• VINTE E SETE - RAMON
A risada gostosa de Caio, é contagiosa de um modo tão puro e bonito, que me vejo rindo junto ainda de costas para eles. Não posso me distrair se não a batata e os nugets podem queimar e se tem algo que eu sempre faço, é queimar as coisas. Ele ri tanto que chega a engasgar, o que faz com que eu vença minha curiosidade e olhe por sobre meu ombro, o nível da farra deles.
No centro da sala, com dezenas de almofadas espalhadas, estão Davi e Caio que montam aos poucos um castelo de Lego. É como se eles estivessem em seu próprio universo. O mais velho, no alto dos seus dez anos, onde as vezes mostra ter uma maturidade absurda, ajuda pacientemente meu pequeno pedaço de Nana a encaixar devagar as peças. Davi tem tanto do irmão, que vai além da aparência.
Retiro os fritos de ambas as frigideiras, os depositando em um prato com papéis toalha para que um pouco da gordura seja absorvida. Nana com certeza vai me esganar por estar dando essa bomba de fritura para seu filho comer. Mas um dia apenas não vai fazer mal e estou curtindo minhas crianças. Os pais dela estão a frente de um evento hoje juntamente com o irmão. E ela se deu um direito a uma folga na qual passou a manhã com o filho e saiu para almoçar com Silas que demonstra cada vez mais estar apaixonado. Não que minha amiga esteja diferente.
Corto e espremo algumas laranjas, que resulta em um suco de aparência duvidosa, por estar um tanto ralo, para que possa oferecer ao menos algo saudável para eles.
Levo tudo para a mesa de centro. O aroma parece ativar algo nas crianças, que largam imediatamente as peças e quase avançam sobre o móvel. Dou uma gargalhada enchendo um pote plástico personalizado com batatas e nuggets. Davi se serve do suco também e de pernas cruzadas, se põe a comer. Caio muito afrontoso, rouba com sua pequena mão uma batata rindo em seguida do seu rosto chocado.
- Vacilou, dançou! - brinco tocando seu nariz.
- Tome um pouco mais Caio! - com um sorriso no rosto ele oferece mais algumas para o pequeno que não hesita em levar quase todas para a boca. Mas seguro sua mão, com um medo irracional de que ele possa se engasgar. Não consigo lidar com situações assim.
- Vou arrumar o potinho dele Davi, pode comer o seu. - digo suavemente.
Ele sorri, bebendo um pouco do seu suco. Um pouco do líquido lhe molhando o queixo, mas ele não parece se importar.
- Eu sei tio. Não faz mal dividir também.
Com Caio todo a vontade contra mim, os observo comer entre risadinhas fofas. No final além de terem gordura até no nariz, os dois dividiam o mesmo potinho e se acabavam de rir das caretas que eu fazia. Após ambos terem tomado banho, os acomodei no sofá - cama de Arthur e enquanto dormiam, arrumei a sala rapidamente. Assim como lavei e sequei as louças. Estava guardado um último garfo quando a campainha tocou. Estava tão silencioso, comigo apenas cantando uma música em um tom baixo, que o som me fez pular no lugar e automaticamente olhar para o sofá, onde graças a Deus, nenhuma das crianças ao menos se moveu, evidenciando o quão cansadas estavam.
Com uma pequena corrida, abro a porta não escondendo minha surpresa.
Fábio tem nas costas uma mochila de tamanho médio, os cabelos castanhos e cacheados muito bonitos, estão presos no alto de sua cabeça e a roupa nada formal o deixa com um aspecto simples mas lindo. Ele não me olha como costumava fazer anteriormente, como se eu tivesse lhe roubado algo de especial dele. Como se eu não tivesse o direito de estar com seu primo ou que não fosse o suficiente para ele.
Ele olhava - me com certa cautela e hesitação. Na certa, pensa que vou expulsa - lo daqui a pauladas. O que não poderia estar mais longe da verdade. Por dois motivos isso nunca cai acontecer: não tenho direito para tal e a casa não é minha.
- Oi...- murmura baixinho, apertando fortemente as alças se sua mochila. Lhe dou um sorriso de desculpas por ficar muito tempo o fitando. Dou um passo para o lado.
- Oi, entra! - por segundos ficamos sem saber o que fazer. Ele ri, os lábios carnudos se repuxando para o alto, remodelando seu queixo, o deixando ainda mais bonito. - Desculpa não saber o que fazer! - confesso por fim. - Se quiser pode ir para seu quarto, fica a vontade.
Na certa ele deve ter vindo para ficar novamente. Só espero que ele tenha avisado ao primo que viria. Arthur depois daquele dia tem estado mais recluso a sua maneira e tenso. Ele está aos poucos se habituando a uma parte de sua história que é cheia de dor, mágoa e abandono. Não precisa ter que lidar com seu primo um tanto birrento.
- Hum...- não sai do lugar. - Arthur não sabe que estou aqui. - tento não mostrar surpresa, mas pigarreio pronto para ter uma conversa com ele.
- Olha Fábio. - torço meus dedos em frente ao meu corpo. - Arthur está passando...- ergue a mão de unhas bem cuidadas. Não é um gesto arrogante.
- Eu sei. Por isso estou aqui. - respira fundo. - Será que antes de ter que enfrentar meu primo, poderíamos conversar? - atrelada às suas últimas palavras, há um tom de súplica.
Olho para as crianças.
- Olha, não vou gritar com você se quer saber!
Mesmo ele assegurando que não. Nunca esquecerei de suas palavras. Eram carregadas de tanto escárnio, ironia e um ódio gratuito que não entendo completamente. Quando contei para meu namorado, tentei suavizar o máximo que pude. Arthur ama o primo e nunca vou querer estar entre ele e sua família.
- Tudo bem! - não nos movemos e espero pacientemente pelo o que dirá. Ele devagar retira a mochila das costas e a coloca no chão ao lado da porta.
- Podemos falar lá fora?
Aceno afirmativamente. Após fechar a porta, ficamos lado a lado no corredor. Ambos recostados contra a parede, nossa distância física era de centímetros mas emocionalmente, estávamos longe um do outro. Não sei o que esperar dele, não o conheço. Por isso estou me preparando para o que virá.
- Sei que me odeia...- começa e não consigo não rir. Ele para, me fitando de rabo de olho.
- Eu não te odeio! - declaro simplesmente. O que é uma verdade muito sólida para mim.
- Mas deveria! - solta a sentença no ar entre nós. Talvez esperando que eu concorde com sua colocação.
- Não. Pois não posso odiar alguém que não conheço.
Por alguns minutos ele fica em silêncio e eu não me esforço em preencher o espaço entre nós com palavras que não sejam verdadeiras.
- Eu te disse coisas horríveis.
- Pelo simples fato de não ter se dado uma oportunidade de me conhecer.
- Me desculpa!
- Eu nunca te fiz nada. Nem tinha te visto até o dia que o vi com Arthur no corredor. Onde enfiei na minha cabeça que eram namorados. Mas desde que me viu, não fez questão de ser simpático comigo. - exponho suavemente.
- Sou uma pessoa horrível.
- É alguém que erra. Assim como eu.
- Obrigado, de verdade. Eu realmente quero fazer as coisas direito!
- Não vai fazer igual nas novelas não é? - finjo horror. - Se fingir de meu amigo, para depois me dar uma rasteira!
- O que? - ele parece não entender nada. Seguro uma risada.
- Você sabe? O plano do vilão em ferrar com a vida do mocinho!
Quando entende finalmente, ri tanto que quase cai para trás. E sua risada é parecida com a de David. Alta, rica e contagiante. Respiro aliviado por ter amaciado o clima entre nós.
- Ah, eu acho que vou gostar muito de você!
- Ainda não gosta de mim? - o olho como se fosse um alienígena. - Onde estou errando?
- Ah, você é muito legal. - aperta meu ombro. O riso vai morrendo aos poucos, o clima ameno entre nós. Temos um caminho a percorrer. - Agora sei o que meu primo viu em você!
Engulo em seco, fitando atentamente sua expressão quase saudosa.
- O que?
- Seu enorme coração! Me perdoar...
- Eu não te perdoei Fábio. - seu sorriso vacila. - Não tem o que perdoar. No final você só estava maltratando a si mesmo, se impedindo de viver a vida como realmente é. De se abrir para outras pessoas.
O que digo é verdade. Não vai adiantar eu ficar remoendo algo que já passou, que atingiu muito mais o homem diante de mim do que eu. Suas palavras me machucaram na hora? Sim! Mas entendi que ele tentava me machucar para se sentir bem consigo mesmo. E se ele se der conta disso e buscar mudar, é uma escolha dele. E vovó sempre diz que guardar rancor é o mesmo que se prender em algo que só vai atrasar minha vida. Fazendo - me olhar sempre para trás para um passado que não pode ser esquecido de todo. Mas sim superado.
Não vamos ser amigos de uma hora para outra. Amizade para mim é como uma pequena semente. Que precisa dos cuidados necessários para crescer forte e vigorosa. Assim, teremos tempo para ver onde isso vai dar.
- Posso te abraçar? - pede humildemente. Meu coração quase para em meu peito. Mas aceno levemente.
De repente estou em seus braços magros mas que possuem uma força a ser considerada. Como ele é um pouco mais alto que eu, logo me vejo imerso em seu abraço. Que deve ser algo de família. Que além de me envolver por completo, me permite ouvir as batidas aceleradas de seu coração.
- Obrigado!
- Não agradeça!
- Isso só pode ser uma porra de brincadeira! O que está fazendo aqui Fábio? - nos separamos ante a voz grossa.
Coloco meu melhor sorriso e vou para seu lado. Ele não perde tempo e logo estou em seus braços. Os olhos dele porém, como os de uma águia, que acompanha sua presa, estão fixos no primo.
- Talvez, eu tenha brigado com nossa avó e tenha vindo para cá!
Sinto - o ficar tenso.
- Fábio...- Murmura de forma mansa, como se estivesse falando com uma criança que tem dificuldade em entender algo. Mas estando perto, sei que ele está tudo, menos calmo. - Eu não sei o que aconteceu e sinceramente, não quero. Estou a ponto de explodir. Por isso, não posso e nem quero lidar com você.
- Não quero causar problemas Arthur!
- E eu estou correndo deles. - entoa secamente.
- Vovó me contou tudo o que aconteceu com sua mãe. E de como lidou com a situação e não gostei. Nenhuma mulher merece passar por aquilo e você passou anos acreditando em uma história que não era totalmente verdade. Só quero ajudar e estou sem casa.
- Acho que precisam conversar! - deixo sair calmamente as palavras. Arthur me olha como se eu tivesse traído ele. Dou de ombros. - É só um conselho...
- Não precisa ser agora primo! - seus olhos tem gratidão dirigidas a mim. - Só preciso de um lugar para ficar.
- Estou cansado e só quero um banho. - massageia a têmpora. - Seu quarto continua sendo o mesmo.
Acena freneticamente. Com um sorriso minúsculo no rosto, entra fechando a porta suavemente atrás dele. Nós não nos movemos de imediato. Somente abraço - o de lado, ouvindo - o suspirar e logo sinto seus lábios em meu pescoço.
- Ele te fez ou disse algo para te machucar? - seu hálito tão perto do meu pescoço, me causa arrepios do bom. Fica difícil me concentrar em suas palavras.
- Me pediu desculpa! - se afasta bruscamente de mim, mas não me solta.
- Estamos falando do mesmo Fábio?
- Ele parecia bem sincero.
- Não sei...- pensa por alguns segundos. - Ninguém muda assim em duas semanas.
- Se ele mudou de verdade ou não, só o tempo vai dizer. - toco seu queixo levemente. Sentindo a suavidade do local. - Você disse que está prestes a explodir. Eu já te falei que estou ao seu lado. Nunca se esqueça.
Acena meio perdido no toque dos meus dedos em sua pele bonita, a qual sempre quero lamber por inteiro. Saber que é feito de algo tão hediondo tem lhe torado um pouco dos eixos, mas pensava que estava assimilando aos poucos. Pelo visto, eu estava enganado.
- Viviane quer se encontrar comigo. - solta devagar e nas palavras há tanta dor, que o abraço tão fortemente, que se pudesse me fundiria a ele.
- E você tem medo?
- Muito! - confessa.
- Eu também tenho medo sabia? - resolvo expor uma parte minha que ninguém nunca viu. Me abrindo agora com ele, penso se não seria bom continuar a ir a um psicólogo. Estava indo tudo tão bem na ONG. Mas ao vir para cá, achei que estando longe deles, tudo estaria bem. Mas não. Eles acabaram com meu emocional de uma forma tão profunda que os sonhos ainda me atormentam. Mesmo eu tendo escondido eles tão bem. - Podemos conversar em seu quarto? - sem uma palavra qualquer, apenas um acenar de sua parte é o que recebo.
Passamos pela sala e as crianças continuam a dormir. Arthur beija a testa de ambos e me leva para seu quarto, que está bem organizado. Me sento no lado que costumo dormir quando passo a noite em seu apartamento. Vejo - o se despir do terno cinza, que parece quase uma segunda pele em seu corpo. Os músculos tão bem delineados me dá ideias mas as espanto. O momento requer clareza.
- Sei que está olhando! - diz um pouco convencido, ainda de costas para mim. Veste com uma lentidão absurda a bermuda de moletom preta. Lhe jogo seu travesseiro, o qual pega sem se abalar.
- Não estou olhando assim!
- Se você diz! - rindo baixinho, se deita ao meu lado. Sua cabeça indo para meu colo. Os dedos longos e grossos se divertem na minha coxa.
- Olha esses dedos ein. Preciso de concentração.
- Tudo bem! - dá fim as carícias e me abraça de modo que seu rosto fique contra minha barriga.
- Eu ando sonhando com meu pai. - ergue o rosto e olha em meus olhos.
- Disse que tinham parado. - não há acusação em seu tom de voz.
- Não completamente. - dou de ombros. Engulo em seco. - Como te disse, estava indo a um psicólogo na ONG, antes de vir para cá. Mas parei de ir aqui, por pensar estar bem. Na minha mente, comigo longe dos meus pais tudo ficaria bem. Mas não foi isso que aconteceu. Os sonhos e também lembranças não muito felizes de lá, me atormentam.
- Sua avó sabe?
- Não! Mas acho que desconfia, nada passa despercebido por ela. - confesso. - Vou voltar as consultas na semana que vem. Pois mesmo longe, meu pai ainda tem um domínio absurdo sobre minha mente. E se quero ser feliz, eu preciso de ajuda.
- Foi por isso que não aceitou morar comigo? - pergunta acredito mais para confirmar.
- Também. - tomo um fôlego necessário, me abaixo e beijo sua testa, ponta do seu nariz e por fim, sua boca maravilhosa. - Minha intenção não é despejar meus problemas em você, muito menos compara - los com os seus. Apenas quero dizer que você não está sozinho. Tem a mim e sua família para te ajudar.
Pega minha mão na sua, virando a palma para si e deixa ali um beijo simples mas demorado. Seus olhos nunca desviando dos meus.
- Só não quero me aproximar dela e depois ela ver que não vale a pena ter uma relação comigo. Que de alguma forma, eu pareça com o homem que lhe fez tanto mal.
- Você não tem nada dele a não ser o sangue amor. - minhas palavras são sinceras. Pois é o que sinto em meu coração. - Não o conheço, mas você me mostra todos os dias o maravilhoso ser humano que é. Nunca duvide disso. E se Viviane quer se encontrar com você, se permita. Se quiser vou estar com você, é só pedir e estarei lá segurando sua mão. - uma lágrima escorre de seu olho esquerdo. Ele sorri de lado, beijo o líquido quente que marca sua pele.
- Obrigado! Já disse o quanto te amo?
- Hoje? - finjo pensar e faço uma cara de espanto. - Que horror! Cadê minha declaração favorita?
- Eu te amo Ramon Vieira, com todo meu coração e alma. E saiba que estarei aqui para você também. - segura meu rosto. - Seu pai não tem razão em nada.
Meu coração se aquece. Agora quem chora abertamente sou eu. Anos de abuso psicológico não vão embora assim, de uma hora para outra. E eu deveria te visto que apenas aquelas consultas na ONG não seriam o suficiente.
- Eu acho que te amo mais Arthur Santos!
- Impossível! - se senta me levando para que fique em seu colo, minhas pernas ao lado de sua cintura. - Posso te mostrar o quanto eu te amo?
- Acho que vou gostar disso! - dou uma rebolada em seu colo. O que arranca um grunhido dele. O som me arrepia por inteiro.
- Tio Ramon! Caio acordou e te quer! - ambos suspiramos desapontados mas logo estamos rindo.
Deixo que Arthur se acalme vou para a sala. Fábio está na entrada um pouco sem jeito olhando para Caio que está nos braços de Davi, se movendo freneticamente e parece procurar alguém. Assim que o pequeno me vê, abre os braços para mim.
- Oi amor do tio! - o encho de beijos. - Estou aqui, não precisa ficar assim! - me sento no sofá e Davi se aconchega a mim. - Já comeu Fábio? Tem batata na geladeira para fritar se quiser!
- Não, obrigada! - recebo uma mão em rosto. Ele tenta puxa - lo em sua direção. Finjo estar chocado.
- Meu Deus menino! Já vou te dar atenção! - nós rimos. - É sério, come um pouco.
- Vem comer logo Fábio! - Arthur surge usando além da bermuda, uma camisa azul. - Saco vazio não para em pé e temos de conversar!
- Tudo bem! - meu namorado entra na cozinha, Fábio me implora ajuda com os olhos. Ergo o dedão em um sinal de joinha, dizendo que vai ficar tudo bem sem emitir sim algum.
E sei que vai realmente ficar tudo bem. Meu coração sente isso.
25/12/20
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