XXI - UM NOVO PODER
Lú se jogou para a direita, desviando por pouco do punhal afiado da drácon. Antes que ele pudesse recuperar o fôlego, o demônio atacou novamente por trás, mas dessa vez o garoto conseguiu projetar uma cúpula ao seu redor. Com a mesma posição, mantinha seus braços estirados e as palmas bem abertas, mas ele sabia que o efeito da sua proteção iria durar poucos minutos.
— Eu já quebrei isso e posso quebrar novamente! — ela ameaçou enquanto atacava o escudo com a sua arma.
— Eu não entendo — disse Lú. — Se sabe que não morro, por que está tentando me matar?
Ela exibiu um sorriso demoníaco, parando por um instante de socar a barreira mágica.
— Pelo mesmo motivo que está se protegendo. Você sabe melhor do que eu.
Lú sabia que não morreria recebendo um golpe mortal, mas, geralmente, ele perdia a consciência. Horas antes, ele tinha suportado a espada de Gabbe atravessar o seu peito, mas lutou muito para se manter lúcido. Aquela criatura não estava com cara que queria golpeá-lo apenas uma vez ou somente perfurá-lo com aquele punhal. Pelo visto, se ela queria entregá-lo ao seguidor de Karen, faria isso de uma forma mais fácil, com ele desacordado. Fazia sentido, afinal.
— A sua vingança é essa, então? Me entregar a um bruxo, sei lá o que isso significa!
Ela deu uma gargalhada diabólica, que ecoou por toda a caverna, fazendo com que os morcegos se agitassem e emitissem chiados. A drácon mudou a expressão subitamente, deixando-a ainda mais horrenda.
— Vê-lo sofrer é o suficiente para mim, enquanto você assiste aos seus amigos morrerem um de cada vez!
Lú engoliu em seco. Como os seus amigos estavam incluídos naquele plano diabólico?
— Deixe-os em paz! — Lú gritou.
— Não sou eu que irei matá-los. — A drácon esboçou um sorriso maquiavélico. — São as regras dos caçadores. Todos os envolvidos que acolhe o feiticeiro serão mortos. — Ela segurou firme a arma em mãos. — Pior que morrer é ver seus amigos morrerem! Eu vou adorar assistir a esse garotinho assombrado vendo o sangue derramar de cada um daqueles infelizes.
Ela desferiu um último golpe contra o escudo, tão forte que quebrou a barreira mágica em mil pedaços cintilantes. O punhal continuou o seu caminho ao atravessar o escudo, indo direto para o coração do garoto azul, porém, Lú aparou o golpe com uma das mãos.
Ele gemeu de dor ao sentir a arma afiada atravessar a sua mão. Com o ato e com o mesmo punho, ele segurou a garra do demônio. A dor era aguda e crescente, ele sentia seus membros ficarem trêmulos, mas não podia soltá-la de forma alguma. Sem seu punhal, ficaria difícil de ela conseguir feri-lo profundamente em algum ponto vital.
A criatura rangia os dentes em repleta frustração.
— Seu tolo! — ela gritou, metendo outra garra na face do garoto.
Lú grunhiu, mas não se intimidou com a marca das unhas em seu rosto. Ele continuou a imobilizá-la até pensar em uma forma de reverter aquela situação em que se encontrava. Outro arranhão e dessa vez em seu peito, levando embora fiapos da sua camiseta. Antes de Lú sentir a dor dos cortes, ela se preparou novamente para outro golpe com suas unhas, mas dessa vez o garoto foi mais rápido, e como no golpe do punhal, ele segurou as garras da criatura. Agora ele havia paralisado as duas mãos da drácon, mesmo com ela tentando se soltar a todo custo, porém, precisava se preocupar também com suas pernas.
Lú não pensou duas vezes, inclinou o corpo para a frente, concentrando o seu peso para empurrar a criatura. Estava funcionando, ele conseguiu prendê-la contra a parede.
O garoto estava ofegante, mas não podia parar por ali. Antes que a drácon desse um jeito de se livrar dele, Lú jogou o seu joelho contra o estômago do demônio, fazendo-o curvar o corpo e expelir saliva.
Ele se sentia mal em agredir aquele ser mesmo que fosse para se salvar, mas precisava de alguma forma escapar daquela criatura. De repente, seus devaneios foram interrompidos por um odor peculiar. Cheiro de carne queimada vinha das mãos da drácon. Ela estava agonizando à sua frente, com seus olhos esbugalhados focados para o alto. Lú percebeu o calor acentuado que vinha de suas mãos. Aquele brilho azul surgiu involuntariamente, porém, foi interrompido pelo golpe súbito do demônio.
Lú recebeu um chute em sua barriga, desprendendo-o das garras da criatura e o jogando na entrada da caverna. O seu corpo se arrastou pelo chão e a sua cabeça estava para fora daquele ambiente. Mesmo sentindo dor, ele olhou para o exterior. Aquela caverna ficava no paredão de um precipício à beira mar. A queda de encontro às águas agitadas que colidiam violentamente contra várias rochas era longa.
O garoto sabia que não teria tempo de se recuperar daquele golpe, então começou a arrastar o corpo até ficar completamente do lado de fora, jogando-se por inteiro precipício abaixo.
Ele caía em direção às rochas, olhando para a abertura da caverna que ia se distanciando rapidamente, e antes que pudesse parar no ar com a sua técnica de voo, a drácon emergiu em disparada, cortando o ar com suas asas em leque. Lú era o seu alvo e o choque foi inevitável.
A criatura cravou suas unhas no peito do garoto, tão profundo que fez seu sangue fluir pelo céu. Lú gritou entredentes, mas não se rendeu. Ele segurou nos ombros do demônio e deu-lhe uma cabeçada, repentinamente girando o seu corpo para se manter por cima dele em pleno ar.
A velocidade em que caíam era intensa e estavam cada vez mais perto do chão, ou melhor, das rochas. Lú recebeu outro chute, fazendo com que seu corpo e o da drácon se afastassem. Ela recuperou o controle do voo batendo suas asas ferozmente, mas o garoto estava flutuando com a mão na barriga, já ficando tonto com tamanha dor que sentia. O seu corpo estava curvado, aparentemente estava exaurido com aquela luta, ao contrário da drácon, que ainda exibia um fogo nos olhos.
Aqueles dois passaram alguns segundos se entreolhando. Lú não sabia como vencê-la. Os dois estavam desarmados, mas a drácon tinha vantagem, já que suas garras pareciam navalhas. O garoto se sentia envergonhando de não saber usar nem cinquenta por cento do seu poder, e o que sabia fazer o esgotava rapidamente. Ele precisava se concentrar, alguns truques poderiam surgir do nada.
Mesmo sabendo que estaria correndo perigo, ele fechou os olhos. Há muito tempo não meditava, uma vez que suas crises claustrofóbicas foram se tornando raras com o passar dos anos. Naquele momento, ele só escutava o som das ondas contra as rochas e o vento uivante. O que ele via era uma vasta escuridão, que parecia consumir todo o seu campo de visão em uma tempestade alucinadora.
De repente, olhos amarelos apareceram no meio dessa escuridão, mas ele procurou não se assustar para não perder o foco. Logo a imagem tomou forma e um felino se desenhou no negro da sua visão, sorrindo para ele.
— Estou feliz que tenha aprendido a me encontrar — o felino respondeu com orgulho.
Lú não sabia como conversar com o felino, mas, subitamente, a ideia de telepatia veio à sua mente.
— Eu... eu preciso de ajuda — Lú clamou.
O gato estava sentando e parecia bem à vontade diante da preocupação do garoto.
— Seja breve. Mesmo em outro plano, ficar nesse mundo consome as minhas energias.
— Como eu faço para despertar mais poder? Eu preciso ficar mais forte. Eu já sou mais confiante! — ele respondeu, lembrando-se do último conselho do gato.
— Creio que ainda não seja totalmente — o felino retrucou. — Precisa acreditar em si mesmo e não esperar que o seu poder venha até você.
Lú parecia não compreender o que o gato queria lhe dizer e, pelo visto, o felino havia notado isso no jovem feiticeiro.
— Você precisa ir até o seu poder.
— Mas... como eu faço?
— Isso você precisa descobrir.
Então, o felino lentamente foi sendo consumido pelas trevas que o rodeava no campo de visão do garoto. Ele estava indo embora mais uma vez.
— Posso ao menos saber o seu nome?
— Ainda não é o momento... — Ele finalizou assim que desapareceu na escuridão.
Lú parecia com mais dúvidas que anteriormente, mas, de qualquer forma, ele precisava tentar despertar o poder que ainda dormia em si. Não custava nada àquela altura. Ele abriu os olhos, dando de cara com uma drácon furiosa com as garras prontas para cravar nele. Lú ergueu os dois braços, juntando as palmas das mãos abertas e apontando para a criatura. Ele buscou concentrar-se na luz azul que fluía de suas mãos, provocando um certo calor. Ele se esforçou um pouco mais para que o calor continuasse a emanar naquela região.
Em seguida, uma bola azul feita de energia começou a se desenvolver em suas mãos e Lú sabia que não poderia demorar muito. A drácon se aproximava em disparada e estava a poucos metros dele. Então, ele soltou todo aquele poder que fluía de suas mãos como um raio luminoso azulado, que atingiu o demônio em cheio antes que ele pudesse se esquivar. Aquele raio cobriu o corpo da criatura por completo. Lú sentia o calor ardente que saía de suas mãos, que ficaram repletas de bolhas doloridas. Não demorou muito para a luz se dissipar, deixando à mostra aquele ser desfigurado.
Lú estava pasmo com o que via. A drácon estava toda em carne viva, o tecido da roupa havia unido aos seus músculos. Na cabeça, restaram apenas algumas mechas chamuscadas do cabelo, deixando os seus chifres com um aspecto ainda mais aterrorizante. A sua face era a parte mais sombria. Parte da pele do rosto havia ido embora, deixando sua arcada dentária à mostra e um dos olhos apresentava sua órbita vazia, enquanto o outro estava estufado para fora como se fosse cair a qualquer minuto. As suas asas tinham perdido toda a pele fina, restando apenas os ossos. Foi então que a drácon começou a despencar.
Lú assistiu à criatura cair, tombando o seu corpo nas rochas e escorregando para o mar, deixando um rastro de sangue no meio das pedras.
...
Não era exatamente como Lú queria que terminasse aquela luta. Ele nunca teve desejo de ferir ninguém, muito menos de matar. Aquela dificuldade sempre o atormentou, para a frustração do seu mentor. Será que na guerra, a qual estava prestes a se juntar, ele iria executar muitas almas inocentes que apenas cumpriam com suas obrigações ao servir o maldito rei de Erágolis?
Ele suspirou enquanto olhava para além do horizonte do mar, sentado na areia, abraçando os próprios joelhos. Ele fechou os olhos por alguns minutos, não para tentar se conectar com o gato preto, mas para se conectar consigo mesmo.
Um vento frio arrepiou os seus pelos, e um calafrio percorreu a sua espinha. Ele pressentiu algo, uma presença. Não queria abrir os olhos, não queria ver o que estava à sua frente. Seria outro drácon ou o próprio bruxo que estava atrás dele?
"Não precisa ter medo."
Lú reconheceu de imediato aquela voz. Era ela. Rapidamente, ele abriu os olhos e não acreditava no que via. Samy estava à sua frente. Em carne e ossos.
Ela estava sentada em um conjunto de rochas a poucos metros dele. As pedras formavam uma espécie de trono, onde as ondas colidiam, respingando violentamente em uma chuva de espuma branca. O mais inacreditável em vê-la fora da água era perceber que ela não estava em forma de sereia. Ela tinha pernas! O seu corpo branco e nu se destacava na luz do sol, o seu cabelo era incrivelmente longo, chegando a tocar o chão, e os seus olhos azuis eram radiantes. O garoto nunca tinha visto olhos como aqueles.
Ela sorria enquanto Lú ainda demonstrava medo, mesmo sabendo que era desnecessário.
— Você? — ele perguntou, ainda não acreditando no que seus olhos viam.
Ele levantou-se, arriscando alguns passos na tentativa de se aproximar da sereia e vê-la mais de perto.
— Há quanto tempo? Você cresceu bastante — ela disse com admiração.
Lú sentiu o calor emanar daquele ser místico. Aquela sensação era tão relaxante que o fazia esquecer de todos os problemas, de todos aqueles devaneios que atormentavam a sua mente. Eles ficaram cara a cara e o garoto pôde observá-la de perto. Era inacreditável como ela era tão humana, ao mesmo tempo em que dispersava seu misticismo.
— Eu... não sei o que dizer — disse o garoto, perplexo.
— Mas eu sei — ela respondeu com naturalidade. — Deve estar se perguntando por que estou nessa forma. — Ela sorriu. — Eu sou assim, desse jeitinho.
— Você parece tão humana. — Lú não conseguia raciocinar direito.
— Não sou somente uma ninfa, sou uma sereia também. Na água, eu mudo de forma, como já viu antes, mas na terra ganho esse visual.
Ela esbanjava tanta ternura. Lú não conseguia se comportar diante dela mesmo naquela forma humana. Ele sentou-se na areia novamente, vislumbrando o perfil encantador.
— Eu sei que está preocupado com muitas coisas — ela falou com uma certa tristeza. — Não se aflija. Vai dar tudo certo.
Lú abaixou a cabeça ao se lembrar de seus problemas.
— Eu acho errado — ele falou. — Para salvar a todos, eu preciso matar pessoas inocentes?
— Você é gentil, meu pequeno, mas acredite. Siga o seu coração. Faça o que achar certo.
Lú olhou para as próprias mãos, lembrando-se do que tinha acontecido com a drácon.
— Como eu posso salvar pessoas com esse poder que só destrói?
Lágrimas corriam por sua face caindo em suas mãos abertas. Ele sentiu o toque dos dedos finos e macios em seu rosto, que silenciosamente faziam carinho em sua pele. Assim que levantou os olhos, ele se viu a poucos centímetros da ninfa. Ela o fitava com uma expressão vazia, transmitindo certa preocupação com os sentimentos negativos que dominavam o jovem feiticeiro.
— Use-o para o bem — ela disse em um sussurro, e aquela voz penetrou profundamente dentro do garoto.
A ninfa aproximou seus lábios rosados da testa dele e deu um beijo. Lú fechou os olhos, enquanto se reconfortava com aquela sensação que preenchia o vazio em sua mente. Após alguns segundos, ele abriu os olhos e a sereia não estava mais perto. A ninfa estava em pé, dentro do mar, com a água cobrindo os seus joelhos e fitando-o com um sorriso carinhoso. Lentamente, o seu corpo foi se tornando transparente até se unir ao mar, fazendo uma onda invadir a areia e molhar os pés do garoto.
Ela foi embora, mais uma vez.
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