XLIII - SENTIMENTOS INCOMPREENDIDOS
Samy enfiava a mão dentro de sua mochila e remexia em seus mantimentos. Retirou de lá duas barras de cereais e frutas, e entregou uma das embalagens para Lú. Ele olhou de um jeito estranho para a jovem, observando o que ela lhe oferecia.
— O que é isso? — ele perguntou.
— Você precisa se alimentar, pegue! — Samy insistiu. — É uma barra de cereal.
Lú franziu o cenho, não tinha a mínima ideia do que Samy estava falando. Ele pegou e observou as descrições da embalagem. Não entendia aquelas figuras e muito menos as palavras escritas, mas se aquilo era comida, ele aceitaria sem reclamar, afinal, estava faminto e o seu corpo fraco. Levou a barra até a boca com embalagem e tudo, mas antes que pudesse morder, foi interrompido.
— Espere! — Samy gritou. — Precisa retirar a embalagem antes.
Samy tomou de volta e abriu para ele, retirando o plástico que o envolvia. Ofereceu novamente e dessa vez parecia bem mais apetitosa, apesar de Lú nunca ter visto um amontoado de grãos imprensados com pedaços de frutas. Ele pegou e encarou novamente, levou ao nariz e sentiu o cheiro adocicado. Arriscou a provar um pedaço e ao sentir o delicioso gosto, devorou o restante em questão de segundos.
— Acho que isso não vai ser o suficiente para você — disse Samy, observando estupefata aquele homem faminto. Ela fuçou novamente a sua mochila, enquanto mastigava o restante da barra de cereal, e de dentro ela retirou mais uma e entregou a Lú. — Pegue essa e me espere aqui.
Lú obedeceu, mas estranhou a ordem. Samy segurava o revólver que Alex havia lhe dado na altura dos olhos. Apesar de fazer muito tempo que tinha manuseado uma arma de fogo, ela sabia que conseguiria usar novamente, foi uma das melhores alunas nas aulas de tiro.
— O que é isso? — Lú perguntou com curiosidade.
— Uma arma muito comum utilizada nesse mundo. — Ela olhou para ele, sorrindo. — Vou procurar comida de verdade! — Ela se pôs de pé e guardou a arma no bolso da sua calça.
— Não precisa se preocupar comigo. Eu vou ficar bem — ele respondeu, infeliz, lutando para abrir a embalagem em suas mãos.
— Não seja teimoso, Lú! Precisa amar a sua vida. Agora me espere aqui! Não irei demorar.
Era o que Lú esperava, estava tão perdido naquele mundo quanto um gato de rua. Samy saiu em disparada, como se fugisse de algum animal feroz, e o feiticeiro esperava que ela não estivesse fugindo dele. Ele bufou e voltou a atenção para aquela comida estranha.
...
Samy demorou cerca de uma hora para retornar. Lú ainda estava no mesmo lugar, com o corpo fraco ele não conseguia caminhar direito sem ajuda. O céu estava repleto de nuvens grossas, e pelo visto, voltaria a chover. A ex-sereia se aproximou com uma pequena ave, que lembrava uma galinha de penas marrons, sorrindo por ter tido sucesso na caçada.
— O tiro pegou de raspão, por isso não fez muito estrago. Terminei de matá-la com um canivete — ela disse, orgulhosa.
— Melhor caçadora que eu — Lú disse, admirado. Samy jogou a ave no gramado e agachou-se ao lado dele.
— Mas eu não sei cozinhar, poderia me ajudar?
Lú assentiu e dessa vez ele correspondeu ao sorriso dela. Ele aprendeu muita coisa com Karlo durante o treinamento, e cozinhar era o principal. Pediu ajuda à Samy para levá-lo até as margens do córrego, onde retiraria as penas da ave e a estriparia. Enquanto fazia isso, a ex-sereia colhia alguns gravetos para montar uma fogueira.
...
— Faltou um pouco de sal! — Disse Samy, enquanto mordiscava uma das coxas da ave. — Quer dizer, não que eu esteja reclamando. — Ela olhou para Lú pelo canto do olho.
A carcaça da ave ainda estava espetada em uma fogueira improvisada. Eles já tinham apagado o fogo que Samy tanto sofreu para acender, já que os gravetos molhados pela chuva na noite anterior custavam muito a queimar.
Os dois ainda relaxavam às margens do córrego, desfrutando daquela iguaria e observando as nuvens se formando no céu. Samy deitou-se na grama ao terminar de comer, lambendo os dedos. Lú a observava, ainda estranhando a criatura mística que conheceu tempos atrás se tornar alguém tão diferente.
— Por que olha tanto para mim? — ela perguntou, olhando para ele de relance.
Lú corou instantaneamente e desviou o olhar, focando no pedaço de carne que ainda comia. Samy sorria, sentindo o frescor da brisa suave açoitando o seu cabelo contra a face.
— Você é uma pessoa pura, Lú — Samy disse, pensativa. — Mas não falo de desejos carnais, eu falo de espírito. A sua alma é boa e gentil, repleta de compaixão.
Lú franziu o cenho, limpou suas mãos na grama e arrastou o corpo até ficar ao lado dela, fitando-o carrancudo.
— Por que está me dizendo isso? — ele perguntou.
— Não se prenda tanto ao passado. Isso está te matando. Eu sei, não possuo mais o dom de ler os sentimentos das pessoas, mas posso sentir isso em você. — Ela o contemplou e segurou delicadamente uma das mechas escuras do cabelo dele.
— Por que você se importa tanto comigo? — Lú suspirou e deitou-se ao lado dela, encarando-a.
— Era o meu trabalho como ninfa.
— Mas agora você é humana. Não deveria estar vivendo a sua vida?
— Você... — Ela sentiu os lábios tremerem. — é muito importante para mim, Lú.
O telefone de Samy tocou naquele momento. Ela havia ligado o aparelho cerca de meia hora atrás na esperança de Alex ligar e, pelo visto, só poderia ser ele, para a sorte dela. Aquela conversa estava deixando-a embaraçada. Ela sentou-se e retirou o telefone celular do bolso.
— Sim? — Ela atendeu a chamada. — Estou bem.
Lú estranhou, não fazia a mínima ideia do que ela estava falando, era como se estivesse conversando com uma terceira pessoa, que nem estava ali. Ela seria algum tipo de maluca?
— Ok, Alex! Eu já entendi! — Samy disse, impaciente. — Eu não vou voltar! Tchau!
Samy desligou a ligação e jogou o aparelho no chão gramado, então pousou a cabeça em suas mãos, enquanto o toque irritante do seu celular insistia em perturbá-la.
— Você está bem? — ele perguntou, hesitante.
— Vou ficar, não se preocupe — ela respondeu ainda abalada pela recente discussão.
— Que coisa é essa? — Lú observou o celular no chão, que vibrava repetidamente e ressoa uma música agitada e aguda.
Samy aparentava irritação, mas tentava controlar os seus impulsos, afinal, Lú era apenas um jovem homem com a inocência de uma criança. Ela respirou fundo e levantou a cabeça, pegou o aparelho no chão e fez questão de desligá-lo, e dessa vez não ousaria ligar novamente. Estava farta daquela perturbação constante do seu marido e daquela proteção exagerada.
— Isso é um celular — ela disse, mostrando a Lu o aparelho retangular. — Serve para se comunicar com outras pessoas.
Lú pegou o aparelho com sua mão trêmula e o admirou de todos os ângulos, afundado a sua face na tela escura.
— Isso é incrível! — ele fuçava as teclas. — Eu conseguiria falar com alguém de Mengie?
— Não exatamente. Só funciona nesse planeta, e cada aparelho desse possui um conjunto de números que você precisa conhecer para falar com outras pessoas.
— Me parece um tanto complicado. — Lú entregou o aparelho a ela. — Com quem você falava?
A pergunta pegou Samy de surpresa. Lú estava muito curioso e como ela explicaria a ele que estava casada? Apesar que o feiticeiro desconhecia os seus verdadeiros sentimentos e aquele fato não seria tão importante assim.
— Bem... — Ela aparentava nervosismo novamente e sua voz soou baixa. — Com o meu marido.
Lú arqueou uma sobrancelha, não demonstrando tanto espanto quanto Samy imaginou, porém, ele ficou meio que pensativo.
— Você se casou? — Ele sorriu. — Que ótimo! Estou feliz.
Lú corou novamente, sem conseguir disfarçar o ciúme. Ele questionava o porquê de estar se importando com aquilo, afinal, agora ela tinha uma vida e precisava seguir em frente. Ele esperava que ela não percebesse a sua reação e se sentia ainda menos a vontade quando o encarava.
— É... — Samy tentou mudar de assunto, ainda pensando no que iria dizer. — Por que não toma um banho? Ficou muito tempo preso e acho que vai te fazer bem.
Lú assentiu, mas permaneceu em silêncio. Samy levantou-se e colocou a alça de sua mochila no ombro, sorrindo para o feiticeiro ao deixar o local. Ela ia para outra parte do córrego se banhar também. Precisava relaxar e pensar um pouco na sua vida e no que estava sentindo naquele momento. Tornar-se humana a deixou ainda mais sensível, e ela odiava aquele sentimentalismo.
...
Samy jogava água no corpo com suas mãos em conchas. Ela sentou-se em algumas pedras submersas em uma parte mais larga do córrego, onde a água cobria a sua cintura. O seu corpo despido cintilava com a luz de alguns raios de sol que tentavam vencer as nuvens grossas. Aquela parte da mata era rodeava por muitas árvores, de modo que deixava a ex-sereia mais à vontade.
Ela alisava a pele branca, observando os arranhões vermelhos em seus pulsos ocasionados pelo tombo na noite anterior. Aquele banho lhe serviu mais para lavar a sua alma que o seu corpo. A sua cabeça estava uma confusão de pensamentos e emoções.
Por que Lú tinha que se tornar um homem? Não poderia apenas se manter criança? As coisas ficavam mais difíceis dessa forma. Samy desconhecia o amor. Alex, para ela, era como um amigo, apesar de ter se casado com ele, não se via como uma mulher apaixonada. Às vezes ela se questionava o porquê de ter se envolvido com ele e se casado, mas sabia a resposta. Só ele poderia ajudá-la a se encaixar naquele mundo. Puro egoísmo por parte dela!
Ela jogou um pouco de água em seu cabelo e o penteou para trás com os dedos, e como estava distraída não percebeu que alguém se aproximava cautelosamente se apoiando nas árvores. O homem alto de cabelo longo e molhado caminhou até a margem, mancando. Ele fitava inocentemente a mulher, que se banhava naquele córrego.
— Samy? — ele chamou.
Assim que Samy o escutou, deu um grito, assustada, e cobriu suas partes íntimas com as mãos. Ele continuava a fitá-la como se achasse natural vê-la despida.
— Lú?! O que faz aqui? — ela berrou, aborrecida.
Lú enrubesceu no exato momento que percebeu a sua ousadia, então virou-se de costas, envergonhado. Quando Samy era uma ninfa, todas as vezes em que a vira ela estava despida, mas era algo que ele nunca se importou, não em sua mente de criança. Mas naquele momento, ele a viu como anos atrás, porém, sentiu algo diferente.
Samy saiu da água imediatamente e pegou a toalha pendurada em um galho de uma árvore, enxugando-se às pressas antes de começar a se vestir.
Ela amarrou as mangas da sua jaqueta na cintura, jogou a mochila sobre o ombro e pegou as botas com as mãos, para só então se aproximar de Lú.
— Pronto, já pode olhar — ela disse enquanto caminhava.
Lú virou-se para ela, sentindo-se um pouco mais aliviado ao vê-la vestida.
— Me desculpe — ele falou baixinho, dando um sorriso sem graça.
Samy não demonstrou emoção alguma, ainda estava muito desconcertada com o que tinha acontecido.
— Vejo que está conseguindo caminhar por conta própria — ela disse, observando o fato de ele chegar ali sem muita dificuldade.
— É, estou conseguindo dar alguns passos.
— Acho que comer um pouco lhe fez bem, está até mais... é... vigoroso. — Ela sorriu sem saber ao certo se tinha escolhido a palavra certa.
Lú olhou ao redor. A natureza daquele lugar lembrava um pouco Mengie, para ser mais específico, Luária. A mata verde, as grandes árvores com extensas folhagens e os capinzais, apenas o clima que diferenciava. Aquele lugar era bem mais quente, apesar da chuva na noite anterior, o calor se perpetuava, mesmo com o céu repleto de nuvens.
— Samy... — ele falou, preocupado. — Preciso voltar a Mengie, aqui não é o meu lugar.
Por mais doloroso que fosse, Lú estava certo. Karkariá não era lugar para Lú. Ele era um homem azul e nunca seria aceito por aquela humanidade. Na verdade, até Samy se sentia deslocada ali, mas em Mengie não seria diferente. Às vezes, para ela, tornar-se humana foi o mesmo que um castigo.
— Não posso te levar para casa — ela disse secamente. — Precisamos aguardar Lauren, mas não sei como entrar em contato com ela.
— Lauren — Lú disse pensativo.
— Acredito que ela o tenha libertado. Ela estava com um dos livros dos bruxos que o selaram no rubi.
Lú olhou para ela, atônito. Nem sequer imaginava que o seu corpo havia sido preso em um rubi. Aquele assunto fez a sua pele arrepiar. Samy fuçava o bolso da calça e de dentro retirou a pedra vermelha, que mostrou para ele.
— Esse é o rubi.
Lú via o seu reflexo naquela pedra, admirado. O seu corpo e alma ficaram presos ali durante onze anos! Como algo tão incrível podia ser feito? Os seguidores de Karen eram mais perigosos do que ele imaginava. Samy guardou novamente o rubi em seu bolso e em seguida abriu o zíper da mochila, retirando a capa de chuva que estava usando na noite anterior.
— Pegue, Lú, e vista-se, cubra a cabeça com o capuz.
Lú pegou a capa feita de lona, estranhando a vestimenta, mas não quis comentar.
— Precisamos encontrar um lugar para ficar — Samy continuou. — Não podemos passar a noite aqui novamente.
Lú assentiu e Samy calçou as botas silenciosamente. Ao longe, distante dos olhos deles, alguém os espiavam. Os olhos reptilianos por trás da máscara estreitaram-se. A caçadora espreitava, agachada atrás de um arbusto. Salomon a enviou após receber as imagens de Vânis, porém, ele desconfiava da veracidade dos arquivos, pois a bióloga foi descoberta alguns anos atrás por manipular imagens para divulgar as suas supostas histórias enganosas na internet.
Kelmo sorria, animada com a veracidade da informação. Ela observou os dois saírem daquele local e riu, a cena era meio cômica — o feiticeiro, que era bem alto, se apoiava no ombro da mulher baixinha.
— Como você cresceu! — Kelmo murmurou para si mesma, estranhando o fato da humana estar ajudando-o. Aquilo era bastante curioso.
Ao perdê-los de vista, ela saiu do seu esconderijo e com um salto agarrou-se no galho de uma árvore, balançando o corpo até fazer um giro de cento e oitenta graus, onde pisou firmemente na madeira. Ela ficou de pé, observando os dois seguirem uma trilha mata adentro. A caçadora estava decidida, não iria avisar o seu ancião ou o seu irmão, precisava antes saber um pouco mais sobre aquela humana misteriosa. Ela saltou para outro galho com uma agilidade incrível, como se fosse algum tipo de símio, mantendo o percurso em outras árvores e dessa forma foi seguindo as suas presas.
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