XXIII - QUEBRA DE PROMESSA
Lú não pensou antes de reagir, simplesmente empurrou a porta com força batendo-a contra parede. O baque forte ecoou por todo o corredor, chamando a atenção de Karlo e Néfi, que olhavam assustados para ele.
O garoto se revelou ao demonstrar a sua cólera, enquanto os dois homens o fitavam, incrédulos.
— Então era isso! Você sabia de tudo o tempo todo e nunca me disse nada! — ele esbravejou com uma voz irreconhecível enquanto apontava o dedo para o seu mentor.
Karlo ficou sem palavras, ainda assustado com aquela invasão.
— Não se intrometa, garoto! — Néfi gritou, levantando-se de sua cadeira.
Lú girou seu pescoço mecanicamente para ele. As feições de Lú nunca foram tão enfurecidas, mas isso não intimidava o homem parrudo. Néfi deu um passo à frente, demostrando a sua raiva.
— Seu moleque! Volte para o seu posto, antes que... — A sua ameaça foi interrompida pelo garoto azul.
Rapidamente, Lú usou o seu poder para levitar aquele homem. Néfi viu os seus pés deixarem o chão e como um objeto, o garoto o trouxe para mais perto de si. O garoto rangia os dentes e fechava o punho, preparando-se para dar um soco enquanto aproximava o homem parrudo dele. Néfi parecia espantado com aquele truque e não conseguia nem mesmo mencionar uma palavra em protesto.
— Lú, por favor! — Karlo clamava diante daquela cena. — Solte-o!
— E não é mesmo que sou uma arma? — ele disse sarcasticamente, lançando um olhar mortal para o seu mentor.
— Tudo bem! — ele disse. — Eu percebi que você escutou tudo, mas entendeu errado. — Karlo suspirou, tentando manter a calma.
— EU ENTENDI MUITO BEM! — Lú explodiu de uma forma que Karlo nunca tinha visto antes. Porém o homem não se inibiu, manteve a sua pose e autoridade.
— Solte Néfi e vamos conversar.
Lú apertou o seu punho com força, ao mesmo tempo em que Néfi gemia de dor. Ele estava esmagando-o com o poder da mente, nem sequer dava ouvidos ao seu mentor. A sua raiva era maior que a razão.
— SOLTE-O AGORA! — A voz de Karlo soou monstruosa até mesmo para Néfi, que estremeceu ao ouvir aquele rugido.
Lú esticou o seu braço sem tirar os olhos do seu mentor, abriu os dedos e no mesmo segundo o feitiço se desfez. O homem parrudo tombou no chão de cara no piso de pedra. O garoto nem se importou com a forma desconfortante de liberar o seu superior. Ele deu de ombros e continuou com a atenção focada no mentor, enquanto dava alguns passos para ficarem frente a frente.
— Venha comigo, vamos conversar — disse Karlo.
— Não tenho mais nada para falar com você! — Lú retrucou com teimosia.
— Isso é uma ordem!
Lú cerrou os punhos, queria de alguma forma controlar toda aquela raiva, mas a decepção era mais forte que a sua vontade. Naquele momento, os dois se encaravam de um jeito que pareciam disputar quem piscaria primeiro.
Karlo tomou a iniciativa e foi caminhando primeiro, passando pelo garoto e por Néfi, que tentava se levantar vagarosamente. Lú o seguiu com passos pesados, atravessando a porta sem sequer olhar para trás. Os dois seguiram pelo corredor silencioso e escuro.
Lú se sentia um idiota. Mesmo estando com muita raiva, ele acabou obedecendo ao Karlo. Ele escutou muito bem a conversa entre Néfi e o seu mentor. E o que mais incomodava o garoto era descobrir que esconderam a verdade sobre o seu pai mesmo sabendo que ele o procurava.
...
Karlo subiu em uma cerca de madeira, sentando-se a meio metro do garoto azul. Lú ainda estava emburrado, com os braços cruzados e sentindo o vento frio que balançava o capinzal do outro lado do cercado. Ao longe, via-se as montanhas se unindo à escuridão do céu noturno, com a fina lua minguante semicoberta por nuvens negras.
Karlo encarava o garoto, buscando em sua mente uma forma de dar início àquela conversa complicada. Ele entrelaçava seus dedos uns aos outros, pensando nas palavras certas para começar.
— Vamos do início — ele falou finalmente.
Lú continuava sério, mas tomou a frente da conversa.
— Há quanto tempo se conhecem?
A pergunta pegou Karlo de surpresa. Ele respirou fundo, expelindo uma grande quantidade de ar.
— Tudo bem! Você precisa saber — ele disse e olhou profundamente nos olhos cinzentos do garoto. — Já faz muito tempo que o conheço, muito antes de te encontrar.
Lú lançou um olhar mortal para ele ao mesmo tempo em que demonstrava uma profunda tristeza.
— Por que... por que nunca me disse? — ele perguntou enquanto uma lágrima solitária corria pelo seu rosto e apertava a madeira da cerca.
— Porque ele me pediu. — O garoto ficou sem palavras, até mesmo os seus pensamentos se tornaram desordenados. Após um breve silêncio, Karlo continuou. — Eu não sei bem os motivos dele para me pedir que escondesse isso de você, mas foi uma promessa que estou quebrando agora.
— Então... — Lú franziu o cenho. — Ele já sabia de mim? Ele sabia que eu estava vivo?
— Sim! — Karlo assentiu para a surpresa do garoto.
— O meu pai me abandonou, Karlo — ele disse cabisbaixo com uma voz trêmula. — É triste saber que mesmo sabendo que eu estava vivo, ele não deu a mínima. — Lú cerrou os punhos e fechou os olhos com força, como se quisesse evitar as lágrimas.
— Não diga isso! Ele me pediu para cuidar de você e ensinar tudo o que sei. — Ele percebia o quanto Lú parecia duvidar de suas palavras. — O seu pai está nos ajudando na rebelião. — Karlo voltou a explicar. — Ele é um dos espiões em Erágolis, o nosso mensageiro. Claro que ele não vive na cidade do reino, mas está presente nas redondezas e nos acampamentos tandarianos. Ele ajudou o exército de Tandária a devastar algumas áreas eragolianas. O seu pai é um ótimo guerreiro!
Isso não fazia sentido algum para Lú. Nada que Karlo dizia tinha lógica. O seu pai, um homem azul, lutando?
— Karlo, o meu pai não lutava — Lú o contrapôs.
— Assim como você não lutava — Karlo revidou. — Escute, garoto, naquela noite em que eu o abriguei em minha casa, eu encontrei o seu pai. Eu realmente não confiava em você até ele me dizer tudo. — Karlo completou olhando para o céu.
As nuvens negras cobriram a lua completamente, pareciam pesadas, causando a falsa impressão de estarem mais próximas do solo. O vento ainda estava frio, trazendo um cheiro agradável de terra molhada. Logo iria chover.
— Você me treinou e fez tudo o que ele pediu. — Lú olhava para os pés balançando no ar.
Karlo assentiu positivamente com a cabeça.
— O meu pai quer que eu lute na guerra? — Ele franziu o cenho. — Karlo, o meu pai sabe que sou um feiticeiro?
Karlo pareceu pensar em uma resposta ao ficar alguns segundos calado, sentindo apenas a brisa suave açoitar o seu cabelo branco.
— Fale! — Lú gritou, impaciente.
Aquele homem olhava sério para ele, como se o tema fosse absolutamente intenso demais para o garoto.
— Sim, ele sabe — ele respondeu após um tempo. — Ele sabia que você era um feiticeiro, talvez, desde o seu nascimento.
...
Lú estava com cabeça baixa e o rosto enterrado nas mãos. Já fazia cerca de meia hora que perpetuara o silêncio e se ouvia apenas o som do vento e alguns trovões distantes.
Karlo tinha seus olhos sobre o garoto. Ele compreendia aqueles sentimentos, o garoto se sentia traído pelo próprio pai. Mas não era bem assim. Saul buscou a melhor alternativa para cuidar do seu filho. Lú estava despreparado e mesmo sendo um feiticeiro não daria conta de enfrentar tantos inimigos. Karlo faria o mesmo que Saul fez. Deixaria o seu filho em um lugar mais seguro.
— Acho que o resto você precisa conversar com ele assim que o encontrar. — Karlo quebrou o silêncio, tentando de uma vez por todas finalizar aquela discussão.
O garoto se manteve na mesma posição, não reagindo nem mesmo ao frio que arrepiava os seus pelos do seu corpo e as gotas finas de um chuvisco que começava a cair. O homem observava as roupas rasgadas do garoto e seus machucados já cicatrizados.
— Me perdoe — ele disse, fazendo o garoto olhar para ele com seus olhos avermelhados pelo choro. — Eu não cuidei de você, eu acho que... exagerei.
— Você fez o que deveria ser feito.
Karlo o fitou meio que surpreso.
— O meu pai sabia dos riscos também? — Lú perguntou, surpreendendo mais uma vez o seu mentor.
— Riscos? — Karlo franziu o cenho. Aquela pergunta não fazia sentido. O que o garoto estava falando?
Uma gota gelada caiu na testa do garoto. O vento frio soprava mais forte, carregando folhas por toda a parte. No céu negro, os relâmpagos iluminavam a noite, transformando-a em dia em meio aos trovões ensurdecedores.
— Sim. Vocês estão correndo risco ao ficarem comigo.
Karlo suspirou, saltando da cerca em seguida. Ele ficou de pé ao lado de uma moita de capim verde, esticando os seus braços ao alto para alongá-los.
— Eu já sabia sobre os seguidores de Karen — ele afirmou. — Está escrito em um daqueles livros velhos que tenho em casa.
Lú olhou para ele, incrédulo e paralisado por aquilo que havia acabado de escutar.
— Vo... você sabe o que está fazendo? — Lú esbravejou. — Vocês estão correndo risco de vida! Não pensa em seus filhos?
— Não se aflija, garoto. Você está conosco há dois anos e até o momento eu nunca me deparei com nenhuma criatura dos deuses. — Karlo pareceu não se importar. Ele pôs as mãos nos bolsos enquanto o vento jogava o seu longo cabelo branco contra a sua face.
Lú saltou da cerca e encarou o seu mentor. Estavam frente a frente, então ele tinha que erguer a cabeça para olhar nos olhos daquele homem. A sua expressão, além de preocupada e irritada, deixava transparecer uma tristeza profunda, uma inquietude que o perturbava desde que enfrentou a drácon.
— Hoje eu fui atacado! E advinha? Aquele... monstro ia me entregar a um bruxo. Um seguidor!
A chuva começou a cair com força, lavando a face chorosa do garoto azul. Karlo estava calado, mas não demonstrava espanto. Os dois continuaram a se encarar como se um quisesse decifrar os sentimentos do outro.
— Karlo!
Uma voz gritou ao longe, chamando a atenção do homem. Graças ao clarão de um relâmpago, ele pôde ver um rapaz correndo, pisando nas poças d'água que se formaram com a chuva. Logo o temporal se tornou uma tempestade, onde as rajadas de vento curvavam os galhos das árvores e a água batia violentamente contra o corpo. Otto se aproximou, totalmente encharcado, do lado oposto da cerca onde estava Karlo e Lú. Ele parecia desesperado.
— O que houve? — Karlo perguntou, caminhando alguns passos à frente.
— Lucy. Ela sumiu desde cedo, não a encontro em lugar algum — Otto disse ao se apoiar na cerca.
Karlo e Lú se entreolharam, mas o homem pareceu não dar muita importância ao fato.
— Ela deve estar por aí, você está se preocupando à toa — Karlo disse após saltar a cerca para ficar ao lado de Otto.
Naquele momento, Otto segurou na gola da camisa de Karlo, empurrando-o com força contra a cerca de madeira.
— Você não entende! — Ele rugia ao falar. — A minha irmã desapareceu!
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