XXVIII - LAI SEREN
Lú fitava o pedaço de carne engordurado em suas mãos. Apesar da fome que sentia anteriormente, naquele momento ele já tinha perdido o apetite. O seu pensamento estava longe, distante de tudo à sua volta, até mesmo do seu pai. Na verdade, ele não sabia o que estava sentindo naquele momento. Poderia ser felicidade, raiva, decepção.
Ele estava sentado no tronco caído de uma árvore e ao seu lado estava o seu pai. Saul exibia um peitoral justo e por baixo uma camiseta sem mangas, não usava mais nada de armadura além disso. O seu cabelo estava preso com um barbante e o mais incrível era o comprimento das madeixas negras, que passavam da altura do quadril. Fora isso, não havia mudado muita coisa, foi como se o tempo tivesse parado para ele. Estava tão jovem quanto Karlo.
Outra coisa que havia chamado a atenção do garoto azul era a espada que o seu pai carregava embainhada na cintura. Ele sabia que não poderia se irritar com aquilo, afinal, ele também precisou aprender a usar a arma em seu treinamento, não seria diferente com alguém que morou nessa terra durante oito anos.
Lú rangeu os dentes. Não suportava mais aquele silêncio ensurdecedor. O seu pai só o fitava como se estivesse apenas admirando-o ou algo do tipo. Já estava irritante para ele, o mínimo que aquele homem poderia fazer era se explicar. Se é que alguma explicação consertaria o que ele fez.
— Não vai comer? — Saul perguntou, finalmente quebrando o silêncio.
O homem lambia os dedos engordurados pela carne após terminar de apreciar a iguaria e fitava o garoto azul, que permanecia alheio, distante de tudo ao redor.
— Você cresceu — ele disse orgulhoso ao esboçar um sorriso. — Já está um homem!
— Não graças a você! — Lú retrucou de imediato, ainda com os olhos vidrados no pedaço de carne fria.
— Filho... eu entendo a sua raiva, mas... — Saul suspirou.
— Você não entende! — Lú levantou subitamente, jogando no chão o pedaço de carne assada de cervo, então olhou para o seu pai com a face chorosa. — E não me chame de filho!
Saul mantinha uma certa tristeza em seu semblante, meio que constrangido pelos seus atos no passado, então entrelaçou os dedos uns aos outros. Pelo visto, precisava de uma longa conversa com o filho. Um longo e tenso diálogo.
O olhar do garoto era feroz, como se quisesse fuzilá-lo com a mente.
— O que mais me magoa é saber que você tinha conhecimento da minha sobrevivência e nem mesmo me procurou. — A voz do garoto saiu falha no final, acompanhada de uma lágrima solitária que percorria o seu rosto.
— Lú, eu...
— Cale-se! Você e Karlo são grandes amigos, não é? Eu descobri tudo.
Saul se levantou. O clima daquela discussão já estava pesado o suficiente para chamar a atenção dos homens no acampamento.
— Aqui não é um bom lugar para a gente conversar. Venha comigo — ele sugeriu.
A teimosia de Lú era eminente. Ele não moveu um músculo e pelo visto não iria sair dali.
— Por que fez isso? — o garoto questionou-o, embora a sua voz soasse mais chorosa do que irritada.
Saul se aproximou, tentando segurar os ombros do seu filho, porém, o garoto se esquivou, recusando o toque do seu pai.
— Tudo bem. — Saul cerrou os punhos entre o vazio que dividia o seu filho e ele. — Eu te devo essa explicação. Por favor, eu peço que me compreenda.
Lú cruzou os braços, parecia estar atento às palavras daquele homem.
— Primeiro, eu queria pedir perdão por ter abandonado vocês. Foi muito ordinário da minha parte deixar você tão pequeno e Léa esperando um filho... — Ele desviou o olhar para além do céu estrelado e de algumas nuvens que se movimentavam na imensa escuridão.
— Dena e Sádia. — o garoto disse automaticamente, enquanto retirava a capa negra que cobria o seu corpo. Saul olhou para o garoto, sem compreender o que aquelas palavras significavam. O garoto logo percebeu o desconhecimento do assunto pelo semblante do seu pai. — As minhas irmãs tinham esses nomes — o garoto revelou.
— Eu tive duas meninas. — Saul sorriu emocionado e manteve o olhar fixo nas estrelas enquanto sussurrava.
— Sim, mas estão mortas — Lú disse de maneira indelicada. — Eu as vi morrerem. Uma de cada vez! — Saul manteve silêncio, apenas via as lágrimas lavarem o rosto do garoto como uma enxurrada de tristeza. — Você se safou e eu... carrego o trauma — o garoto finalizou.
Lú ficou de cabeça baixa, gotas das suas lágrimas caíam em suas botas. O lado sentimental do garoto sempre o atrapalhou para a demonstrar a sua irritação, e não era esse tipo de imagem que queria que o pai tivesse dele. Ele queria salientar um outro perfil. Um perfil forte e maduro de um jovem adulto, embora fosse apenas um adolescente.
— Me perdoe — Saul falou baixinho, demonstrando o seu eterno remorso.
— Isso não tem perdão — ele disse finalmente. — Você é um egoísta! Um... — Franziu o cenho. — Nem tenho mais palavras para descrevê-lo, eu só sei que não merece ser chamado de "pai". Você nos abandonou quando mais precisamos de você!
O garoto alterara a sua voz, mas a essa altura Saul não estava mais se importando com aquela atenção voltada a eles. Ele só queria reconquistar o amor do filho, mesmo que naquele momento dava a impressão de ser algo impossível.
— Eu os deixei porque era necessário! — Saul desabafou, emocionado. — Não por ser egoísta. Eu me arrependo amargamente por isso, mas não tive escolha.
— O que quer dizer com isso? Que foi obrigado? — Lú não acreditava naquela desculpa do seu pai, não fazia sentindo algum.
Saul inspirou fundo, soltando todo aquele ar de uma vez. Não seria fácil revelar aquele segredo para ele, mas já era hora. O homem manteve a calma e tentou sorrir, mesmo que com toda aquela pressão a sua expressão facial não conseguia corresponder ao seu comando.
— Eu me obriguei a isso — ele respondeu, distante, como se seu pensamento estivesse no passado, exatamente há oito anos. — Eu já sabia, Lú.
— Sabia? — Lú não fazia ideia do que seu pai queria lhe dizer.
O homem voltou os olhos às estrelas, como se procurasse alguma resposta para aquela situação.
— Quando você tinha três anos, — ele voltou os olhos ao garoto — havia sofrido um acidente fatal. Acho que não se lembra disso, claro. Você caiu de um desfiladeiro enquanto brincava com outras crianças. Caiu de uma altura de uns vinte metros. — Ele pausou por um momento, observando se o garoto realmente prestava atenção no que ele dizia. — Eu corri imediatamente para socorrê-lo, mesmo sabendo que não encontraria o seu corpo inteiro, mas...
— Eu estava vivo, não era? — Lú completou a fala dele. Saul assentiu positivamente com a cabeça.
— Você dormiu por uma semana. Lentamente, os seus ferimentos foram se curando e por incrível que pareça, você acordou como se nada tivesse acontecido.
Lú já desconfiava que o seu pai tinha o conhecimento de que ele era um feiticeiro, mas como ele sabia daquilo? Homens azuis eram alheios àquela informação, até mesmo a maioria das pessoas que ele conhecia não sabia o que era um "feiticeiro". Ele sequer conhecia aquele termo antes. Pelo visto, o seu pai escondia mais segredos do que ele imaginava.
— Então você sabe que sou um feiticeiro — Lú supôs. — Por isso foi embora? Estava com medo? Sabia dos caçadores de Karen também? Quem lhe contou isso? — O questionamento naquele tom áspero do garoto já estava deixando Saul incomodado.
— Ninguém me contou, Lú, e eu não estava com medo — ele respondeu. — Eu fui embora para poder protegê-lo.
— Já chega! — Lú cerrou os punhos, furioso, e trincou os dentes diante daquela desculpa esfarrapada. — Isso não faz nenhum sentido. Seja direito e assume que é um covarde!
Saul não se abateu com a ofensa. Ele aproximou-se o suficiente do seu filho e dessa vez conseguiu segurar nos seus ombros. Ele olhava no fundo dos olhos sem vida dele, como se pudesse transmitir algum tipo de ternura.
— Agora me escute — ele disse lentamente. — Eu os deixei não por medo e muito menos por egoísmo. Eu... sou um seguidor de Karen.
...
A lua azul nascia além do horizonte. As nuvens cobriam grande parte do círculo, deixando-a com uma aparência enevoada. O tempo estava frio, quase congelante e não se via nada além da água escura. O pequeno navio que Austin havia conseguido para transportar os rebeldes navegava tranquilo, deixando uma linha iluminada pela lua no caminho.
A embarcação à primeira vista parecia ser bastante precária. A madeira da portinhola e amurada estava repleta de musgo. A parte interior do convés cheirava a mofo e a maioria das janelas das câmaras dos dormitórios estava emperrada. Porém o bico da proa exibia uma escultura bastante peculiar. A figura mostrava uma mulher de seios nus e cabelo longo, as suas mãos estavam juntas em concha, como se oferecesse água. Da cintura para baixo não exibia pernas, mas sim uma cauda de peixe. Era impressionante os detalhes das escamas e magnitude daquela obra de arte. "Lai seren". Era o nome da embarcação em sidelênico, que significava: "A sereia".
Gabbe apoiava os cotovelos no parapeito da popa do navio, olhando para a imensidão negra do oceano, pensativa, com o forte vento açoitando o seu rabo de cavalo e empurrando a embarcação ao inflar as suas velas.
Ela escutou alguns passos subir a escadinha do tombadilho atrás dela, então virou-se lentamente. As suas bochechas estavam coradas pelo imenso frio e seus braços nus revelavam a pele arrepiada. Não trajava mais sua armadura e usava uma roupa mais leve para passar a noite.
— Está frio aqui fora. Por que não dorme um pouco? — Karlo perguntou, solícito.
— Não estou com sono. — Gabbe virou a face para a lua e sussurrou com uma voz doce.
Karlo estava descalço, as suas vestes eram finas e folgadas. Era a primeira vez que a garota loura o via vestido desse jeito, mas não quis comentar. O homem pôs as mãos nos bolsos e mirou o olhar na lua também.
— Por que quis vir conosco? — ele perguntou, mudando de assunto. — Sabe que não era obrigada a isso.
— Foi uma escolha minha. Não se preocupe com isso. — Gabbe o fitou, alheia, sem demonstrar muita emoção.
— Eu sempre me preocupo com você. Não pense que havia me esquecido de você durante o tempo em que fugiu. — Karlo aproximou-se vagarosamente. O seu cabelo prateado brilhava à luz lunar, aderindo tons azulados, assim como suas vestes claras.
Gabbe continuou com sua expressão séria, afundando os profundos olhos verdes naquele vazio soturno da noite. Karlo percebeu aquela feição triste e distante da loura. Delicadamente, pausou a sua mão no ombro da moça, percorrendo lentamente seu braço nu, como se seu foco principal fosse sentir aquela pele dourada e macia. A garota o encarou fixamente e ambos trocavam olhares.
— Karlo — Gabbe falou. — Você me ama?
A pergunta pegou Karlo desprevenido. Ele afastou a mão que acarinhava a moça, porém, ela segurou seus braços e propositalmente colou o seu corpo ao dele. O homem já expressava nervosismo diante daquela situação.
— Eu quero que seja sincero — ela pediu, enquanto aproximava a sua face da dele.
— Gabbe, por favor — ele disse, enquanto sentia os lábios da moça enroscarem em seu queixo.
Gabbe escutava as palpitações aceleradas do coração de Karlo e sentia as suas mãos timidamente segurarem em sua cintura. Ele não conseguia resistir.
— Vamos, me responda — ela sussurrava enquanto o beijava no canto da boca.
Ele suspirou enquanto tocava a face dela com os dedos.
— Eu amo Isi...
Gabbe o interrompeu com um longo beijo. Ele se deixou levar pelo atrevimento da moça e acompanhou o movimento dos seus lábios. As suas mãos se moviam involuntariamente pelo corpo da jovem, enquanto o braço direito envolvia a sua cintura e sua mão esquerda afagava a sua nuca.
Eles se afastaram por um breve momento, embora seus lábios estivessem próximos o suficiente para outro beijo. Gabbe envolvia seus braços no pescoço dele e lentamente abriu os olhos para fitar os dele.
— Diga, Karlo — ela sussurrou com uma voz doce.
— Eu amo Isis — ele respondeu.
— Não estamos falando dela — Gabbe retrucou. — Eu quero saber se você me ama.
Karlo estava sem palavras. Talvez ele soubesse a resposta, mas não queria pronunciar em voz alta. Os seus olhos trêmulos iam de encontro aos delas, que ansiavam o que ele tinha a dizer, embora que o único som ali fosse do vento e das águas.
Gabbe não esperou muito, já tinha certo o silêncio como resposta. Ao invés de se magoar, ela apenas o abraçou forte, afundando a sua face no ombro dele. Karlo correspondeu ao abraço e carinhosamente beijou o alto da cabeça dela.
— Eu te amo, Karlo — ela se declarou ainda nos braços dele. — Sempre te amei.
Eles continuaram abraçados por um longo período de extremo silêncio. Foi nesse momento em que Karlo se sentiu dividido. Em seus braços, estava a sua ex-aluna, até então uma exuberante mulher, e em Erágolis estava a sua esposa, a qual lhe deu dois filhos. Ele nunca foi de demonstrar sentimentos, mas estava cometendo uma loucura, talvez um erro irreparável.
— Eu também — ele disse ao som do vento. — Te amo.
...
Lú largou o seu manto para trás e correu em disparada. Entrou em uma parte da floresta que não conhecia, bem mais além das ruínas das casas. As árvores eram muito próximas umas das outras e suas copas exibiam uma vasta folhagem, tão densa que formava um teto de galhos e folhas, de modo que tapava toda a visão do céu. Com isso, era notável a extrema escuridão, porém, o garoto não se abalava com aquilo. Ele continuava a correr, desviando dos obstáculos que encontrava, saltando pedras, arbustos e ziguezagueando entre as árvores.
Saul o perseguia na tentativa de alcançá-lo, gritando o seu nome. O garoto era muito rápido e ágil, se esquivava com facilidade dos obstáculos em seu caminho, ao contrário dele, que precisava reduzir a corrida a cada árvore à sua frente. Em suas mãos, ele levava o manto do garoto, pois sabia que aquela peça era fundamental para escondê-lo no reino de Erágolis.
Lú corria o mais rápido que conseguia. Não podia confiar naquele homem que um dia chamou de "pai". Um seguidor de Karen, um matador. Seria ele o tal bruxo? Ele poderia ser um parceiro do bruxo, como aquela drácon. O garoto só tinha certeza de uma coisa, foi enganado a sua vida inteira. Já estava cansado da própria existência. Ser abandonado, perder sua família, sua infância, ser perseguido, ser usado como arma e ter a cabeça a prêmio. Talvez ele pudesse compreender os motivos que levaram Luciano Antunes ao suicídio. Se ele descobrisse alguma forma de morrer, seria o próximo da lista. Se nada fazia mais sentido, por que continuar, afinal? E pensando nisso, por que fugir? Ser preso ou morto daria no mesmo.
A escuridão ainda persistia naquela floresta imensa. O garoto reduziu a sua corrida até parar completamente. Estava de encontro a um paredão de rocha escura e acima dele penetrava o único foco de luz da lua. O brilho lunar iluminava o seu corpo, destacando-o no meio das trevas que tentava o engolir completamente.
O homem azul finalmente conseguiu alcançar o garoto. Ele estava ofegante e exaurido. Jogou a capa negra que carregava no ombro e curvou- se, apoiando as mãos sobre as pernas. Enquanto respirava, olhava para o jovem feiticeiro à sua frente.
Lú esticou os dois braços com as palmas das mãos abertas e em seu olhar se via uma determinação eminente.
— Eu desisto! — ele disse decidido. — Me leve, me prenda, faça o que quiser. Acabou a perseguição.
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