4 - FAVELA
Enquanto o Sol nasce
Ela abre seus lindos olhos de avelã e
Começa
Seu bebê chora
Ela o pega no colo e diz-lhe belas mentiras
Novamente
Ela vem da favela-la
Dos morros de Santa Teresa
Debaixo do Redentor
E do Sol no céu
Ela vem da favela-la
Me pergunta: E aí, beleza?
Debaixo do Redentor
Onde os morros ganham vida
Ela trabalha na noite da favela
— Favela, Alok feat. Ina Wroldsen
Acordo com os gritos do Juca. Muito provavelmente não está acontecendo nada, mas a primeira coisa que ele faz todas as manhãs ao acordar é brincar com seus bonequinhos e ele sempre fala muito alto quando está em casa. O engraçado é que aqui não é a mãe que acorda antes do filho, é sempre ele. Estico todo o corpo e levanto, observando meu reflexo no pedaço de espelho. Desde que o Juca o quebrou que estou precisando comprar outro, mas nunca sobra dinheiro.
Ajeito a alça do pijama que fica caindo o tempo todo e caminho até o quarto dele, que está totalmente entretido brincando com seus soldadinhos.
—Bom dia, amor.
— Mamãe, veja! O Napoleão foi derrotado. — Ele diz, mostrando uma cena que está criando com seus bonequinhos.
—É mesmo? E quem o derrotou? — Pergunto demonstrando interesse na sua história .
— O faraó do Egito! — Ele responde prontamente e de repente simula uma explosão, jogando tudo para o alto. — As tropas francesas foram derrotadas!
Amo o fato dele se interessar por história da humanidade e fazer suas bagunças na linha temporal dos eventos. É uma peculiaridade do meu pequeno.
— Eu acho que a sua percepção dos eventos históricos tá meio alterada. Mas aqui, vai se arrumar pra escola e junta tudo isso aí, porque sua avó fica uma fera quando vê seus brinquedos espalhados. — Digo, indo até sua pequena cômoda, já tirando o uniforme que ele usa todas as manhãs.
— Mamãe... eu não quero ir pra escola... o Miguel não gosta de mim.
A voz triste do Juca me corta e eu me aproximo, alisando seus cabelos pretos e cacheados como os meus. Juca é um garoto bem tímido, não gosta de falar muito com os outros quando não está comigo e fica bastante introvertido no meio de outras crianças. Isso dá abertura para crianças como o Miguel fazerem bullying com ele. Já fui na escola várias vezes intervir e mesmo mudando Miguel de sala, nada aconteceu.
Tudo bem que essa criança é filha de um dos mandantes do morro e, talvez, isso faça com que a equipe pedagógica tenha medo de tomar alguma atitude severa, mas é um absurdo que aquelas professoras não façam nada para tentar inibir essa criança. Eu já pensei em mudar meu filho de escola, mas não consigo pagar uma van ou ônibus todo dia para ele, e isso me deixa mal, só queria a felicidade do meu pequeno. Quando pedi ajuda ao pai dele para mudá-lo de escola, a resposta foi "você já não faz nada e ainda quer sugar mais dinheiro?". Babaca.
— Bebê, você precisa ir pra escola, o que a mamãe sempre fala? — Minha voz sai de forma doce. Quem me dera eu pudesse resolver todos os problemas do meu menino sendo carinhosa.
— Que é muito importante estudar. — Ele diz desanimado.
— Sei que você está chateado, mas lembra do que eu te disse, né? Fique sempre esperto ao seu redor e mantenha o foco. — Vou até ele e selo sua testa repetidas vezes, segurando em seu rosto. — Não liga pra esse garoto, você é importante.
Ele me abraça e eu continuo acariciando seu cabelo. É horrível querer o melhor para seu filho e não ser capaz de lhe proporcionar um padrão de vida melhor que o seu. No momento, minha maior preocupação é que ele estude, para não cair no crime como tantas crianças. Só Deus sabe o quanto fico aflita de pensar nessa possibilidade.
Saio do quarto rumando para a pequena cozinha para passar um café. Como a minha mãe não gosta então não o constumo fazer. Confesso que eu também não sou muito fã, porém como não temos dinheiro sobrando para ficar comprando leite, prefiro deixá-lo para o Juca e eu me viro com o que tem. Ainda há algumas bananas bem maduras na geladeira e, dessa forma, faço vitamina para ele. A gente ganhou vários pacotes de biscoito champanhe da patroa da minha mãe e, graças a isso, a gente come alguns deles todas as manhãs.
Minha mãe trabalha a vida toda para uma senhora podre de rica lá no Leblon, e eu sempre penso o quão engraçado é o fato dela ter deixado de cuidar de sua casa para cuidar da dos outros. A vida não é muito justa.
Depois de terminar de passar o café, faço um pratinho com a vitamina e biscoitos para o Juca e levo em seu quarto, onde ele começa a comer o biscoito, mas ainda brinca com seus soldadinhos, felizmente já com seu uniforme.
— Nada de se atrasar, ok? — Ele apenas balança a cabeça concordando.
Vou andando para meu quarto, onde meu celular vibra na cama. É a dona Marcele, avó do Juca. Ela mandou mensagens perguntando se eu poderia levá-lo para passear no parque com ela, pois queria dar um presente para ele, aproveitando para alegar que eu deveria parar de dificultar o contato deles com meu filho. Que ódio dessas pessoas! Na hora de me chamarem de puta e dizer que eu queria aplicar um golpe foi fácil. Agora vivem furiosos comigo, como se quisessem realmente o Juliano por perto, quer dizer, eles até querem... Desde que eu suma. A prova disso é que todas as vezes que ele vai ficar com a família do pai, volta amuado e, principalmente, contando que falam coisas horríveis sobre mim.
Se eles acham que vão tirar meu filho de mim, estão muito enganados e felizmente a guarda é minha.
Mas, em contra partida, não posso impedir que eles tenham contato com o menino, porém dificulto o máximo que posso. Afinal, o filho do Enrico, com sua atual e perfeita esposa, estuda numa escola particular, tem tudo do bom e do melhor, e ele não pode pagar um ônibus para o Juca estudar na escola do outro bairro? Paga quinhentos reais de pensão e ainda quer ser o pai do ano? Chacota, gente rica é mesquinha assim mesmo.
Visto meu short, blusinha básica e meus chinelos, pego minha bolsa de crochê e o Juca já está me aguardando na entrada. Seguro em sua mão e saímos da nossa pequena casa. O sol está bem quente ali no morro, mas a gente vive no Rio de Janeiro, não é como se tivéssemos como fugir disso. Desço as escadas com cuidado, enquanto, para minha aflição, Juliano sai pulando os degraus. Uma vizinha grita para mim:
— Ei, Luana! Como está sua mãe?
— Está bem, dona Cici. Só aquela dor chata, mas é a idade, né? — Digo sem parar de andar.
— Ah menina, você também vai envelhecer!
Apenas rio e continuo descendo o morro em direção à escola. Depois de me despedir do Juca, vou andando para o galpão da escola de samba do morro, onde eu pego uns bicos. Chego junto à costureira e ali vou passar as próximas horas pregando lantejoulas nas fantasias. Já estamos em janeiro, falta apenas um mês para o carnaval, e tudo precisa estar impecável para o desfile. Eu recebo um valor simbólico pela ajuda que presto, mas é melhor do que nada. Quando é a hora do Juca sair da escola, saio do galpão e vou buscar meu pequeno. Juntos, vamos andando para o ginásio.
A vida na favela é simples, mas aqui todo mundo se ajuda, na medida do possível. Porém, nem de longe é o melhor lugar para o Juca crescer. Não há muito que eu possa fazer sobre isso, já que aquele infeliz do Enrico não faz nada para ajudar. Não queria que ele me bancasse, queria que ele oferecesse uma vida melhor para o filho. Mas claro, a preta da favela não merece já que, de acordo com ele, tentei roubar dinheiro dele.
Então, tenho que levar a vida como dá, e nem posso dizer que tenho sorte por ainda ter a minha mãe. Ela não tem muita paciência com o Juca. Quando está de bom humor, pensa no neto e compra alguma coisinha para ele, mas não conto com isso. Se para ela é tão difícil me ajudar com a criação dele, prefiro dar meus pulos do que ficar implorando. É por isso que trabalho até enquanto o Juca dorme, o que me leva ao meu trabalho na boate, mas ficando bem claro, eu não sou prostituta.
Chego no ginásio e a Vânia está na porta, sorrindo e cumprimentando as crianças entrando:
— Lua, chegou cedo hoje. — Ela diz e alisa o cabelo do Juca, que se afasta. Ele não gosta que as pessoas, fora eu, façam isso.
— Oi, tia Vânia. — Juca diz, já deixando sua mochila comigo e correndo para dentro da quadra.
— Como estão as coisas? — Ela pergunta, enquanto nós duas caminhamos para dentro.
— Estão bem. Acredita que a dona Marcele está insistindo para ver ele? Por que eles não deixam a gente em paz?
Andamos até a sala da Vânia, onde também funciona a biblioteca, e ali, ela havia separado para mim o meu almoço. Me sento ali mesmo para comer e a mulher puxa sua cadeira para também se sentar:
— Lua, eu sei que você não gosta dessas pessoas, e você está no seu direito. Mas não pode privá-los de ter contato com o Juliano. Sei que parece injusto, mas se continuar insistindo em dificultar esse contato, eles podem tentar tirar a sua guarda, e aí vai ser pior, né?
— Vânia, essas pessoas não estão nem aí para o meu filho! Se eles estivessem realmente preocupados, não estariam deixando ele passar dificuldades... E todas as vezes que ele foi pra casa deles, ficou triste e todo chateado, sabe por quê? Porque aquele não é o padrão de vida dele! Ele não tem todos aqueles brinquedos, não tem aquela casa e todo aquele conforto... Tudo o que eles querem é colocá-lo contra mim, para que talvez ele seja bem-vindo naquela família.
Vânia não disse nada de início, mas acabou fazendo que sim com a cabeça. Maldita hora que eu engravidei do Enrico. Amo meu filho e por ele sou capaz de matar e morrer, viro um leão se for preciso para defendê-lo. Mas odeio todas essas situações com aquela família. Eu não devia ter tentado me relacionar com alguém de outro patamar, e hoje lido com as consequências.
Depois do almoço, fui cuidar dos meus afazeres. Ali, no ginásio, há um projeto para crianças da comunidade. Para garantir que eu fique o dia todo de olho no meu menino, sou voluntária e dou aulas de música. Além disso, há aulas de balé, hip hop, capoeira, judô, desenho e teatro.
É um projeto muito interessante, que visa tirar as crianças dos perigos dos becos. Porém, é muito difícil mostrar para uma criança da favela uma vida diferente daquela que eles conhecem. A maioria nunca sairá dali, alguns se juntarão às facções criminosas, e apenas uma minoria vai conseguir deixar o morro em busca de uma vida melhor. É difícil mostrar uma realidade diferente, quando se vive imerso nela. Mesmo que as pessoas brancas e os mais favorecidos insistam em dizer que essa vida é opcional, não há muitas oportunidades para pessoas como nós. No final, a gente é só estatística do governo.
Entro na sala de música onde as crianças já estão com os violões a postos. Sorrio para todas elas, a sala é toda decorada com desenhos que nós mesmos fizemos e tem cerca de quinze pessoinhas me esperando:
— Boa tarde crianças! Vocês estudaram a partitura que eu mandei?
Alguns gritam "sim", outros não. Logo, pego meu violão e começo a dedilhar "Aquarela". A música foi o grande amor da minha vida, mas infelizmente ela não alimentava meu filho. Então, abdiquei todos os sonhos que um dia planejei para tentar dar o melhor para ele.
Na hora do lanche, as crianças correm para a cantina para se servirem com o pão com molho feito pela dona Marilene, uma senhora que admiro muito pela determinação em ajudar a todos. Eu caminho pelo refeitório, indo garantir meu lanche, quando avisto o idiota do Dênis no meio das crianças. Eu quero que esse aí saia de perto, principalmente porque ele é uma influência péssima para os pequenos. Caminho até ele e o encaro, cortando sua onda:
— Já não te disse para não vir aqui? — digo e ele me olha com um sorriso irritante.
— Ih, que agressividade gata, eu gosto das crianças. — diz ele, passando a mão na cabeça de uma menininha.
Reviro os olhos. Ele não vai desistir até que eu fale com ele:
— O que você quer?
— Vai ter um baile lá perto da casa do Foguinho neste fim de semana. Cola lá comigo.
Não consigo evitar uma risada seca, enquanto o encaro:
— Vai precisar levar quantos foras até entender?
— Oh princesa, porque me trata assim, hein? Eu posso cuidar bem de ti e do teu pirralho, não sei porque me nega tanto.
— Eu não sou mulher de bandido.
Já ia me virar, quando ele me segura um tanto forte pelo braço:
— É, mas é marmita de branquelo playboyzinho. Vai me dizer que você não deixa aqueles ricassos te comerem lá na boate? Ou vamos falar do pai do teu pirralho que é um branquinho montado na grana e nem te procura. Eu estou aqui, tentando oferecer uma vida boa pra ti e o moleque, e você fica me esnobando. Vamos baixar essa bolinha, tá se achando melhor que os outros porque toca uns instrumentos e fala inglês? Tu ainda mora na favela, Luana.
Puxo meu braço furiosa. Eu não tenho que me explicar para ele, nem para ninguém. Que vida melhor um bandido poderia me proporcionar?
— Vai se foder, idiota. Vai embora e me deixe em paz.
Me afasto o mais rápido que posso, e, infelizmente, ele grita no meio de todo mundo:
— Você vai se arrepender, hein? Fica negando a favela mesmo Luana, vai ver o que vai te acontecer.
Por que esse imbecil não me deixa em paz? Sim, eu não me envolvo com esses caras que são barra pesada, os outros caras me acham metida e os caras que não são daqui não querem nada sério comigo por eu ser do morro. Então, antes só do que acompanhada de idiotas.
Após o lanche, são as aulas de teoria musical, e por último as aulas de teclado. Quando mais nova, meus professores diziam que eu era um prodígio musical, que eu teria muito sucesso já que todo instrumento que eu pegava para estudar, aprendia a tocar sem grande esforço. Não vejo muita dificuldade, na verdade, música é matemática e, partindo desse conceito, depois que eu consigo entender como funciona cada instrumento, é fácil assimilar as notas neles.
Sempre fui muito autodidata. Tinha interesses diferentes das minhas amigas e isso me levou a me conectar com a música. Não só isso, como aprendi até mesmo inglês e coreano só sendo curiosa e estudando sozinha. Eu gostava do fato das pessoas me acharem muito inteligente e acho que deixei isso subir à cabeça, me fazendo ter companhias erradas que me levaram ao meu atual estado.
Mas tudo bem, poder levar um pouco de cultura a essas crianças é ótimo. E o projeto me permite continuar envolvida com a música de alguma maneira, mas eu não me sinto mais um prodígio. A favela está cheia de gente muito talentosa que nunca terá oportunidade de mostrar o seu talento ao mundo. Eu sou uma delas.
Quando dá a hora de ir embora, vou até a sala de desenho onde o Juca está, apesar de as outras crianças terem ido embora. Ele simplesmente fica ali na dele, desenhando seus soldadinhos:
— Meu amor, vamos embora? — Digo e ele faz um bico com os lábios.
— Mas mamãe, eu ainda não terminei meu desenho. — Ele mostra sua pequena criação cheia de formas bagunçadas. Tenho certeza que se ele continuar treinando vai desenhar muito bem algum dia.
— Bebê, a tia Vânia precisa fechar o ginásio, vamos?
Juca assente de forma triste e começa a juntar os materiais. Nos despedimos de todos e fazemos o trajeto de sempre para voltar para casa até que noto que seu único tênis está soltando a sola, respiro fundo, um tanto cansada com mais um gasto. Ao chegarmos em casa, ele vai direto para o banho e em seguida para a televisão assistir seus desenhos favoritos. Passo uma vassoura pela casa e vou adiantar a janta. Minha mãe não tarda a chegar, reclamando das dores nas costas e vem para a cozinha deixar umas frutas e verduras que comprou:
— Tá cada dia mais caro fazer feira. Falei com seu Tadeu que desse jeito vamos ter que colher fruta podre do mercadão. — Ela diz, tirando algumas verduras da sacola.
— Ai, Juca não merece isso. — Eu deixaria de comer para ele poder comer algo fresco.
Foi o juramento que fiz a ele, quando o peguei em meus braços pela primeira vez, seu pai poderia ser um cretino, mas eu nunca lhe deixaria faltar nada.
— Tu viu como é que tá grande o cabelo desse menino? Tem que cortar. — Ela diz, abrindo a geladeira e pegando uma vasilha do congelador.
— Eu sei mãe, mas a senhora sabe que ele não gosta que toquem no cabelo dele. E aquele salão, onde a moça é toda compreensiva com ele, cobra caro. Tá precisando é de um tênis novo, o dele tá com a sola solta.
— Lá na feirinha tem. — Ela diz rapidamente, como se estivesse com medo de eu pedir para ela comprar outro.
— Eu não comentei com a senhora na intenção de pedir um... — Não consigo evitar e a respondo. Eu nem sei porque eu tento, minha mãe tem mais dinheiro que eu e não custa nada ela comprar um tênis para o neto. O Juca andou doentinho e gastei minhas economias com exame e remédio. Mas isso, a minha mãe não vê, claro que ela não vê.
— Quê? Não, Luana. Engravidou? Agora se vire! — Ela responde com ignorância.
— Eu não vou tentar dialogar com a senhora, você nunca me entende!
Ela continua mexendo na comida, ignorando por completo os meus problemas.
— Soube que o Toninhas tava distribuindo uns pares de tênis para crianças jogarem bola. Às vezes sobrou algum, fala com ele.
Respiro fundo e digo, cansada:
— Eu não vou pedir nada a traficante, tá?
— Esse é seu problema, sabia? Se acha melhor que todo mundo aqui, quando é pobre como todos eles. Bate lá na casa dos seus amiguinhos então, pedindo um tênis pro Juca, já que o dinheiro deles vale mais do que o do pessoal do morro, já que o pai dele é um imprestável...
— Eu tenho meu dinheiro também, sabia?
— Ah, faça-me o favor! Fica aí se prostituindo e nem dinheiro ganha. Vai arrumar um emprego de verdade, ao invés dessa vidinha fácil que você tá levando. — Ela me olha, desdenhando de mim e aquilo me deixa furiosa.
— Escuta aqui, mãe...
— Mamãe? — Sou interrompida por Juca que chega na cozinha. Ele não entende direito porque eu e minha mãe sempre discutíamos, mas ele entende que algo está acontecendo.
— Que foi, bebê? — Me obrigo a fazer a melhor cara do mundo para não deixar óbvio que estávamos brigando.
— Eu tô com fome. — Ele responde, meio amuado.
— Tem uns pães de queijo na minha bolsa Juca, pode pegar. — Minha mãe diz, mudando seu tom de voz também e, dessa forma, ele vai em direção da mesa, onde minha mãe deixou sua bolsa, pega os pães de queijo e volta para a sala. Depois que ele sai, ela continua. — Vê se cuida do seu filho direito.
Eu suspiro, não adianta explicar sobre meu trabalho na boate e que eu estou fazendo o meu melhor para criar meu filho. Minha mãe é uma pessoa extremamente ignorante e nunca vai entender.
Juca é uma criança bastante introvertida e, por algum tempo, as professoras até acharam que ele poderia ter alguma condição como autismo. Depois de muita insistência e brigas, a avó paterna custeou vários exames e terapias e os resultados não apontaram nada que não fosse apenas introversão. Porém, ele tem medo de muita coisa e não gosta tanto de outras crianças e, por isso, evito ter um emprego convencional e deixá-lo aos cuidados de outra pessoa. Temo que as pessoas não o entendam e o que isso possa acarretar.
Depois que jantamos, brinquei com meu filho até ele dormir e isso significa estar na hora de trabalhar. Eu não me arrumo em casa, então só tomo um banho, troco de roupa e digo tchau para a minha mãe, que nem responde.
Subo no ônibus, coloco meus fones e fico ouvindo as minhas composições. As melodias que eu gostava de inventar e brincar como se a vida fosse um sonho. Eu conheci um produtor de funk carioca que vivia ali no morro e me deixava usar seu estúdio para criar minhas músicas, bons tempos aqueles.
Começa a tocar a minha primeira e única composição em coreano e eu sorrio com a lembrança do tempo em que dizia que seria a primeira idol negra. Aprender coreano foi bem difícil, considerando que naquela época, não havia tanta coisa disponível para se estudar na internet . Sempre que descobrem que eu sou fluente nessa língua, perguntam "mas por que o coreano?".
Simples.
Eu sempre fui diferente na escola. Enquanto as meninas queriam ouvir funk e sertanejo, eu queria ouvir kpop. Ah, mas esses coreanos me tinham na palma da mão e, por um tempo, eu desejei ser descoberta por uma empresa como uma jovem prodígio. Fanficava a minha carreira de idol, dando entrevistas, falando sobre a minha história de vida e encorajando outros jovens, mostrando que é possível sim sair da realidade da favela.
Toda vez que paro para refletir sobre o passado, fica evidente que meu ego se inflou demais. As pessoas me achavam tão inteligente que eu talvez tenha mesmo me sentindo superior, me fazendo buscar companhias de fora da comunidade porque julgava que eles eram "as pessoas certas".
Isso me afastou dos meus amigos daqui, e muitos me consideram antipática e metida - alguns chegaram a cogitar que eu era informante da polícia. Felizmente, minha mãe é conhecida da mãe de vários indivíduos que lideram o morro, e conseguiu persuadi-los de que eu era apenas uma "pobre soberba". Por isso, evito ao máximo interagir com essas pessoas, uma vez que não concordo com o estilo de vida delas. No entanto, isso não significa que eu apoie a polícia ou que colocaria minha vida em risco para ajudá-los.
Eles adentram os morros, disparando contra qualquer um que consideram suspeito, desencadeando tiroteios nos quais pessoas inocentes perdem a vida, e escapam impunes. É incontestável que os mandantes do morro prestam mais serviços à comunidade do que as autoridades deveriam, mas essa não é a vida que desejo para mim e para meu filho.
Eu vivia indo para várias festas longe da comunidade com esses "amigos" e conheci o Enrico numa festa de réveillon. De início foi tudo ótimo. Ele não demonstrou se intimidar por eu ser negra e da favela, sempre exaltava o fato de que eu tinha uma visão muito centrada sobre as coisas e que eu iria ser alguém na vida. Ele me prometeu uma vida bem melhor e por um tempo, achei que fazia parte daquele mundo. Como fui tola... Quando engravidei, sua única reação foi me abandonar. E apesar de ele pagar seus míseros quinhentos reais de pensão, jurando que é o suficiente pra cuidar de uma criança, ainda alega que eu gasto o dinheiro bancando meus luxos, um grande imbecil.
Chego na boate e me direciono à área de funcionários, onde faço minha preparação e me arrumo cuidadosamente. Visto um vestido vermelho colado, salto, me maquio, arrumo o cabelo definindo os cachinhos e saio. Vou em direção ao bar, onde todas as noites preparo as bebidas. Os clientes começam a chegar e, entre eles, muitos estrangeiros. É nessa hora que meu inglês se faz presente, porque os ajudo a escolher as bebidas, os faço ficar confortáveis no ambiente e, até mesmo, ajudo nas conversas entre eles e as garotas. Esse é meu verdadeiro trabalho dentro da boate, bartender e tradutora.
Estou terminando de preparar uma bebida, quando a Vanessa chega até mim me dando um leve susto:
— O de sempre, porque hoje aquele velho vem com suas esquisitices.
Começo a preparar o coquetel com um teor altíssimo de álcool, bebida que ela pede sempre que o mesmo senhor vinha e a observo:
— Ele tem que ser muito rico pra você se sujeitar aos fetiches estranhos dele.
Ela já me contou algumas coisas e... É, essa vida não é para mim. Vanessa é uma morena tão linda, alta, corpo esbelto, cabelos lisos e compridos. Toda vez que ela me conta as esquisitices de seus clientes, fico triste por ela, ninguém deveria ter que fazer isso, mesmo que no seu caso, ela escolheu esse trabalho.
— Amiga, ele me deu um apartamento. Um apartamento, é pouco pra você?
— Não me sujeitaria a isso por dinheiro nenhum. Aqui está sua bebida. — Entrego para ela e a mesma agradece quase que virando o copo de uma vez.
Consegui esse serviço através de uma amiga. Ela jurou que eu nunca teria que me prostituir, só precisava servir bebidas e conversar com os gringos. E já tem quase um ano que estou aqui. Ficava lá de umas dez da noite até três da manhã e, justamente por ser apenas cinco horas, era uma mixaria. Mas era melhor do que não ter dinheiro algum para cuidar do Juca.
A noite foi bem agitada e quando me dou conta, já são quase três. Começo a limpar o balcão me preparando para ir embora, quando Arley aparece, sorrindo para mim:
— Você não vai acreditar. — Ele começa a dizer.
— A Vanessa te deu outro fora? Sabe Arley, às vezes a vida é sobre reconhecer os fracassos. — Digo, segurando o riso, enquanto ele cerra os olhos para mim. Ele é um DJ de funk famosinho que tem parceria com um monte de gente famosa.
— Um cantor coreano fechou parceria comigo para os dois shows dele aqui do Rio. Eu logo lembrei de você, um tal de SpearB, conhece?
— Ah, o Changbin do Stray Kids?
— Não, SpearB. Parece muito famoso.
— Pois então, é que esse é o seu nome de rapper.
— Aaaah, tipo um nome de guerra. Enfim, eu posso descolar um autógrafo, se você quiser. — Ele diz com um sorrisinho presunçoso nos lábios.
— Eu não sou muito fã dele, mas quem recusa um autógrafo de graça, né? Aliás, aquele velho maluco tá aí, sabe como a Vanessa fica mal toda vez que ele vem. Se quer conquistar essa garota, vai ter que mostrar culhões melhores que o novo apartamento dela.
Me despeço dele e corro para os fundos, trocar de roupa e ir para casa. Nesse horário, eu ganhava carona até o pé do morro e depois seguia pelas vielas até minha casa. Ao chegar, ando até o quarto do Juca, que dormia tranquilamente. Tudo ali fui eu que comprei, sua cama com formato de carro, o colchão confortável, os brinquedos, suas roupas. Ninguém pode dizer que não é um dinheiro digno. Afinal, estou tão cansada. Odeio que as pessoas digam que meu dinheiro vem fácil, porque não tem nada fácil em ter que ficar naquela boate, mal dormir durante a semana, já que eu tenho minhas outras obrigações e ainda ter que ouvir que ganho dinheiro a troco de sexo.
As pessoas julgam essas mulheres, sem compreenderem o peso de suas vivências. Se ao menos soubessem todas as provações que enfrentam, talvez optassem por estender a mão ao invés de proferirem discursos simplistas sobre uma suposta "vida fácil". Conheço diversas mulheres que se submetem a isso em troca de dinheiro, numa tentativa desesperada de escapar da pobreza extrema. Também cruzo o caminho daquelas que buscam pagar pela faculdade pois não tiveram sucesso no mercado de trabalho, e outras que, confrontadas com problemas familiares, decidiram abandonar seus lares, enxergando nessa atividade uma maneira de se sustentar. O mercado de trabalho é injusto e competitivo, empurrando-as para essa escolha.
Independentemente das motivações que as levam a vender seus corpos, é inegável que esse é um trabalho árduo. Tenho ouvido relatos angustiantes de várias garotas da boate que foram assediadas, agredidas e desrespeitadas, vítimas desses homens que pagam pelos serviços e pensam que tem direito de agir como bem entenderem, sem limites, mesmo quando se trata do corpo alheio. Me compadeço profundamente com as histórias de muitas colegas, pois, semelhante à vida no crime, não é simples ou fácil se libertar desse ciclo.
Me aproximo da cama dele e observo meu mundo todinho ali. O amor pelo meu filho é maior que todas as ofensas que escuto todos os dias, ele é o motivo do meu sorriso, o motivo da minha força, enquanto tiver forças, serei a melhor para ele:
— Um dia, a mamãe vai tirar você daqui, te prometo meu bem.
Selo a testa de Juca, ajeito o lençol sobre seu corpo e vou para o meu quarto dormir minhas míseras três horas para recuperar um pouco as energias.
Então essa é a Lua? Recebi tantas mensagens me perguntando o que é que estava acontecendo que finalmente chegou uma resposta (ou parte dela). Gostaram de conhecer um pouco mais sobre a Luana?
E principalmente, como chegamos ao ponto do Changbin? Descubra no próximo capítulo hahaha
(Não me xinguem kkkk)
Hey, me conta aqui se vocês estão gostando, se tem teorias, o que vocês estão achando? Queremos saber tudinho.
BIG HUG e até mais.
Annelizzy e Ana Laura Cruz
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