvore.
— Você deve ir, como disse Lara Phi, há mais seres que devem cruzar seu caminho.
— E-Está bem. — estendi o pergaminho a ela — Aqui, muito obrigada.
— Ah, não, pode ficar! Inclusive, só um minuto. — ela entrou de novo na árvore e uns minutos depois voltou com uma mochila de pano na boca — Para você levar na viagem, caso precise guardar mais alguma coisa. Coloquei algumas uvas aí para caso fique com fome.
— Não precisava! — sorri e, não me aguentando, fiz um pequeno carinho na cabeça de Carol. Ela fechou os olhos e sua cauda se agitou, fazendo-me rir mais uma vez. — Bom, obrigada e até mais!
— Volte sempre!
Acenei e coloquei a mochila nos ombros, voltando a caminhar pela trilha, que contornava a árvore e seguia novamente na direção do desconhecido.
______________
Cheguei à conclusão de que estava realmente com fome, no minuto que me vi mordendo as pequenas uvas que a Raposa havia me dado, no caminho. O sol já dava sinais de deslocamento no céu, fazendo um aspecto meio alaranjado cair sobre o estranho reino encantado, ou Neverland, fosse o nome que dessem aquele lugar — para mim, era apenas algo parecido ao País das Maravilhas da Alice ou a Terra do Nunca, do reconto de Lira que eu estava fazendo, exatamente como a protagonista do meu livro em suas eternas viagens mágicas ao lado do menino que nunca cresceu.
Oh, o livro...
Lembrar das minhas inúmeras tentativas de escrever aquela maldita fantasia foi o suficiente para enegrecer meu humor. Percebi a mim mesma apertando o passo na trilha iluminada para me assentar embaixo de uma cerejeira encantada. As cerejas pareciam fazer formato de escadinhas, uma embaixo da outra, e modificavam seus formatos regularmente. Eu não estava muito longe do centro daquele reino, agora; apenas alguns passos e estaria naquela estranha ponte em formato de arco, pintada de um cinza antigo que — apenas agora, descobri que era para onde estava indo.
Me deixei cair na graminha viva e dançante sobre meus pés, olhando para o campo dos girassóis na direção oposta, já distante o suficiente para que eu visse apenas o amarelo que exibiam, nada de seus sorrisos felizes.
Eu queria ser feliz como qualquer destes seres.
Eu queria poder ficar aqui.
Suspirei. O que mais esperar de alguém como eu, sinceramente? Eu não vou conseguir fazer aquela história, não importa quão inspiradoras pareciam as palavras daqueles animais mágicos. Eu não servia para nada.
Um sorriso amargo e venenoso se abriu nos meus lábios.
“Por Deus, nem amigos eu tenho, tão sem sorte que sou na vida.”
Não percebi quando tudo começou a mudar. Mas ali, enquanto jogava pedrinhas no chão sem ânimo, o ar colorido e iluminoso deu espaço a um cinza da cor da estranha ponte no centro do lugar.
“Oh não, ela precisa melhorar” — um casal de cangurus cochichou, saltando apressadamente.
“As nuvens da tristeza, as nuvens da tristeza!” — hienas em bando lamentaram.
“Teremos uma tempestade hoje!”
“Entrem pra dentro crianças, vocês não quererão ver isso”
“De novo não!”
Os animais que outrora vagavam tranquilamente começaram a trancarem-se dentro das árvores, fechando portinhas, janelas, e tudo quanto deixava espaço aberto. Até mesmo os coelhos fofoqueiros sustentaram rostinhos assustados e desapareceriam em seguida, com grande temor.
Vozes misturadas chegando até mim e vários “Oh não, oh céus” começaram a chamar minha atenção.
“O que está acontecendo?” pensei, aflita.
Então nuvens carregadas começaram a se formar no céu antes límpido, soprando um vento tempestuoso em todo o vale; as árvores se chacoalharam, folhas caíram, águas antes paradas começavam a formar paredes de água em formato de escudo. Essas nuvens iniciaram uma espécie de luta contra o sol por espaço e a pequena luta transformou uma garoa fina em uma tempestade, pleno dia. E eu não tinha nenhuma roupa além da minha!
Mesmo sob tempestade, o sol recusava ceder, batendo nas nuvens faceiras com alguns de seus raios luminosos. Foi quando uma luz começou a subir do chão para o céu formando várias cores ao mesmo tempo sobre a ponte solitária do centro do vale. Ela cresceu, cresceu, até exibir suas belas cores em um ar convencido de quem sabe que está a chamar a atenção.
As nuvens e o sol pararam também.
— Oh, Grande Anfitriã Romise da Ponte-Íris!
Pensava que nada mais poderia me surpreender, mas ainda assim deixei minha boca formar um pequeno "O" ao ver as nuvens, e sol, se curvarem para o arco-íris com grande respeito e veneração.
— Oh, meus amigos! Quem é que provoca a minha presença em tantos anos?
Sua voz parecia ampliada no céu por vários alto-falantes: o arco colorido ia tomando a forma humana agora, no formato de uma mulher colorida de longos cabelos brancos até o chão. Então seus olhos — igualmente multicolor — se fixam na minha pequena estatura, e ela “levita” até mim com graça e elegância.
“Ela deve ser algum tipo de Rainha?” não consigo deixar de pensar.
Sem saber o que fazer imito a mesura que foi feita anteriormente, assim que se aproxima o suficiente de mim.
— Você deve ser quem causou isto tudo, suponho. – ela inicia, fixando seus olhos enrugados no meu rosto.
Suas mãos estão suspensas na frente de si, entrelaçadas, e aquela simples postura a fazer parecer com alguém que tem todo o tempo do mundo, sem pressa alguma.
— E-eu não...
— Observe — sua mão estendeu-se em um floreio, demonstrando a paisagem — todo esse cinza, toda essa escuridão. Estava assim, quando chegou?
— Não, senhora. — abaixei minha cabeça, estranhamente sentindo culpa me dominar.
— Exato. Porque os seus sentimentos influenciam nesse lugar, Pequeno Ser.
— Meus sentimentos? — pisquei, confusa. O que eu teria a ver com tudo aquilo.
A estranha mulher com aspecto antigo sorriu sem pressa. Então, bateu suas palmas, e imagens minhas de criança apareceram em um telão transparente no ar. Minha primeira medalha de uma competição de redação na escola; minha primeira vez num parque de diversão; meu pai me abraçando, eu na casa de vovó tomando um sorvete enquanto ela me contava histórias.
— O-o que é isso? — perguntei, um pouco assustada por ter minha privacidade exposta, mesmo sabendo ser um sonho.
— Suas memórias.
— Isso eu sei, mas pra quê, quero dizer, como..?
A mulher tornou a bater mais palmas. Agora, momentos tristes. A separação dos meus pais; o dia da morte de vovó; a desmotivação para escrever. Tudo isso, fez-me perceber lágrimas que eu nem sabia que eu estava soltando. Como consequência, o céu escurecia ainda mais lá. E me assustava.
— Então... — assumi, minha voz trêmula — quando não estou bem, tudo aqui fica... Assim?
Apontei para o ambiente refletindo como me sentia por dentro. Vazia, triste e solitária. Vi Anfitriã Romise acenar, paciente. Sem esperar, bateu palmas outra vez, e agora vi imagens totalmente fora de meu conhecimento aparecerem no telão.
Minha mãe me cobrindo, no meio das madrugadas;
Meu pai guardando minhas historinhas em prateleiras, no quarto de sua casa;
Mamãe lendo as folhas, seu rosto feliz;
Mamãe colocando as folhas de volta no lugar, secretamente;
Professores corrigindo minhas provas, elogiando minhas habilidade de escrita;
Então... Era aquilo que eles faziam quando eu não estava vendo? Eles sentiam... Orgulho de mim?
Senti uma mão tocar meu ombro com afago e olhei para a mulher multicolor atrás de mim, desaparecendo gradualmente.
— Depois da tempestade, sempre vem o arco-íris, é o que dizem; mas é importante saber, também, Júlia: se quiser a luz do sol, aceite a companhia da chuva. Ela logo passa, e a estrela amarela volta a brilhar novamente.
E de repente, tudo já fazia algum sentido.
As pequenas mensagens de motivação que eu encontrava; as notas dizendo para eu continuar escrevendo. Eu não podia acreditar, todo aquele tempo me martirizando sobre minha escrita, julgando tudo que eu fazia quando pessoas que eu nem sequer desconfiava estavam simplesmente... Torcendo por mim, em silêncio.
Me peguei rindo abertamente com o rosto ainda parcialmente molhado. Queria agradecer a Romise, mas esta já havia desaparecido, deixando-me em minha própria companhia.
E com meu riso, as nuvens se afastaram, e o sol venceu a pequena luta. Os animais tornaram a sair de suas tocas, desconfiados, mas logo o vale estava cheio de vida outra vez.
Eu estava cheia de vida outra vez. E quando a noite ali chegou, eu estava pronta para voltar para casa.
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