XXIX - O FABULOSO REINO DE ERÁGOLIS
Saul fitava a face azul do seu filho. Os dois estavam sentados no chão, se encarando, como se estudassem suas expressões faciais.
— Não sou nenhum tipo de monstro — Saul disse, tentando convencer o garoto. — Não precisa ter medo de mim.
Lú deu de ombros, cruzou os braços e desviou o olhar. Nada do que ele falasse faria sentido, já tinha tirado as suas próprias conclusões. O seu pai era só mais um capacho de Karen, um mentiroso e covarde.
— Lú, olhe para mim — Saul pediu.
O garoto mirou os seus olhos nele, sem muito interesse. Em seu perfil era notória a cara de frustração, mas o homem ia se explicar assim mesmo.
— Eu sou um seguidor de Karen, mas não sou um caçador ou um bruxo, como imagina. Eu sou apenas um guardião. Existem alguns nesse mundo.
— Não deixa de ser um deles! — Lú retrucou.
— Não recebemos o mesmo treinamento que eles, apenas vigiamos o mundo. A nossa missão seria de encontrar um feiticeiro e informar aos caçadores. Mas tem outro fato importante. Costumamos receber visitas do ancião responsável pelo nosso grupo. — Saul olhou brevemente para o filho, que parecia interessado naquele assunto. — Eu estava te escondendo deles, Lú. Mas eu não podia fazer isso por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde iriam nos descobrir. E não era a minha vida que eu lamentaria, era a sua...
— Eu não acredito em você! — Lú esbravejou.
— Como não acredita, Lú? Eu os deixei para salvar a sua vida. Eu não me importaria de ser punido, mas jamais deixaria que castigassem você por algo que não fez! — Saul olhava fixamente para ele. — Você é meu filho! O meu papel é protegê-lo mesmo que custe a minha vida.
Lú não tinha mais palavras para se opor ao seu pai. No fundo, ele estava convencido, mas a mágoa e aquele sentimento de ser enganado esmagava o seu coração. Ele abaixou a cabeça, olhando para a terra coberta de folhas na qual estava sentado.
— Nunca faça isso!
A voz de Saul soou autoritária, chamando a sua atenção. Ele ergueu a cabeça em um sobressalto e o fitou.
— Nunca abaixe a cabeça! Nunca desista e nunca se renda. Lute, Lú. É a única coisa que te peço. — Saul pegou o manto que segurava e entregou ao garoto. — Pegue. — Ele ofereceu. — Vai precisar disso. Precisa chegar ao reino de Erágolis amanhã. Vamos voltar ao acampamento. Irei te guiar até a cidade do reino ao nascer do sol — Saul disse enquanto se levantava.
— Não precisa fazer isso — Lú respondeu ao se levantar também, ainda ressentido.
— Sim, eu preciso. E isso não se discute mais. — Saul deu as costas ao garoto e saiu caminhando.
...
Lú e seu pai voltaram para o acampamento. O garoto, mais tranquilo, comeu da carne assada do cervo e se deitou em uma das tendas estendidas na clareira. A ansiedade não o permitiu dormir. Foi um dia muito agitado ou melhor, uma noite conturbada. Ainda estava sendo difícil para ele aceitar aquela verdade do seu pai.
Enquanto estava deitado, olhando para o vazio da lona coberta, ele se perdia em seus pensamentos. Desde que sobreviveu àquela tragédia da sua ilha, o único objetivo era encontrar o seu pai. Ele se negou a ir para a tal terra no país da neve, Sabatow, que tanto Lauren insistia em levá-lo. Agora que finalmente o encontrou, a sua vida parecia ter perdido o sentido. Estava envolvido nessa rebelião e nem sequer sabia qual seria o seu papel nessa reviravolta. O sono não viria tão cedo e só lhe restava imaginar um futuro melhor.
O sol nem sequer havia se levantando e Lú e Saul já estavam de pé, caminhando pela mata fechada, já que não podiam usar as estradas pelo simples fato de ter soldados do reino perambulando por ali. Eles levariam o dia inteiro para chegar até a cidade, para o desgosto de Lú, que preferiria ir voando. Saul havia explicado que não poderiam chamar atenção. A muralha que cercava o território era vigiada por muitos guardas e qualquer sinal de suspeita, eles seriam pegos sem mais sem menos.
O sol nasceu e eles já haviam caminhando grande parte do trajeto, passaram por imensas florestas de pinheiros, árvores diversas, atravessaram um rio saltando pelas pedras, desceram as colinas e se esconderam em um capinzal ao notarem alguns soldados do reino passando por um caminho trilhado. Foi por pouco e por sorte não foram pegos.
Estavam no alto de uma montanha ao entardecer e, como previsto, eles haviam chegado. Lá de cima eles vislumbravam o incrível reino de Erágolis. Era enorme! O sol deitava no oeste, na direção do mar, o incrível brilho alaranjado da estrela iluminava o local em um tom incandescente. Era uma cidade imensa, as ruas mais largas desenhavam um símbolo que levavam até o centro, onde estava o maravilhoso castelo. O símbolo lembrava uma estrela de sete pontas.
— Bem-vindo a Erágolis! — Saul falou, contemplando a magnitude daquele belo lugar.
— É muito grande! — Lú disse, encantando.
O garoto percebeu outro fato. Antes do muro principal, ele notou a gigante muralha que percorria vários quilômetros da área rural. Lú logo supôs o que aquilo significava. Foi com o trabalho escravo que o maldito rei eragoliano ergueu aquele monte de pedras e Lú não sabia para que servia aquilo.
— Ele temia por uma invasão tandariana — Saul falou como se lesse os pensamentos de Lú. — Tudo o que ele queria era proteger a cidade que gerava os principais impostos. As outras, espalhadas pelo restante do país, recebiam reforços militares, mas imagina aí? Quantos soldados eles convocavam? Um monte! Então, foi obrigatório o alistamento de todos os homens. Até mesmo as crianças não foram excluídas. Isso foi um absurdo. Desumano! Está vendo essa muralha? Foram as mulheres que a construíram, a maioria, pode-se dizer. — Saul arquejou de tremendo desgosto ao revelar aqueles fatos ao filho. — Muitas pessoas inocentes estão morrendo nessa guerra, Lú, precisamos parar enquanto há tempo.
— Tempo de quê? — Lú perguntou, estranhando aquela última frase.
— Está vendo ali? — Ele apontou um dedo. — No mar. É um porto. Tem mais ou menos três navios ali.
Lú estreitava os olhos, mas estava muito distante e escurecia gradativamente, então não conseguia ver o que o seu pai queria lhe mostrar.
— Não consigo enxergar nada — o garoto disse.
— Isso mesmo! Eles estão em alto-mar. Vivem viajando em busca de ilhas isoladas sem reino que as controle. Quando encontram, eles sequestram os nativos e os trazem para cá.
— Mas... por que isso?
— Para obrigá-los a lutar na guerra, Lú. Erágolis perdeu grande parte dos vilarejos espalhada pelo país, só sobraram as cidades que movimentam o lucro. Talvez... você já deve ter uma ideia dos motivos que levaram a extinção do nosso povo.
Lú estava pensativo, mas não sabia o que responder e antes de pensar em algo, o seu pai continuou.
— Eles queriam escravizar toda a raça de homens azuis.
— Mas todo mundo foi morto! — Lú franziu o cenho e disse, atônito. — Não faz sentido.
— A nossa raça era pacífica, mas tem algo que você não sabe, Lú.
O garoto estava confuso. O que ele não sabia? Ele viu muita coisa acontecer aquele dia. Muitas pessoas morrerem.
— O nosso povo lutou — Saul afirmou. — Todas aquelas pessoas lutaram e, adivinhe? Foram motivados por sua mãe.
— Por minha mãe?
— Sim! — Saul sorriu, orgulhoso. — Eu a ensinei a lutar e ela foi uma guerreira como eu nunca tinha visto.
— Espere! Você estava lá?
— Sim. Assim que fiquei sabendo da invasão, corri para lá. Quando cheguei, já havia começado.
Lú cerrou os punhos enquanto olhava para o horizonte negro que se formava para além do reino. As primeiras estrelas surgiam no céu. Mais uma vez o garoto se sentia enganado. Por um instante, achava que poderia confiar em seu pai. Saul percebeu o semblante sombrio na face do filho, mas já era de se esperar depois daquela revelação.
— Você... — Lú tentava escolher as palavras, enquanto disfarçava uma lágrima que corria por sua face. — Poderia ter ajudado muita gente.
— Me desculpe, Lú. — Saul fitava o horizonte, avistando as primeiras luzes de lanternas a óleo iluminarem a cidade. — Eu deveria ter lhe contado tudo isso ontem, mas era demais para você.
Lú sabia que seu pai estava certo. Ainda era difícil engolir o fato do seu pai ser um seguidor de Karen.
— Pode ter certeza de uma coisa — Saul continuava. — Eu salvei muitas pessoas, mas não sou tão forte. Eram muitos contra mim e eu fui golpeado. Eu desmaiei e pensaram que eu estava morto.
— Você também não morre, não é? — Lú perguntou ao se lembrar que os seguidores de Karen são imortais.
— Não envelhecemos, Lú, e não morremos por morte natural, mas fora isso, tudo é possível. Eu quase morri aquele dia, pode ter certeza disso.
Lú assentiu, mas ainda se sentia confuso. Um vento frio soprava em seus corpos.
— Lú.
O garoto olhou para ele, prestando atenção em suas palavras.
— Fique sabendo que sempre amei a sua mãe. Ela sabia de todos os meus segredos. E não se sinta enganado, você era muito pequeno para compreender tudo que está descobrindo agora. — Ele sorriu. — Você se tornou um homem, Lú. Estou orgulhoso.
Saul levou dois dedos aos lábios, o polegar e o indicador, e assoprou, promovendo um assobio estridente. Ao terminar de fazer isso, do meio das árvores, uma ave branca voou ao seu encontro. Era uma espécie de coruja. A sua cauda era grande e as penas finas balançavam com o vento. A ave pousou no braço estendido do homem azul, enquanto Lú olhava admirado para o animal.
— Ela se chama Luza — disse o homem, enquanto tirava do bolso um papel amarelado enrolado. — Sabe o que significa essa palavra?
Lú balançou a cabeça negativamente.
— Eu acho que você não chegou a aprender direito o sidelênico — Saul disse.
Lú se lembrou que logo no início, Karlo o ensinaria, ou melhor, a dona Sina, mas foi algo que nem chegou a estudar.
— Significa "luz". — Saul sorriu, enquanto enrolava o papel no pé da ave. — O seu nome também é uma palavra sidelênica.
— O meu nome? — Lú franziu o cenho.
— Sim. — Ele amarrava o papel com uma fita vermelha. — Significa "lua".
Lú sorriu. Apesar de tudo, foi muito bom passar aquele tempo com o seu pai. Com a chegada da noite se aproximava a sua deixa. Era hora de encontrar Isis, se bem que ele não sabia como fazer isso.
Com os dentes, Saul puxou a ponta da fita para firmar o nó. Já estava pronto. Ele ergueu o braço onde estava a ave direcionando para a cidade do reino.
— Vá, Luza! Entregue isso à Isis! — ele ordenou.
A ave pareceu entender e no mesmo instante levantou voo, desaparecendo na escuridão. Saul olhou para o filho, um tanto emocionado, então colocou as mãos nos bolsos.
— Luza está levando uma mensagem à Isis anunciando a sua chegada.
Lú olhou para a cidade, que brilhava em um tom amarelado por conta das lanternas a óleo.
— Como pode ter certeza que vai entregar à Isis? — Lú perguntou, desconfiando da inteligência da ave.
— Eu sei que ela vai. Elas se conhecem, a ave pertencia a ela.
Lú não sabia que seu pai e a esposa de Karlo se conheciam tão bem a ponto de ele cuidar da coruja dela.
— Isis e eu somos velhos amigos. Eu conheci Karlo através dela. — Ele continuou expressando um sorriso. — Ela também é uma guardiã, como eu.
Lú estava pasmo com aquela revelação. Isso era demais para ele. Então Isis também era uma seguidora de Karen? Por que Karlo nunca lhe contou isso?
— O restante Isis te conta — Saul finalizou o assunto. O homem suspirou, sentindo o vento frio eriçar os pelos do seu corpo. No céu, algumas nuvens negras cobriam as estrelas, e pelo visto, aquela noite seria bastante chuvosa. Ele olhou para a cidade lá embaixo. Já era hora de o garoto partir.
— Lú — ele disse entristecido. — Já está na hora.
O garoto olhou para ele e concordou. Não poderia mais demorar. Puxou o capuz do manto que vestia sobre os olhos e caminhou até a ponta do abismo, se preparando para saltar.
— Espere um pouco, Lú! — Saul o interceptou.
O garoto olhou para ele. O homem aproximou-se de seu filho e pausou a mão em seu ombro.
— Escute — ele disse. — Caminhe pela cidade sem medo e se algum guarda o descobrir, não lute. Deixe que o levem. Com certeza vão levá-lo até o rei e não se preocupe, eles não vão feri-lo. Isis já vai estar ciente de tudo e fará a parte dela.
Lú assentiu, mas o seu pai ainda lhe tocava no ombro e o olhava de uma forma triste. Ele se comoveu com aquele semblante infeliz.
— Pai...
— Não precisa dizer nada — Saul disse com uma voz emocionada.
Eles se abraçaram e dessa vez Lú queria realmente fazer isso. O garoto, sempre sensível, se entregou ao choro. Ele odiava despedidas. Era difícil e triste carregar aquele sentimento de nunca poder encontrar as pessoas que deixava para trás. Ele pensou que talvez o seu pai tivesse feito a escolha mais custosa da sua vida. E agora que finalmente o havia encontrado, iriam se separar novamente. Eles se separaram e ambos estavam com os olhos molhados de lágrimas.
— Já está na hora. Me entregue a sua espada antes.
O garoto olhou para ele sem entender.
— Não seria bom encontrá-lo com uma espada. Poderia ser julgado como um espião de Tandária.
Lú assentiu, retirando o seu cinto com a bainha contendo a espada que Karlo lhe deu e entregou ao homem à sua frente. O garoto observava, percebendo a tristeza naqueles olhos profundos e vazios. Por fim, ele tentou sorrir, mas sem sucesso.
— Obrigado, pai — ele agradeceu. — Boa sorte!
O garoto olhou para a cidade à sua frente e se posicionou para levantar voo. Mesmo com o coração doendo por estar se despedindo mais uma vez, ele precisava realizar aquela missão. Ele precisava cumprir a promessa que fez a Karlo e salvar todas aquelas pessoas que estavam morrendo na guerra. Lú respirou fundo, abriu os braços e com os pés na ponta da terra, deixou-se cair naturalmente.
— Boa sorte — Saul sussurrou enquanto via o filho se jogar precipício abaixo.
Logo o garoto recuperou a altitude e rapidamente foi se distanciando, e assim como a coruja branca, ele desapareceu na escuridão da noite.
Saul ainda ficou ali por alguns minutos. Um intenso relâmpago clareou aquele pico. O temporal havia se formado rápido, não ia demorar para chover, ele já conseguia sentir o cheiro de terra molhada vindo de algum lugar não muito longe. Já estava na hora de encontrar o seu grupo no local combinado, porém, ao se virar, foi o mesmo que ver um fantasma. Diante dele estava alguém bastante conhecido. No susto, ele deixou cair a bainha contendo a espada de Lú.
Os seus olhos arregalados tremiam ao ver aquela figura infantil de longo cabelo louro se agitando ao vento. Ela sorria enquanto entrelaçava os dedos uns aos outros. A sua pele branca se destacava naquela escuridão e ela tomava características fantasmagóricas.
Saul recuou um passo, mas logo se lembrou que estava na beira de uma queda de mais de vinte metros de altura. Ele continuava olhando aquela criança como se visse um demônio.
— V-Você? — ele gaguejou, aterrorizado.
A menina pareceu um tanto pensativa. Ela levou um dedo aos lábios, enquanto outro relâmpago iluminava a face azul daquele homem apavorado.
— Bem... eu uso outro nome agora — ela disse, sorrindo. — Mas fico feliz em me reconhecer. De agora em diante me chame de Lauren.
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