• TRÊS • RAMON
Meu vizinho foi embora ontem, ainda um pouco abalado. Ele parecia que realmente iria desmaiar quando entrou na sala de descanso que minha avó usa para costurar, ler sua Bíblia e cantar seus louvores. Acredito que ele nem ao menos prestou atenção na decoração. O homem tinha o olhar fixo no irmão sentado ao pé do sofá de um lugar perto da janela e sua nova amiga. Minha Luna, que estava muito feliz em ter alguém para lhe fazer companhia.
Um homem daquele tamanho ficou paralisado e achei que teria de segura - lo, pois estava prestes a cair bem ali ao meu lado. Eu já tinha lhe dito na sala em uma breve conversa, que Luna não era perigosa. Ela gosta de companhia e gente nova. O pequeno David que é muito inteligente para sua idade, tem essas duas características para oferecer a minha filha. O menino fica eufórico quando a vê e ela também não esconde em nada sua alegria em vê - lo.
Muitos tem medo dela mas ela é inofensiva. Eu sempre gostei de cobras. Desde muito cedo eu tinha um amor por elas. Eu lia bastante também sobre as espécies, o que comem e seus modos. Nunca fui permitido ter. Segundo meu pai, cobra era um bicho traiçoeiro e tinha ligação com o maligno. E por muito tempo eu quis acreditar nisso, em uma vã tentativa de ter alguma coisa em comum com o homem que amo de paixão. Mas ao sair de casa, percebi que amor não se barganha. Ele é puro o suficiente para ser dado sem esperar nada em troca. Então a partir do momento que tive condições financeiras, adquiri Luna. Ela tem seu cantinho, sua bacia com água onde se banha sempre que quer e nossa companhia.
Me lembrar do desespero do homem de quase dois metros de altura, é tão engraçado que paro minha arrumação e quase me dobro de tanto rir. Atraído alguns olhares e tento me recompor. No entanto se torna impossível. Seco uma lágrima de alegria que se formou no canto do meu olho esquerdo. No final Arthur me deu um bom material para rir e assim esqueço a saudade que estou sentindo de minha irmã. Tem anos que não nos vemos, não tenho seu número de contato e nem sei se poderei tentar falar com ela sem que eu a prejudique de alguma forma.
- Tudo bem, já esperei demais. Quero saber de tudo! - tomo um pequeno susto com sua chegada repentina.
Nana me observa muito de perto. É quase como se quisesse saber de todos os meus segredos, o que se ela quiser consegue facilmente. Ela é determinada em tudo o que faz. Isso me faz ter orgulho dela. Da mulher que sempre foi. Eu costumo dizer para ela que ela sempre foi assim, uma fortaleza para todos o que precisam. Ela sempre nega suavemente dizendo que não é isso tudo. Mas ela se engana facilmente. Diferente dela, as vezes tenho medo de errar e não discuto para evitar criar uma confusão. O que faz com que geralmente guarde tudo o que estou sentindo.
Nana não!
Sempre se esforçou para ter boas notas na faculdade. Fazia doces para vender durante os intervalos das aulas e depois de se formar, praticamente levou o negócio da família nas costas. E tem a perda que teve. Ficou horrível por quase um mês mas levantou a cabeça e seguiu sendo essa mulher forte e que sempre posso contar com ela.
No entanto, não estou disposto a falar sobre meu vizinho. Não quando não sei o que pensar. Arthur tem algo que me atrai para ele. É totalmente clichê isso. Mas é o que é. Não é seu perfume. Nas duas vezes que nos vimos, não senti nenhuma fragrância vindo dele. Seu corpo é muito bonito, ele parece malhar bastante para manter seu físico em dia. Diferente de mim que tenho um peso a mais e fico completamente cansado só de assistir uma aula sobre exercícios físicos. Acredito que seja no modo como ele se comporta perto das pessoas. É reservado mas ainda te permite ver algumas partes dele.
- Tudo Ramon! - a voz de comando de minha amiga me desperta de minhas divagações. Pisco duas vezes.
- Hum....tudo o que? - dobro o guardanapo como fui ensinado por Nana, quando comecei a trabalhar com ela. Ficando propositalmente de costas para minha amiga. Evitando assim encara - la.
- Não me enrola Ramon! Me diz o motivo dessa carinha aí!
- Que cara? - dando a volta na mesa retangular, ela fica de frente para mim. Tenho que erguer um pouco a cabeça. Nana é alta se comparado a mim. Pega uma faca e aponta para mim.
- Não me obrigue a usar de tortura com você! Você está aéreo e dando risadinhas a cada cinco minutos. Isso só pode ser boy novo na área.
- Eu posso ser feliz sem precisar de um par, você entende isso Nana? - digo simplesmente nem um pouco ameaçado por ela. Os olhos esverdeados brilham, os lábios se curvando em um sorriso bonito.
- Eu sei. É muito bom sermos felizes com nós mesmos. Isso não tem preço. Mas faz bem ter um pau amigo. - fala tão alto, que os outros funcionários que estão na cozinha, com certeza ouvem. Ao fundo, o som de uma panela caindo no chão complementa o cenário de constrangimento. Meu rosto fica tão quente.
- Grita mais alto Anair! São Paulo ainda não te ouviu! - o rosto redondo e maquiado levemente, acaba se abrindo em um sorriso tão largo que posso ver todos os seus dentes e de brinde seu piercing recém colocado em sua língua.
- Se é seu desejo! - pigarreia e acerta sua postura. - Ramon....- grita, pronta para repetir a frase. Corro o pouco espaço que há entre nós, tapando sua boca. Metade de seu batom ficando em minha mão. Escuto risadas mas não me arrisco a olhar, meus colegas de profissão estão rindo de mim. Se divertindo com minha situação.
- Olha não é nada demais. É só meu novo vizinho. Ele tem quase dois metros de altura e puro músculo mas quase desmaiou quando viu o irmão com Luna na sala de descanso da minha avó.
De repente e muito calma, ela volta a colocar a faca sobre a mesa. Seus olhos esverdeados cheios de diversão. Minha cabeça tomba para o lado e até passo minha língua pelos meus dentes. Vai que tem comida neles e eu não vi. Olho para os lados e atrás de mim.
- O que é tão engraçado?
- Você!
- Eu!
- Sim, é lindo vê - lo se iludir.
- Hum...não entendi.
- Essa é a graça da coisa. - se vira em seus saltos altos. O corpo cheio de curvas a tornando uma mulher irresistível.
- Onde você vai? - digo meio indignado, ficando no escuro.
- Para a cozinha. Ainda há coisas para resolver.
- Ei, me explica isso direito mulher!
- Vem trabalhar Ramon! Depois nos falamos.
O almoço de aniversário do dono da empresa, organizado pelos funcionários ocorreu normalmente. Sem incidentes e comigo ainda pensando nas palavras de minha amiga e patroa. Fui para casa com os pés doendo, fedendo a gordura por ter ficado na cozinha em alguns momentos e com as costas um trapo por ajudar a desmontar as mesas. Me despedi de Anair ansiando por um banho, meu conjunto de ficar em casa e minha cama.
Reafirmei que ela poderia contar comigo para ficar com o pequeno Caio no sábado para que ela possa sair e de divertir. Os pais e o irmão mais novo estão em um cruzeiro e não há ninguém para ficar com meu afilhado. É uma criança de dois anos de idade, cheio de vida e que adora a mãe que tem.
Chego em casa após pegar dois ônibus e falo rapidamente com vovó e David que estava com ela. Os dois muito concentrados em fazer uma massa de bolo. A mulher que me ama com loucura, o observa com orgulho estampado em seu rosto, ao vê - lo mexer na massa. No banheiro me olho por um momento no espelho. Meu reflexo é de um rapaz que as vezes tem medo como qualquer outra pessoa e que no entanto quer ser feliz. A imagem de Arthur me assalta a mente mas logo lanço para o lado. Preciso tomar banho, dormir um pouco e a tarde ir para o hospital.
Vestido, com os cabelos molhados e com Luna em sua casinha, deito em minha cama que nunca pareceu tão macia até hoje e nem vejo quando sou arrastado para a terra dos sonhos.
O som que é como música para meus ouvidos, me desperta. Mas não abro meus olhos de imediato, estão pesados demais para tal. Um dedo minúsculo cutuca meu rosto, me viro de costas pronto para ignorar o pequeno ser que ri ainda mais de mim. Ele está se divertindo com minha luta contra o sono.
- Estou com sono.
- Vovó Elisa, Ramon não quer acordar! - o menino grita no topo dos seus pulmões. Ou eu penso que faz. Estarei eu com dor de cabeça? Na certa sim!
- Por que está gritando?
- Não estou gritando tio!
- Ramon Vieira! Se não acordar agora, irá se atrasar para ir ao hospital. - grita ainda mais alto.
É como enfiar meu dedo na tomada, me sento rápido na cama e logo estou fora dela. Parecendo prever meu movimento, o menino dá um passo para longe de mim, saindo fora do meu caminho. Ao som da risadinha, vou tombando para meu banheiro, tomo um banho rapido, escovo meus dentes e seco de forma displicente meus cabelos. Não tenho tempo para arruma - los corretamente. Coloco uma calça jeans clara, tênis pretos e camisa branca. Enfio minha carteira em meu bolso e pego meu violão. Verifico Luna e ela está confortável em seu terrário, muito plena.
Já arfando, chego na cozinha e encontro a mesa com o café da tarde. Bebo ainda de pé, avidamente o leite sem açúcar e gelado que costumo beber e quase me engasgo no processo, sou fuzilado com os olhos por vovó mas ignoro. Enfio uma fatia de bolo na boca e ainda com ela cheia de despeço deles, abro a porta e puta que pariu!
Arthur está pronto para usar seu punho que é do tamanho da minha cabeça e bater na porta novamente. Me encolho por instinto e engasgo com o restante do bolo que ainda estou comendo. O homem arregala os olhos escuros e as vezes insondáveis, agora cheios de pedidos de desculpas e vem em meu socorro. Sou uma vergonha. Lágrimas escorrem por meu rosto, pelo esforço em respirar oxigênio e não bolo.
- Porra! Me desculpa. - dá tapinhas em minhas costas. Ele não deve ter noção do tamanho da força que tem. Pois é como se meu pulmão e parte de minhas costelas estivessem sendo agitadas. Ergo minha mão e me afasto dele. - Oh, usei força demais.
Pigarreio três vezes para enfim conseguir falar alguma coisa.
- Não tem problema! - minha voz está fina. Pigarreio mais uma vez.
- Olha, nossos encontros acontecem sempre assim não é? Um constrangimento atrás do outro.
- Encontro? - minha mente só registrou isso. O homem pisca uma vez e sorri minimamente.
- É, encontros! Nunca falamos muito, é muito rápido o tempo que passamos na presença um do outro.
Fico em silêncio.
E nesse meio tempo o observo mais atentamente. Ele usa sapatos sociais pretos, calça jeans escura e parece nova. E blusa social branca. Que neste momento parace ser uma parte de sua pele negra e bonita de tão apertada que ela é. Sem minha permissão, meu corpo reage a ele. Como um interruptor que é ligado e de repente há luzes por todo o lugar, me cegando momentaneamente. Mas logo me acostumo e me deixo envolver pela iluminação do local.
- Ramon? - quero me enfiar no chão tamanha a vergonha. Arthur me olha intensamente, dou a volta por seu enorme corpo e dou um tchauzinho por sobre meu ombro.
- Tenho que ir!
- Mas....
- Fui! - corri as escadas como se monstros estivessem atrás de mim.
No percurso feito até o hospital onde canto para espantar fazer as pessoas mais felizes, penso que preciso ficar longe de Arthur e seu olhar insondável. Nunca senti essa faísca que se acende em mim toda vez que estou em sua presença. Faísca que se eu não for inteligente, pode se tornar um incêndio de proporções imensas. Queimando tudo o que encontrar pela frente. Nem por Amadeu eu senti isso.
Quando peguei meu crachá e entreguei meus documentos na recepção do hospital, comecei meu trabalho, decidi que preciso ter cuidado. Meu vizinho poderia ser perigoso para mim. E principalmente para meu coração. Meu medroso coração.
Bem que Nana falou que vai deixar ele se iludir né gente. Kkkk
24/10/20
Último do dia.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro