XXXIX - A CAÇADA
As ondas se chocavam contra as pedras na praia. A maré estava agitava e o céu enevoado. Ao longe, no extremo horizonte cinza, via-se uma tempestade com raios resplandecentes. A velocidade do vento era estarrecedora, barracas de palha estavam sendo carregadas pela areia e a poeira deixava o tempo turvo e o ar rarefeito.
Vânis cobria a face com as mãos, a areia penetrava em seus olhos, deixando-os lacrimejantes. O trânsito estava agitado demais para uma ilha tão parada. As tempestades em Laucana eram violentas e a última passagem de um ciclone extratropical deixou a população em alerta para o retorno de tal evento.
— Diga logo o que quer? — A pergunta em tom áspero veio de Salomon. O ancião de face tatuada a fitava com desdém, enquanto cobria a cabeça com o capuz do seu manto branco.
— Você sabe. É sobre as imagens que lhe enviei ontem — ela respondeu.
Salomon a puxou pela gola do casaco com força, erguendo o seu corpo. Vânis sentiu os pés saírem do chão. Ela arregalou os olhos diante daqueles dentes brancos que rangiam.
— Você me fez vir aqui para perder tempo com suas historinhas? — ele esbravejou.
— Não, meu senhor. — ela falou, tentando ser cordial, mesmo sabendo que nada abafaria a fúria daquele homem.
— Estou em uma caçada em Mengie! A pedra com o feiticeiro desapareceu, será que não tem noção da gravidade da situação?
Salomon estava alterado, mas tinha os seus motivos. Há um ano estava à procura do rubi utilizado no ritual do selamento do feiticeiro e até o momento não havia se deparado com nenhuma pista.
— Estou falando de uma sereia, senhor. Certamente uma criatura de Mengie — Vânis falou, se arriscando a uma explosão de fúria do ancião.
Salomon não se conteve, atirou aquela mulher com toda força no chão. O vento bagunçou o seu cabelo curto enquanto ela gemia pelo tombo. A bióloga retirou algumas mechas dos olhos e o fitou, assombrada. Ele segurava um de seus punhais.
— Você possui mais de cinquenta anos de treinamento e está ciente que sereias são criaturas espirituais existentes de Mengie e só podem ser vistas quando assim desejam. Pelo o que aprendeu em Hidda, elas nunca aparecem no plano físico.
— Mas posso provar com as imagens! — Vânis insistiu, mesmo sabendo que Salomon perderia a paciência e não seria piedoso em puni-la.
— O que mais existe nesse mundo são imagens manipuladas. Me dê um motivo para deixá-la viver? — O homem apontou sua lâmina para ela.
Vânis não esperava ser punida com a própria vida. Salomon estava exagerando, ela não fez nada contra a ordem. Ele estava nervoso, ela compreendia isso, mas estava exaltado. Precisava convencê-lo de alguma forma a reconsiderar.
— Eu posso trazê-la até o senhor — ela falou enquanto algumas gotas de chuva caíam sobre o seu corpo.
O punho de Salomon abaixou lentamente, mas ainda segurava o punhal com firmeza. Ele respirou fundo, tentando controlar as emoções e evitar de ter que punir aquela mulher ali mesmo, em público.
— Tudo bem! — ele disse, convencido. — Você tem até amanhã. Traga a sereia até a mim e será poupada. — Ao terminar, Salomon segurou na pedra branca que carregava presa a um cordão em seu pescoço e então uma luz emergiu, cobrindo o seu corpo por inteiro. O clarão ofuscou a visão da bióloga, que tapou os olhos e após isso, toda aquela luz dissipou juntamente com o ancião.
...
Alex olhava a chuva através da janela de vidro do seu quarto. O tempo estava escuro lá fora e o vidro embaçado, pequenas gotículas escorriam após ele escrever o seu nome. Os seus olhos continuavam fixos no nada, pois ele ainda estava perdido em pensamentos, maravilhado com a existência de Samy e preocupado com a proposta daquela bióloga. Mais cedo, havia acessado a internet em seu computador e verificou nos sites as mesmas notícias de Laucana. Aquilo se espalhou como vento e pelo visto a cabeça da sereia estava a prêmio.
Ele deitou em sua cama, observando a escuridão avassaladora do seu quarto. O que ele ia fazer? Entregar Samy para a Vânis? Ou deixar que outras pessoas a capturassem e fizessem todas aquelas barbaridades? Ele não sabia, mas estava inquieto e precisava fazer alguma coisa depressa.
Devia ser mais ou menos meia-noite e meia, e Rachel estava dormindo em seu quarto e seu pai ainda não havia chegado. Isso mesmo, ele voltou para a filial da empresa na cidade após perceber que Alex estava bem. Com toda aquela chuva, ele não retornaria tão cedo para casa, se é que regressaria antes do amanhecer!
Alex sentou-se na cama e suspirou. Não ia dormir, não conseguia. Estava prestes a fazer uma loucura novamente. Estaria ele ficando maluco com toda aquela obsessão?
Fisicamente a sereia se parecia com sua mãe. Os olhos azuis e intensos, o cabelo negro e os lábios rosados, mas... seria isso, talvez, que fazia ele não parar de pensar nela, ou simplesmente por estar diante de uma criatura sobrenatural da qual ele não sentia medo?
Ele levou as duas mãos a face e percebeu que suava frio. Lembrou-se então do equipamento de pesca do seu pai e da sua lanterna a prova d'água. O rapaz levantou-se, abriu as portas do seu guarda-roupa e de dentro retirou uma capa plástica para chuva. Pelo visto, Alex faria uma loucura, ou mais uma delas.
Lá fora a chuva parecia tranquila, embora mais cedo as rajadas de vento estivessem assustadoras. Alex vestia a capa de chuva e segurava a lanterna ligada, enquanto saía pelo portão sem olhar para trás, jogando o feixe de luz para o cais. A maré estava tranquila e a chuva fina, mas ele ainda não estava satisfeito com aquela serenidade. Ele caminhou cautelosamente até o cais de madeira e olhou para aquela calmaria. Precisava falar com Samy de alguma forma, mas não sabia como.
Ele se pôs de joelhos e abaixou a cabeça. Mirou a luz da lanterna na água e nada diferente aconteceu. Como faria para chamá-la? Ele fechou os olhos com força, precisava pensar em algo. Apoiou a lanterna no chão de madeira e abaixou ainda mais o seu corpo, tomando cuidado para não cair e mergulhar contra a sua vontade.
— Samy — ele a chamou com a voz rouca, sem saber se ela podia escutar. — Samy! — ele gritou por ela outra vez e com um tom de voz mais alto.
Não estava dando certo, ela não ia aparecer. Ela poderia estar em qualquer parte daquele golfo, até mesmo no oceano afora. Ele fechou os olhos, decepcionado, se endireitou e sentou no cais. O que ele estava fazendo, afinal? Que loucura era aquela? Ele deveria se levantar e voltar para casa, dormir, quem sabe. No dia seguinte, compraria uma passagem para outro país, para a sua cidade natal ou qualquer lugar que fosse mais calmo. Aquilo já era demais para ele. Terapia? Ele estava à beira do caos.
— Me chamou?
Alex paralisou, abriu os olhos subitamente e fitou o ser marinho abaixo dos seus pés. Era ela! Havia dado certo, afinal. Ele não queria saber como ela o havia escutado, mas funcionou.
— Samy! — ele falou sorrindo, mesmo sabendo que aquele não era um momento feliz.
Ela o observava com seriedade. Alex percebeu que a sereia exibia um tom azulado quando estava na água. Fora isso, tinha algo diferente nela, não somente o fato da sua pele estar um pouco mais bronzeada como se passasse horas no sol, ela parecia um tanto humana.
— Você está diferente!
Ela não demonstrou curiosidade, estava ciente dos acontecimentos em seu corpo. Foi como Lauren disse há um ano, em Mengie. Ela estava se tornando humana e o processo de repente começou a acelerar nos últimos dias.
— Por que me procura, Alex? — ela perguntou, sem querer tocar no assunto anterior.
— Samy, você precisa fugir! — ele alertou. — Algumas pessoas desejam capturá-la.
— É... eu sei — ela disse e sorriu mesmo sabendo que a situação era preocupante. — Não posso sair daqui.
— Mas você precisa sair! — Ele tentou diminuir o tom da voz enquanto a encarava com preocupação. — Eles vão feri-la ou... fazer algo pior.
— Eu fico feliz com a sua preocupação, mas eu não posso deixar esse lugar. Preciso proteger o rubi que está escondido nessas águas.
Alex franziu o cenho. Não fazia a mínima ideia do que ela estava falando. Que rubi era esse? Qual era a finalidade de proteger uma pedra preciosa que, para ela, não era nem um pouco útil? Samy percebeu o semblante duvidoso do rapaz.
— Você não entenderia se te explicasse. Os humanos desse mundo são ignorantes em relação à verdade.
Alex não tinha a mínima ideia do que ela queria dizer. Ele retirou o capuz da capa de sua cabeça, a chuva havia dado uma trégua e apenas um vento frio açoitava seu cabelo louro.
— Estou falando da nossa deusa Isth — Samy continuou. — Se acredita que eu existo, deve acreditar na existência dela também.
Alex sentiu um arrepio em seu corpo. Isth existia? Ele nunca acreditou nas histórias e nem contemplava as estátuas espalhadas em alguns lugares. Para ele, aquilo não passava de uma lenda, e desde criança zombava da antiga religião chamada "Isthiismo". Mas Samy estava certa, ele podia vê-la, ela era uma sereia, uma criatura sobrenatural, então faria sentido se a deusa criadora daquele mundo existisse.
Samy olhou em diversas direções como se fosse um felino, os seus olhos estavam arregalados e vidrados no ar. Aquilo assustava.
— Tem alguém se aproximando — ela sussurrou, sombria. — São três pessoas.
Alex não duvidou da percepção da sereia. Ele paralisou por um breve momento e tentou se concentrar na sua audição, mas não tinha aquele sentido apurado como ela, apenas escutou o barulho do vento e das ondas. Olhou um pouco ao redor, por enquanto ninguém se aproximava, mas precisava convencer Samy a fugir.
— Samy, — ele disse, apoiando as mãos sobre as tábuas de madeira — precisa ir embora logo!
— Não dá mais tempo — Ela disse com a maior tranquilidade do mundo. — Eles já estão aqui. Precisa se esconder.
Esconder? Como? Alex não sabia para onde ir. Olhou para trás e lá estava o portão da sua casa a alguns metros. Não. Ele não faria isso. Não podia deixar Samy sozinha correndo perigo. Ele precisava protegê-la de uma forma ou de outra, mesmo que custasse a sua vida e que não fizesse sentido algum. Ele olhou para baixo, fitando a sereia que jazia tranquila com seu cabelo negro flutuando na água.
Alex engatinhou até o final do cais e jogou o corpo contra a maré. Ele mergulhou de cabeça, afundando na imensa escuridão do mar. Demorou para ele retornar à superfície, mas guiou-se através do vulto da cauda de Samy. O rapaz ergueu a cabeça para fora d'água a poucos centímetros da face da sereia e automaticamente a face dela enrubesceu. Não foi intencional, mas sentiu suas bochechas corarem da mesma forma. Ele abriu a boca para tentar se desculpar por isso, mas antes que a sua voz pudesse sair, a jovem o agarrou pelo pescoço com uma braçada e o carregou a nado para debaixo do cais.
Samy tapou a boca de Alex com uma de suas mãos e com o outro braço abraçou o peito dele contra o seu tórax nu. Ela respirava ofegante no ouvido dele e ele não conseguia disfarçar a tremedeira em seu corpo, mais de medo do que frio.
— Eles já estão aqui — ela sussurrou, enquanto uma mecha molhada de cabelo caía em sua face.
Alex engoliu em seco e tentou controlar a sua respiração. Passos pesados por cima de suas cabeças moviam as tábuas de madeira, a única luz era da lanterna que ele havia deixado acesa minutos atrás.
— Não devia estar aqui, Alex — Samy falou em um tom mais baixo possível.
Alex não quis protestar, não se arriscaria a falar mesmo com os lábios abafados pela branca mão da sereia, não podia entregar a sua posição a quem quer que estivesse lá em cima. Samy ficou em alerta ao escutar alguns murmúrios.
— Eu escutei um barulho na água — Uma voz masculina falou. — Será ela?
Eles tinham parado de andar e certamente estavam com a lanterna de Alex em mãos.
— Não somos os únicos interessados. — Alex reconheceu a voz de Vânis. — E não estamos sozinhos aqui. Estejam preparados para matar quem cruzar o nosso caminho!
— Sim, senhora! — os dois homens concordaram em uníssono. Samy apertou suas mãos nos lábios de Alex com mais força.
— Se eu morrer, não poderei te proteger, Lú — ela desabafou, mas não para Alex, mais parecia que era para as águas. — Por que fui me apaixonar?
Alex não fazia ideia do que Samy estava falando e por um segundo escutou um soluço vindo dela. Parecia um choro. Ela tirou a mão da face do rapaz e a levou a um dos olhos.
— Estou vazando — ela falou, enxugando a lágrima com os dedos.
Samy nunca chorou, não sabia o que significavam aquelas gotas d'água que brotavam do canto de seus olhos. Ela olhou para seus dedos, desnorteada. Alex virou o seu corpo para ela, tentando decifrar aqueles olhos tão tristes.
— Você está chorando — ele disse, fitando os olhos avermelhados da sereia.
— O que isso quer dizer? — ela perguntou, atônita.
— Que está triste.
Alex delicadamente tocou a face dela com a ponta de seus dedos e enxugou uma lágrima que percorria solitária pelo canto dos lábios rosados da sereia. Os dois entreolharam-se fixamente. O silêncio se perpetuou, até mesmo os murmúrios vindos de cima do cais tinham emudecido. O rapaz respirava ofegante pelo frio, o seu corpo estava gelado, ainda mais que o de Samy. Ele tocou o ombro dela com a sua outra mão e sentiu a pele arrepiar.
Ele não sabia o que estava fazendo, era como se o seu corpo estivesse agindo automaticamente. Alex não conseguia controlar o seu impulso, nem mesmo quando a sua face estava tão próxima da dela. As batidas de seu coração aceleraram e seus olhos se fechavam. Samy nem reagia. Ele estava prestes a beijar uma sereia! Parecia errado, mas o seu consciente dizia o contrário.
A sua boca se abriu e ele já sentia a respiração lenta da sereia. Os seus lábios se tocaram brevemente e antes que Alex pudesse aprofundar o beijo, algo caiu na água de repente, interrompendo aquele momento.
Os dois jovens olharam assustados para o local onde alguém havia mergulhado, provocando uma leve onda. Não demorou muito para uma cabeça emergir. Era um homem com uma roupa de mergulho e em suas mãos tinha uma pistola com o cano mirando para eles.
— Entregue a sereia! — a voz grossa e seca do homem rugiu.
Samy ficou paralisada e os seus olhos arregalaram diante daquela ameaça. Alex se posicionou em frente a ele e engoliu em seco. Estava sob a mira de uma potente arma militar. O que ele estava pensando ao fazer isso? Protegendo a sereia.
— Samy... — ele sussurrou sem tirar os olhos do homem com roupa de mergulho. — Fuja. Depressa!
A sereia o abraçou por trás, colocando suas duas mãos no peito dele. Ela aproximou os seus lábios do ouvido esquerdo do rapaz, tão perto que ele sentiu o seu hálito caloroso.
— Não vou deixá-lo — ela sussurrou, contrariando o pedido dele.
— Não seja teimosa. Esse cara vai te matar!
Samy desconhecia a arma que aquele homem tinha em mãos, mas tinha a certeza que era mortal. Não podia subestimar os humanos de Karkariá, eles habitavam um mundo moderno e como toda sociedade evoluída tecnologicamente, a ganância sempre falava mais alto. Agora que ela podia ser vista por todos, estava com a sua cabeça a prêmio.
— Vamos! — o homem insistiu. — Ou estouro a sua cabeça! — O dedo do homem tremia no gatilho. Ele ia atirar a qualquer segundo.
Samy mergulhou subitamente e puxou Alex para debaixo d'água no mesmo instante em que o homem apertou o gatilho da pistola. A bala passou por cima da cabeça do rapaz e por pouco não foi atingido de raspão. A sereia nadou rapidamente pelo mar profundo, carregando o rapaz louro em seus braços. Eles estavam em vantagem. O homem de roupa de mergulho nunca conseguiria alcançá-los, ainda mais com o enorme tubo de oxigênio que carregava nas costas.
Alex prendia o fôlego o máximo que conseguia, mas a sua necessidade de respirar era enorme. Samy continuou a nadar, abraçando o rapaz por trás, porém, ela estava fraquejando. Sentia uma forte ardência em sua cauda de peixe, como se a sua pele estivesse descamando. A sua capacidade de respirar na água também estava abalada, ela sentia a água adentrando em seus pulmões. A sua transformação estava acontecendo em uma péssima hora.
Por cima deles, um barco a motor navegava. Alex viu a hélice cortando as águas bem acima de suas cabeças. Eles estavam em um beco sem saída e a pior parte era que não aguentava ficar mais um segundo sem respirar e sem ele saber, Samy estava sofrendo com isso também.
Samy diminuiu lentamente a velocidade do seu nado até parar completamente. Ela soltou Alex e, com isso, o seu corpo desfalecido afundou na negritude profunda do mar. O rapaz ficou sem escolha, mas precisava arriscar, mesmo que na tentativa de salvá-la custasse a própria vida. Ele mergulhou fundo e nadou o mais rápido que podia.
Alex segurou no pulso dela, porém, a sua tentativa de escapar dali com vida estava sendo em vão. Sentia a água invadir o seu canal respiratório e seus pulmões se negavam a continuarem parados. Ele tentou nadar de volta para a superfície, mas o seu corpo pesava e com apenas um braço dificultava ainda mais. A sua mente estava escurecendo e os seus pensamentos tão desordenados a ponto de ele perder totalmente os sentidos.
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