XVII - A ESTRANHA
Lú entrou na taberna meio que desorientado. O local estava lotado, todas as mesas estavam ocupadas por homens bêbados e barbudos que tinham um vocabulário imundo e babavam pelas mulheres seminuas que dançavam ao som de um acordeão sem ritmo.
O garoto estava parado na porta, forçando a visão a localizar o seu mentor. Enfim o encontrou sentando diante do balcão de madeira, observando atentamente o dono da taberna encher o seu copo. O garoto caminhou até ele, desviando das mesas e das garçonetes com suas bandejas.
Ele sentou-se ao lado de Karlo em uma banqueta e nem sequer olhou para ele ou expressou alguma emoção, parecia confuso ao fitar o copo vazio em sua mão. O garoto procurou não se preocupar com os olhares indiscretos dos viajantes que se embriagavam na taberna.
— Vai querer o que, garoto? — o dono da taberna perguntou enquanto enxugava um copo com seu pedaço esfarrapado de flanela encardida.
— Nada, por enquanto — Lú respondeu com seu semblante vazio.
— Encha o copo dele! — Karlo ordenou de imediato, chamando a atenção do garoto.
Lú olhou para ele com seus olhos semicerrados, relutante.
— Eu não gosto dessa coisa — ele disse sussurrando, evitando que outras pessoas o escutassem.
— Isso vai ajudá-lo a relaxar — Karlo disse antes de sorrir e dar um longo gole em seu copo.
O homem lhe entregou um corpo de alumínio ao garoto e o encheu até a borda. Lú suspirou ao olhar para o líquido dourado. Ele parecia um tanto pensativo.
— Eu não entendo essa cara — disse Karlo, notando o perfil aparentemente exausto do garoto.
Lú levou o copo até os lábios e virou metade do líquido, fazendo uma careta ao sentir a sua garganta queimar e o gosto amargo residual em sua língua.
— Talvez eu não entenda também — ele respondeu, colocando o copo no balcão.
— Quer conversar sobre o que te incomoda?
Lú ficava feliz quando Karlo se importava com ele, porém, naquele momento ele não se sentia à vontade para se abrir com seu mentor e, principalmente, sobre algo tão íntimo como o beijo de Lucy.
— É a Lucy, não é? — Karlo adivinhou ao notar o silêncio do garoto azul.
Lú assentiu positivamente com a cabeça. Karlo deu mais um gole em seu rum e se endireitou em sua banqueta para uma melhor visão do garoto.
— Lucy já é uma mulher e sabe o que está fazendo. Você não devia se sentir incomodado com isso.
— Mas... não é exatamente isso. — Ele demonstrou o nervosismo diante do assunto. — Eu não gosto dela. Quer dizer... eu gosto, mas...
— Você ainda é só um garoto. Não devia se preocupar com isso. Apenas viva o momento e... não deixe Néfi saber — Karlo concluiu e sorriu.
Lú sabia que Karlo estava certo, ele realmente precisava relaxar um pouco, então virou o último gole do seu copo, procurando não se atormentar por coisas tão tolas. Naquele momento, o seu único tormento era a guerra que já começava a devastar as regiões de Tandária, sendo que Luária, como uma vila próxima das fronteiras, já era ponto de embate para as conquistas eragolianas.
A rebelião logo começaria e ele iria para combate, mesmo não estando preparado como deveria. Por ser um feiticeiro, Karlo esperava mais dele, além de insistentemente depositar as esperanças em um garoto franzino de pele azul. Lú se sentia péssimo por não ter conseguido despertar tanto poder nesses últimos dois anos, ferindo as expectativas de todos que acreditavam nele.
Ele se sentia um fracasso, mas Jober sempre lhe dizia para não se cobrar tanto. O garoto sabia que o ruivo tinha razão, afinal, sentia-se pressionado todas as vezes que era comparado ao todo poderoso Luciano Antunes.
Agora ele se encontrava em um estranho torpor alcoólico de tanto que Karlo o incentivou, mas não poderia culpar o seu mentor. Aquilo aplacava os seus pensamentos negativos. Ao levantar o seu segundo copo, ele já se sentia tonto. A sua cabeça estava pesada, dominada pela bebida, enquanto os seus músculos estavam enfraquecidos.
— Ei, já chega! — gritou Karlo, impedindo-o de tomar outro gole com uma mão em seu braço.
Lú olhou para ele de relance e baixou a peça de alumínio com força na madeira do balcão. O garoto tombou a cabeça na mão que estava com o cotovelo apoiado na madeira e preferiu não olhar para o seu mentor.
Karlo o fitava desejando ler seus pensamentos mais uma vez, mesmo desconfiando que ele não estava daquele jeito só por causa de Lucy.
— Que coisa feia! — A voz aguda de Jober o pegou desprevenido. Ele estava de braços cruzados atrás dele, aparentemente irritado. Ao seu lado, estava Nero pedindo uma bebida.
Karlo virou-se para ele, não demonstrando importância aos chiliques do seu ex-aluno.
— Boa noite para você também! — ele saudou ironicamente, enquanto bebericava do seu copo.
— Boa noite? — Jober retrucou com as mãos na cintura. — Veja só o que está fazendo com esse pobre órfão!
Pelo visto, aquela indagação se referia ao jovem feiticeiro.
— Essa criatura só tem treze anos! — Jober continuou. — Você não deveria levá-lo ao mesmo caminho que o seu. Que péssimo pai! — Então ergueu o queixo com repugnância, enquanto Karlo se engasgava com a bebida ao escutar a última frase do rapaz ruivo.
— Pai? — Karlo teve que socar o próprio peito para conseguir recuperar o fôlego e soltar essa simples palavra.
— Como se fosse — Jober disse e encarou Nero, que estava bebendo sentando em uma banqueta sem se importar com a discussão dele. — Ogro — o ruivo resmungou em voz baixa.
Karlo deu um sorriso malicioso enquanto se endireitava em seu assento, novamente segurando o copo.
— Vocês estão trabalhando muito juntos ultimamente — ele comentou.
— Humf! É o mesmo de estar sozinho — Jober disse depois de jogar o cabelo de lado e empinar o nariz.
Karlo achou graça, mas desmanchou o sorriso logo que escutou a porta do estabelecimento se abrir com força. O baque da porta se chocando contra a parede chamou a atenção de todos, a tal ponto de até mesmo a música parar, restando apenas um breve silêncio perturbador.
Lú virou-se para fitar a porta, e percebeu que tanto os clientes como os seus amigos estavam boquiabertos com o que viam. Para o garoto, aquilo não era nada demais. Era apenas uma mulher alta, loura e com o cabelo bem comprido. Mas, talvez, o fato de ela ser uma mulher chamasse a atenção de todos aqueles homens, embora nada se comparasse com as dançarinas seminuas no palco. Mas daí ele entendeu.
Uma mulher visitando uma taberna?
A franja loura caía sobre os seus olhos verde-esmeralda, que vislumbrava aquela multidão que a contemplava. O seu corpo era esbelto e a pele era branca. Na cintura, ela carregava uma espada embainhada presa à uma calça folgada de couro, usava uma camiseta folgada de botões, porém, desabotoada propositalmente até o decote dos seios, onde por baixo exibia grossas alças de um tecido grosso com fivelas metálicas. No pescoço, — apesar de um lenço fino que o cobria — usava uma gargantilha com contas de madeira e três pingentes ovais de uma pedra da mesma cor que seus olhos, enquanto as orelhas tinham brincos também ovais e de madeira. Por cima de todo o conjunto usava um casaco pesado preto e comprido, chegando a altura de seus tornozelos cobertos por botas de cano alto. A forma como a roupa estava empoeirada, denunciava que havia acabado de chegar de uma longa viagem. Os seus lábios eram rosados e sedutores, e era isso que aqueles homens fitavam com tanto interesse.
Ela pôs a mão na cintura e arqueou uma sobrancelha, observando aqueles olhares maliciosos e esfomeados de puro desejo carnal.
— O que é? O que estão olhando? — ela perguntou com brutalidade, desdenhando dos porcos imundos que a devoravam com os olhos.
Karlo estava bestificado. Aquela face feminina era bem familiar, apesar de que ele não queria acreditar no que os seus olhos viam.
Era ela mesma!
A sua ex-aluna. Ele se sentiu velho ao vê-la novamente, já havia se passado dez anos desde a última vez que se viram e ela era apenas uma menininha um pouco mais nova que Lú, mas, pensando bem, Jober e ela tinham a mesma idade, então fazia sentido. Ele ficou nervoso ao vê-la desfilando em sua direção, emitindo um barulho surdo a cada passo que dava no assoalho de madeira, retirava o lenço do pescoço com certa sedução. A música voltou a ressoar naquele ambiente fedido, desviando a atenção de todas as pessoas para as dançarinas no palco que rotineiramente se despiam.
— Gabbe amor, como você cresceu! — disse Jober, maravilhado ao recebê-la.
Nero desprezou toda aquela atenção e voltou ao seu copo. Lú apenas observava, calado, mas logo percebeu que a loura o fitava parecendo assustada.
Os seus olhos se arregalaram ao vê-lo. A moça se aproximou um passo, ignorando Jober, e abaixou-se, colocando as mãos nos joelhos. Lú já conhecia aquela expressão. Então suspirou, esperando algum comentário maldoso.
— Que merda é essa?
Lú revirou os olhos, pegou o seu copo vazio no balcão para procurar algum resíduo de álcool, desprezando aquela situação.
— Um homem azul — disse Karlo finalmente.
A loura levou os seus olhos até o homem ao seu lado e abriu um sorriso sedutor. Ela retirou o seu casaco, jogando-o em uma mesa desocupada e desabotoou mais um dos botões de sua camiseta. Karlo ficou ainda mais nervoso ao perceber aquela aproximação pouco desejada. Gabbe colocou uma de suas pernas entre as dele, deixando o seu busto na altura da face corada do seu antigo mentor, fazendo o homem congelar. O que aquela maluca pensava que estava fazendo?
Com um dedo, ela enrolava uma mecha do cabelo branco do homem.
— Como você está diferente — disse ela, atenta aos olhos profundos dele. — Quase não o reconheci. Adorei esse cabelo comprido.
Karlo colocou as duas mãos na cintura dela, e meio que sem jeito a empurrou devagar para se afastar daquela aproximação inconveniente dos seus corpos.
— Estou feliz em te ver, Gabbe — disse ele, desviando o olhar.
— Bom te ver também, meu amor! — comentou Jober, frustrado por ser ignorado.
— Oi, Jô! — Ela sorriu para o ruivinho enraivecido e o cumprimentou com um longo abraço apertado. — Você não mudou nada, nem mesmo a altura.
— Por onde você esteve? Achei que tivesse morrido por aí. — Jober sorriu, entrando na brincadeira da amiga.
— Ah, nem me fale! Sabe o quanto eu sofri? Os viajantes acham que sou uma vadia. Talvez por não usar vestidos. — Gabbe bufou e se virou para o balcão.
— Também atirada desse jeito... — Jober escondeu um sorriso com a mão e comentou entredentes com Karlo.
— Seu porco imundo, me sirva um pouco desse seu rum! — A loura bateu com a mão no balcão para chamar a atenção do dono da taberna.
Lú observava aquele comportamento nada delicado da jovem, nem mesmo Nero agia como tal em meios aos seus arrotos ácidos. Ela era bonita, mas nada feminina.
O dono da taberna olhou para ela, furioso, mas apenas a serviu. Ela virou todo o copo em um único gole, batendo o mesmo contra o balcão e em meios aos soluços, ela comentou.
— Isso que chama de rum? Bela porcaria!
O homem jogou o tecido que estava em sua mão com força no chão.
— Se não gostou, pague e vai embora, sua vadiazinha! — ele rosnou para a moça.
— Olha como fala comigo, seu monte de banha! Me sirva mais um pouco dessa água suja. — A jovem olhou pelo canto do olho para Karlo, que tentava não prestar atenção nela. — Você está me ignorando — disse ela, batendo a perna na dele.
Karlo levantou-se, mostrando um pouco de garra, e a encarou com um semblante fechado.
— Gabbe, você não veio a passeio. O que faz aqui?
Ela sorriu cinicamente, adorando como aquele homem a fitava. Mesmo atrás daquelas vestimentas, notava-se o seu corpo musculoso. Karlo era mais velho que ela cerca de dezesseis anos, mas desde muito jovem ele vinha treinando crianças. Ela não esperava encontrá-lo tão belo desde a última vez que o viu. Tudo o que ela queria naquele momento era se envolver naqueles braços fortes.
— Falo contigo depois, mestre — ela disse ao notar seu copo cheio sobre o balcão. Novamente, pegou a peça de vidro com o líquido amarelado. — Vocês de Luária acham que possuem o melhor rum e ostentam com essas garrafas coloridas. — Ela observou a bebida com asco. — Fala sério! Isso parece urina.
— Gabbe, por favor... — Karlo tentava chamar a atenção dela.
— Deixe — disse Jober, aproximando-se um pouco mais dele. — Quero vê-la passar vergonha.
Karlo assentiu, mesmo sabendo que o dono da taberna não iria aguentar tantas ofensas.
— Pague e vá embora! — o homem cuspiu as palavras contra ela.
— Não vou pagar por água suja! — Gabbe cuspiu de volta.
A troca de olhares furiosos entre os dois assustava quem os via.
— Sorte sua que respeito mulheres, apesar que... — Ele a olhou das cabeças aos pés. — Você está mais para uma prostituta.
Gabbe pareceu não se ofender com a palavra. Ela colocou as mãos no balcão, aproximando-se mais para trocar olhares mortais com o velho parrudo.
— Prefiro não sujar a minha espada com essa sua carne podre.
Lú assistia à troca de ofensas, abismado, e previa algum desastre a qualquer momento.
— Como se conseguisse me arranhar. Mulherzinha.
Dessa vez Gabbe se irritou. Ela levantou o copo e jogou o rum na cara do homem, que instintivamente levou as suas mãos aos olhos, resmungando palavras obscenas.
Gabbe em um salto se pôs agachada em cima do balcão e rapidamente pegou a espada nas mãos, com a ponta pressionando a garganta do sujeito assim que conseguiu erguer a cabeça. Ele ficou paralisado ao sentir a lâmina tocando-o.
— Nunca, jamais, me chame de "mulherzinha"! Seu poço de vermes! — Gabbe disse, fitando-o com desdém.
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