Capítulo 56 - O "X" da questão!!!
Olá, gente!
O capítulo a seguir contêm o gatilho ABUSO DE MENOR, então se houver alguém sensível ao tema sugiro que não leia o que está em itálico.
Boa leitura!!!
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"Apesar daquele amaldiçoado tempo, meu espírito lutou contra a tempestade."
Edgar Allan Poe
Nicholas
Eu encarei a doce princesa Disney quando ela se afastou do meu ouvido encarando-me de volta. Ficamos assim, presos um no olhar do outro; havia tanta coisa que gostaria de dizer-lhe. Fico me perguntando se eu teria coragem de falar tudo, antes que eu me vá. Sam quebra o clima pedindo que voltemos para a varanda.
Concordei de imediato, lembrando-o de nossa conversa a tantos dias atrás para que ele contasse o que lhe houve e o porque desenvolveu a germofobia. Ele precisava se abrir, isso o faria se sentir melhor apesar de saber que ele nunca se recuperaria totalmente.
Voltamos, cada um, ao seu lugar de origem. Dessa vez as meninas estavam mais próximas e eu pensava em algo para induzir o Samuel a falar, porém sem pressão ou obrigação. As garotas estão mais próximas e os assuntos diversos são discutidos por todos nós.
Em dado momento, talvez por força do hábito, a Lúcia toca o braço do Samuel para chamar-lhe a atenção o que causa uma grande euforia, pois ele quase pula da cadeira com o ato. Trata de esterilizar o braço tocando e se concentra em apaziguar sua respiração alterada.
− Samuel! Que medo irracional é esse? Por favor, explica pra gente. – A Lúcia pede cruzando os braços mostrando-se ofendida. Samuel a encara e depois olha para além do parapeito de vidro que ladeiam minha varanda, está com o olhar perdido. Todavia eu e o Rodrigo sabíamos exatamente no que ele estava pensando.
− Eu acho que o Nick tem razão. Vou contar a minha história e botar isso pra fora de uma vez por todas. – Ele fala voltando a se sentar e encarando a morena. – Eu confesso que gosto de você e esse seu jeito extravagante. Vou mostrar o meu lado ruim, já que acha minha história indispensável. Todavia...ficará ao meu lado quando souber a verdade? Eis o "X" da questão.
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Minha mãe tinha um amigo muito próximo, que também era advogado. Ele sempre me trazia presentes e demonstrava gostar muito de mim. Eu achava estranho que os filhos dele fossem bem quietos e contidos, não fazia ideia do porquê.
Fazia anos que minha mãe não via esse homem,então eles retomaram a amizade. Após muita insistência do homem minha mãe permitiu que eu fosse a casa dele brincar com os filhos.
E assim foi. Eu ia com frequência a casa dele, para brincar com seus filhos. Quase sempre ele entrava na brincadeira e os filhos pareciam ter medo dele. Até que um dia ele me convidou para conhecer sua coleção de carrinhos em miniatura, nessa época eu estava com sete anos e gostava disso.
Fomos para 'um escritório' no porão onde ele supostamente guardava os malditos carros. Eu me lembro da minha mãe sempre falando: "Não fale com estranhos." Mas aquele homem não era estranho, era um doente, um monstro.
O tal escritório possuía uma pequena luminária que mal iluminava o cômodo, prateleiras com muitos carrinhos enfileirados e, curiosamente, uma cama. Ele disse que as vezes acabava dormindo lá.
Voltamos lá outras vezes, estávamos sempre sozinhos porque ele dizia que os filhos bagunçariam os carrinhos e poderiam até quebrar. Ele acariciou o meu rosto e sorriu um sorriso que eu nunca mais esquecerei, dizendo: Você é como um filho pra mim.
A partir dali foi sempre assim: carinho, elogios; ele me dizia o quanto eu era inteligente e a sorte que meus pais tinham pela minha existência. O filho da mãe conquistou minha confiança e me vi mergulhando cada vez mais fundo num poço de sofrimento e dor sem que eu pudesse ser salvo. Eu era constantemente assediado e não sabia oque fazer.
Ele disse que eu não deveria contar nossos momentos para meus pais porque o que acontecia ali ninguém poderia saber. Então a coisa alcançou um nível mais avançado. Eu fui com ele para um local que até hoje não sei dizer ao certo onde fica. Entramos no prédio o vi dando algumas notas para um homem desagradável e fedorento, tudo ali era pura sujeira.
Entramos num quarto que tinha um cheiro forte de mofo e ácaros. Ele pediu que eu sentasse na cama e fiquei com medo do que iria acontecer, não entendia o que estávamos fazendo ali. Ele não cedeu aos meus protestos de "quero ir pra casa", sempre me dando a mesma resposta: 'Vai ficar tudo bem Samuelzinho. Seja um bom menino e faça o que estou pedindo'. Deu-me uma garrafa de suco e algum tempo depois da ingestão eu fiquei um pouco grogue.
Aquele cheiro de imundície misturado ao medo logo me alertaram que a partir daquele dia minha vida nunca mais seria a mesma.Ele tirou as minhas roupas enquanto as lágrimas desciam silenciosamente pelo meu rosto infantil.
Meu inferno pessoal foi tornando-se real à medida que ele encostava seu corpo ao meu e se concretizou quando senti a pior dor da minha vida. Gritei o quanto pude, mas aqueles acolchoados imundos nas paredes talvez impedissem que eu fosse ouvido.
Desfaleci, não sei se pela dor excruciante ou pelo quer que continha naquele suco. Acordo na cama de um dos filhos dele. Ele estende a mão para me ajudar a levantar, mas tenho nojo de tocá-lo. Com dificuldade, ergo-me para ir embora sozinho, porém não antes de ele me mostrar uma arma e dizer que se eu abrisse a boca morreria.
Eu perdi, aos poucos a vontade de brincar, comer, estudar...viver. Passei muito tempo ignorando meus amigos. Tornei a ser molestado mais uma ou duas vezes. Minha mãe e posteriormente meu pai foram ameaçados de morte como chantagens para que eu mantivesse a discrição.
Virei outra pessoa. Estava sempre calado e quieto, mesmo minha mãe insistindo para que eu contasse o que estava havendo eu não falei. Foi somente um dia quando fui praticamente obrigado a ir à casa do Rodrigo, ele e o Nick fizeram uma guerra de bexigas de água – contra a minha vontade – e precisei me trocar por estar molhado é que tudo veio à tona.
Eu havia esquecido os hematomas; não precisava mais da ajuda da minha mãe para tomar banho ou trocar de roupa, eu já tinha quase nove anos. O Nick viu os hematomas e arranhões, perguntando o que era aquilo. Fiquei com raiva e disse que não era da conta dele. Ele só saiu correndo, nesse tempo ele ainda andava. – As meninas abrem um sorriso amarelo diante da piada sem graça e Samuel torna a discursar.
O Nick voltou com a mãe do Rodrigo que é psicóloga; ela nem pensou duas vezes, chamou a polícia. Ela achava que eu havia sido espancado, o que era verdade, mas não pelos meus pais. Eu gritei com ela e fiquei agressivo, não queria que meus pais morressem.
Fui encurralado e tive de contar toda a verdade, minha mãe chorou e meu pai ficou desesperado. Fui submetido aos testes humilhantes de corpo de delito somente para confirmar o que eles já sabiam.
O amigo da minha mãe foi indiciado. Tentou se safar, mas sua mulher que antes tinha medo dele, denunciou os abusos contra os filhos e acabaram surgindo outras crianças. Ele perdeu o registro na OAB e foi julgado*. Acabou cometendo suicídio na prisão. Apesar de não ter mais a ameaça dele suas consequências ficaram em mim.
Eu não suporto ser tocado, e tenho medo dessa sujeira que me cerca. Sinto-me como 'A rosa de Hiroshima' no poema de Vinicius de Moraes, uma rosa usada e abusada ao mesmo tempo indesejada:
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa, da rosa,
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada
Minha mãe nunca desistiu de mim, e se sentia culpada pelo que houve; nunca teve tempo ou oportunidade pra ter outros filhos. Eu fiquei traumatizado, sem conserto. No fim das contas o carro dela foi pego em cheio por um motorista bêbado num cruzamento. Agora que não tenho minha mãe pra me "proteger" tenho o dobro de cautela sobre tudo o que eu pego ou o que encosta em mim.
~ ~ ~ ~ ~
Samuel conclui seu monólogo sem encarar os presentes, no entanto todos olhávamos para ele. Eu e o Rodrigo conhecíamos essa história com riquezas de detalhes e também tudo o que aconteceu a ele depois disso.
− Hey, Samuel! – A voz da Lúcia é a primeira a quebrar o silêncio incômodo. – Tudo que eu sei é que nada é o que parece ser.
− O que quer dizer com isso? – Ele pergunta confuso.
− Me dá um pouco desse seu álcool. – Ele despeja um pouco na mão dela e ela passa pelos braços e mãos. Estende uma mão para ele e afirma. – O que estou querendo dizer é que pode contar comigo.
Ela entrelaça os dedos nos dele. Não acredito que vivi tempo suficiente para ver isso: Samuel encantado por uma menina e se deixando levar por ela.
− Todas essas palavras são lindas, mas a prática é bem diferente. – Ele desfaz o sorriso. Ele pensa exatamente como eu; no início existe muita garra e determinação para nadar contra a maré, mas com o tempo as coisas mudam e elas se cansam de lutar. Nós somos dois homens quebrados pela vida e que não há conserto.
− Eu espero mais de você e sei que tudo o que pode fazer é tentar. Então tente! Não queria que tivesse passado por toda essa realidade, mas pelo menos você ainda está aqui pensando no futuro e no término da sua faculdade, não planejando a própria morte para satisfação própria como seu amigo está fazendo.
O quê?
− Do que está falando? – Dessa vez é o Rodrigo quem pergunta à Lúcia.
− É que o Nick...
− Acho que isso não é da sua conta, mocinha. – Interrompo-a, mas é claro que eles sacaram na hora e me olham buscando respostas. Olho furioso para a Lívia, ignoro meus amigos e começo a repreendê-la. – Para quem mais a senhorita deu com a língua nos dentes, senhorita linguaruda?
− Eu só comentei com a minha amiga, ela não...
− Ela acabou de lançar aos quatro ventos um assunto particular e que eu ainda estava pensando numa maneira de falar para meus amigos. – Falo entre dentes. Estou com tanta raiva contida que acredito que minha pressão está nas alturas.
− Você vai tirar a vida, Nick? – Samuel indaga com tristeza e uma calma que eu desconhecia. − Como?
− Esse cretino só se importa com os próprios caprichos!!! – Rodrigo esbraveja com o dedo em riste na minha cara, tamanha era a sua ira. Eu me mantive de cabeça baixa, talvez ele tivesse razão, mas também precisava conhecer os meus motivos antes de julgar.
O vejo afastar-se para a outra extremidade da varanda e entrar em desespero. Vick vai em seu socorro e o abraça fazendo-o desabar. Ele sabia que quando eu almejava algo era difícil me fazer pensar o contrário.
A Lúcia me fez pensar no quanto eu poderia estar sendo egoísta e me vi num grande dilema, mas recorrente que eu gostaria que fosse: ficar e favorecer aqueles que me amam e viver eternamente infeliz ou partir e deixá-los infelizes?
Olho inquisidor para a ruiva que parece bem envergonhada e destilo toda minha frustração e rancor no pequeno ser. Faço dela literalmente um alvo e dirijo-lhe a palavra.
− Eu acabei de discutir com meus melhores amigos; espero que esteja feliz, dona xereta. – Vejo-a saindo em disparada para meu quarto e passar pela porta do mesmo aos prantos. Outra discussão! Era só o que me faltava. Respiro fundo e guio minha cadeira para fazer o mesmo percurso que ela.
− Aonde vai? – Samuel se coloca prontamente ao meu lado, não acredito que ele ainda vai falar comigo depois do que sabe.
− Vou atrás dela! – Ele apenas caminha ao meu lado abrindo as portas com o auxílio de um lenço umedecido. Depois de tudo o que passou aqui está ele firme e forte, meu amigo campeão.
Quando passamos pela sala diretamente para a porta escuto a voz da pessoa mais indesejada do universo. Eu realmente não estava com paciência para isso hoje.
− Problemas no paraíso, priminho? – Francis estava sozinho na sala, sentado no ridículo sofá com um copo do que parecia ser uísque na mão e um sorriso sarcástico no rosto. – a moça passou aqui bem angustiada.
− Que eu saiba, priminho, esses são os problemas de um casal de verdade, nem sempre podemos concordar em tudo afinal somos pessoas diferentes e teremos divergência. Eu sei que você não conhece isso porque vive uma mentira atrás da outra. Se me der licença, eu preciso deixar o meu paraíso perfeito outra vez. – Para todos os efeitos ele não sabia que eu fingia ter um relacionamento, assim como ele sempre fazia.
Apenas direciono a cadeira para o hall, pois o Samuel já abriu a porta da sala para mim. Ela está apertando, freneticamente, o botão para chamar o elevador. Quando percebe minha presença apenas reclama:
− Esse elevador demora demais! – Penso em dizer algo ao Samuel, mas quando olho para trás percebo que ele fechou a porta e não veio junto dando a nós um pouco de privacidade.
− Ei, eu...olha, me desculpa. Você já percebeu o porque não podemos ficar juntos, eu te faço chorar e faço as pessoas meu redor sofrerem.
− Se eu sofro ou não é por escolha própria; eu só queria que esse sofrimento valesse a pena!!! – Ela fala emburrada com os braços cruzados e um bico nos lábios; todaessa postura de irritação só a deixava ainda mais linda.
− Lívia, você sabe a minha situação e, inclusive, fez o favor de espalhar por aí. Eu não vou te fazer sofrer depois, por isso eu sempre te digo 'não'. É melhor você sofrer agora do que depois.
− Essa escolha não deveria ser minha? – Ela questiona.
− O que você escolhe então: quer sofrer agora ou depois?
*Nota da autora: O Artigo 217 do Código Penal BRASILEIRO descreve como crime de estupro de vulnerável a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos de idade. A pena para quem comete esse crime compreende prisão de oito a 15 anos. Se o abusador for familiar, cuja função seria cuidar e preservar a criança, a pena aumenta, assim como se a vítima for incapaz intelectualmente ou se a agressão deixou lesões graves ou causou a morte. Nesses casos, o tempo de prisão é elevado para 30 anos.
Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm#:~:text=Estupro%20de%20vulner%C3%A1vel-,Art.,a%2015%20(quinze)%20anos.
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Todo mundo já sabe o que a Lívia vai dizer a ele, não é gente? O "X" da questão é que eles enrolam muito pra assumir esse romance. Aff!
Tentarei postar o próximo capítulo o mais breve possível. Bom final de semana.
Não esqueçam de deixar sua estrelinha.
Até o próximo capítulo.
Abraços!!!
#gratidãosempre
Capítulo publicado e revisado dia: 02/04/2021
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