XV - ARREPENDIMENTO
Um homem barbudo com uma fisionomia agressiva enchia o copo de Karlo com mais uma dose de rum.
A taberna de Luária era a mais comum e movimentada da vila. O ar era rústico e as antigas paredes escuras mostravam as manchas de mofo. No teto, pendiam teias de aranha, as várias mesas redondas se encontravam espalhadas pelo salão e tinha um palco, onde mulheres seminuas se apresentavam à noite, dançando e exibindo seus corpos para seduzirem os velhos mercadores e viajantes da região para obterem um ganho extra. Na maioria das vezes, o ambiente era envolvido por brigas, ocasionando mutilações e mortes.
Àquela hora, Karlo era o único cliente. Ele parecia um tanto pensativo enquanto olhava para a sua caneca de alumínio. Já estava na terceira dose, e talvez a bebedeira em que se encontrava fosse a única forma de preencher o vazio. Naquele momento, o arrependimento por ter golpeado mortalmente o garoto azul dominava Karlo.
Ele parou para pensar sobre o seu ataque contra o garoto. Aquela tamanha barbárie cometida apenas para lhe dar uma lição. Ele foi impaciente, ele sabia disso. Veio em sua mente a imagem do garoto ensanguentado no chão. Tão impotente e tão indefeso. Não se parecia com nada com um ser poderoso que poderia ser reconstituir. Ele teve dúvidas então.
E se a imortalidade de um feiticeiro era só uma hipótese para os anciões do governo de Karen? Nos livros antigos que Karlo e a sua mãe estudaram, dizia que Luciano Antunes era incapaz de se ferir mortalmente. Nem mesmo armas cortantes em regiões vitais do corpo poderiam tirar a sua vida. Mas comparando o antigo feiticeiro, poderoso quase como um deus, a um garoto frágil de onze anos sem treinamento algum, sem ao menos noção dos poderes ainda adormecidos dentro dele...
Ele suspirou pesadamente quase como um choro de agonia ao se lembrar da suposta morte de Luciano Antunes. Se o antigo feiticeiro faleceu, então a imortalidade desses seres seria uma questão em aberta.
O que Karlo fez?
Lú poderia estar morto àquela hora. O golpe fatal em seu coração dilacerou a sua vida. O único da sua espécie que obteve a chance — de quem sabe — estabelecer uma família e deixar seus descendentes, foi golpeado pela sua espada.
Karlo percebeu o quanto exagerou desde que jogou o garoto precipício abaixo em seu antigo vilarejo. Lú de fato era um feiticeiro, mas, ao mesmo tempo era apenas uma criança. O mais admirável era que ele aprendia com muita facilidade.
O homem colocou os cotovelos sobre o balcão de madeira, levou as mãos aos olhos e as usou para sustentar a sua cabeça. Ele estava arrasado, destruído, ultrajado. Era a primeira vez que se sentia dessa forma.
Endireitando-se, ele segurou firme a sua caneca, levando-o aos lábios e despejando o líquido dentro da sua garganta em um único gole, em seguida bateu firme com o utensílio no balcão.
— Mais uma! — pediu ele ao homem barbudo.
O sujeito por trás do balcão pegou uma garrafa na prateleira de carvalho que exibia vários tipos de bebidas de diversas cores em suas peças de argila e serviu mais uma dose para Karlo.
— Deixe a garrafa! — Karlo pediu novamente, evitando que o sujeito barbudo guardasse a garrafa em seu devido lugar.
— Espero que não morra de coma alcoólico — resmungou o homem com uma voz áspera.
— Que se dane — Karlo resmungou de volta em um tom baixo.
Uma das portas duplas se abriu e bateu com força contra a parede, chamando a atenção dos dois homens. Era Jober, que aparentemente estava irritado.
O rapaz ruivo entrou caminhando com passos pesados no assoalho de madeira. A sua pele alva captava uma sombra obscura com o seu cenho franzido e dentes cerrados. Ele não parecia ser o mesmo ruivinho de trajes elegantes e de porte delicado, ele estava em seu modo sanguinário.
Chegando perto de Karlo, ele o puxou pela gola da camisa, e por incrível que pudesse parecer conseguiu levantar aquele homem da banqueta redonda. A força de Jober era desproporcional para o seu corpo franzino. Ele rosnava com a sua face a poucos centímetros da de Karlo.
— O que você fez? — o rapaz ruivo perguntou.
A sua voz fina e rouca se transformou em algo monstruoso. Karlo já conhecia o lado enfurecido do jovem e sabia o quão violento ele se tornava. Ele não respondeu à sua pergunta, deixando-o ainda mais enfurecido. O soco desferido pelo jovem ruivo o atingiu em cheio, jogando o seu corpo contra uma mesa com cadeiras. Karlo caiu por cima de uma cadeira como se fosse um saco de batatas, quebrando o móvel em seguida. O seu corpo se manteve tombado no chão, ele sentia o gosto de sangue que escorria do seu nariz até a boca.
Jober subiu por cima dele, sentando-se em seu abdômen — de uma forma constrangedora para Karlo — e novamente o puxou pela gola da camisa, já preparando o punho para outro soco.
— Fale, seu covarde!
— Você ficou bom nisso — Karlo deu um sorriso orgulhoso.
— Vamos! Se explique! — Jober sacudiu o corpo do homem com força.
— Eu perdi a cabeça — ele respondeu de uma forma tranquila enquanto mantinha os olhos focados no teto.
— Isso você deixou bem claro! — Jober rosnou. — Enquanto todos socorriam aquela pobre alma, você saiu às pressas. Eu não o reconheço como o meu antigo mentor.
Jober o soltou, levantando-se e recuando alguns passos, então cruzou os braços e o fitou com desprezo.
— Como um milagre, — ele continuou — o garoto sobreviveu.
Karlo ergueu o tronco ao escutar aquilo, mantendo-se sentando no chão. Jober o fitou com desdém.
— Não tenho nenhum tipo de afeto por esse garoto... — Ele suspirou, desviando o olhar para a porta escancarada, buscando de alguma forma manter-se calmo. — Mas o que você fez foi errado, muito errado! — Ele olhou para Karlo demonstrando uma expressão preocupada. — E o que me deixa mais indignado é o que você sabe, Karlo!
Karlo levantou-se lentamente, limpando o sangue do nariz com as costas das mãos.
— Eu sei? — Ele estranhou a última frase do rapaz.
— Sim, você sabe — Jober disse depois de dar um passo à frente. A sua respiração estava ofegante, embora a voz já tivesse voltado a ser como de costume, demonstrando um pouco mais de calma. — Aquele golpe... — Jober escolhia as suas palavras. — É impossível alguém sobreviver a ele.
O olhar fatal de Jober demonstrava a sua indignação com o fato de Karlo lhe esconder algum segredo. Apesar do seu aspecto durão, aquele homem nunca ousaria a matar um companheiro a sangue frio.
— Eu sei que esse menino azul não é somente uma criança, Karlo. Não estou falando da espécie. O que ele tem de especial?
Karlo não sabia como contornar aquela situação. O sangue secando em seu nariz lhe causava fadiga, embora não sentisse mais dor. Pelo visto, ele precisava contar o que sabia ao seu amigo.
— Como ele está? — Karlo perguntou, de alguma forma tentando mudar de assunto.
— Odeio essa sua mania, bonitinho. Responda a minha pergunta primeiro, certo?
Karlo assentiu, não tinha escolha, afinal. Ele puxou uma cadeira e sentou-se diante de uma mesa, pelo visto, eles teriam uma longa conversa.
...
— Isso é um mito. É o que eu penso. — Jober contrariava as afirmativas de Karlo. O rapaz ruivo colocou os braços sobre a mesa, enquanto Karlo virava uma garrafa de rum na boca.
— Acredite, isso explica tudo — disse o homem.
— Mas não explica a tentativa de matá-lo. Você queria testá-lo?
Karlo colocou a mão sobre os olhos, esfregando o polegar e o indicador para clarear a sua visão. Ele não sabia como explicar aquilo a Jober. Para ele, a única forma de Lú despertar seu poder era se pondo em perigo. Mas a fatalidade em questão foi em um momento de estresse misturado com a sua impaciência. Não é da natureza de um homem azul ser agressivo, mas essa fragilidade é inadmissível em seus ensinos.
— Eu só quero ele se torne o feiticeiro que é.
— Bem... mesmo não acreditando nisso... realmente você exagerou. Ele poderia ter morrido. Melhor dizer que ele ainda está com a morte batendo à sua porta.
Otto surgiu na porta, olhando para dentro do estabelecimento à procura de alguém. Seus olhos castanhos fitaram Karlo, que ainda conversava atentamente com Jober.
— Senhor Karlo! — Ele chamou ao entrar na taberna e se aproximou da mesa dos dois amigos, chamando a atenção deles.
— O que se passa, Otto? — Karlo perguntou, estranhando o tom da voz preocupada dele.
Otto olhou de lado para Jober, pensando se o ruivinho já havia se acalmado. Ele deixou a área de treinamento grunhindo feito um animal feroz.
— O garoto — disse ele. — Ele pediu para chamá-lo.
Karlo achou aquilo esquisito. Lú nunca foi de demonstrar nenhum tipo de afeto por ele. Jober franziu o cenho, ainda mais admirado.
— Como assim "chamá-lo"? — Jober perguntou. — A última vez que o vi era o mesmo que ver um passarinho morto.
— Bem, ele... acordou e...
— Isso é impossível! — Jober o interrompeu, levantando-se em um pulo. — Tudo bem ele sobreviver àquilo, mas acordar como se estivesse tudo bem? Não brinque com isso, mulatinho!
— Então me acompanhe e veja com seus próprios olhos.
Karlo e Jober entreolharam-se, incrédulos.
...
Lú estava sentado em uma cama de solteiro bastante confortável. O travesseiro de plumas em suas costas o relaxava da forte dor que ainda sentia. Todo o seu tórax estava enfaixado por uma atadura branca, seu corpo estava magro e seu semblante pálido. Ao lado da cama, em uma mesinha, tinha uma bacia com panos e água usada para limpar o sangue em seu peito.
A sua visão estava turva, e ainda sentia uma fraqueza em seu corpo sem igual, mas ele teimava em ficar sentado para receber Karlo. Ele não queria questioná-lo em nada. Lú entendia os sentimentos do seu mentor como ninguém, mesmo o conhecendo há pouco tempo.
A vela que iluminava o quarto sambava com a leve brisa que entrava pela porta aberta, projetando sombras dançantes na parede clara. O ambiente era bem compacto, sem janelas, apenas com aquela cama e a mesinha. Se não fosse pela porta aberta, ele sentiria os seus surtos claustrofóbicos.
O lençol fino que cobria suas pernas estava frio. Um leve arrepio percorreu o seu corpo e ele viu a figura espectral emergir ao seu lado.
Lauren.
Há quanto tempo ele não a via? Ela apareceu sentada ao seu lado com um sorriso encantador. O seu coração acelerou ao vê-la novamente após tanto tempo e sentia os seus braços formigarem e um desconforto emocional, deixando suas bochechas coradas.
Ela o fitava com um sorriso enorme, segurando as suas mãos. A sua pele era calorosa, deixando-o descansado e aliviado da dor em seu peito. Lauren estava diferente. Não era a menina chata de antes, ela lembrava Samy.
— Lau...
— Não fale — Lauren disse, interrompendo-o. — Não se esforce.
Lú se manteve em silêncio, mas olhava feliz para ela. Apertou a mão dela na sua, entrelaçando seus dedos, enquanto ela correspondia ao seu sorriso. Lauren parecia um anjo.
Lentamente, ela se aproximou da face do garoto azul, levando seus lábios ao ouvido dele.
— Eu vou te esperar — ela sussurrou. — Pelo tempo que for necessário.
Lú sentiu cócegas em seu ouvido, deixando seus pelos eriçados. Lauren se despediu com um beijo em sua bochecha — um beijo longo e demorado —, até que desapareceu por completo.
Karlo entrou no quarto de repente, antes mesmo de Lú sentir a falta de Lauren. Ele estava acompanhado de Jober, Otto e Vera — a esposa de Néfi, mãe de Otto e Lucy.
O quarto ficou ainda menor com tanta gente. Karlo estava imóvel, encarando o ser derrotado naquela cama. Lú parecia um moribundo, pálido, magro, quase sem vida. O garoto retribuiu o olhar de pena do seu mentor exibindo um sorriso, demonstrando que estava tudo bem.
O silêncio reinava enquanto as pessoas ali presentes pareciam ver um fantasma. Karlo arriscou alguns passos em direção ao menino, enquanto estava receoso daquilo que realmente enxergava. Ele sentou-se ao seu lado na cama, sentindo-se envergonhado.
— Lú, eu...
— Não precisa dizer nada, Karlo — Lú o interrompeu. — Eu te entendo.
— Karlo estava sem palavras, era como se aquele garoto tivesse lido os seus pensamentos, ou melhor, seus sentimentos. As suas mãos estavam trêmulas, talvez pela emoção de ter ouvido aquelas simples palavras. Ele não pôde se conter, então o abraçou, tomando aquela criança em seus braços como se fosse o seu filho, e pela primeira vez Karlo chorou.
Lú o apertou forte em seu abraço, sentindo as lágrimas caírem em sua pele e escutando o choro silencioso do homem. Naquele momento, Karlo se tornou o pai que ele nunca teve.
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