X - A SEREIA
Uma tora de madeira se partia ao meio. Lú nunca suou tanto em sua vida. Karlo o fazia trabalhar feito um escravo. Ele precisava partir lenha para o vilarejo inteiro!
Um tronco grosso e antigo lhe servia de apoio para cortar as toras, e ele não sabia manusear o machado com destreza, era pesado e o cabo soltava farpas que feriam a sua pele. Embora sentindo-se castigado com o trabalho duro, ele nem poderia reclamar, alguns garotos da sua idade descarregavam a lenha das carroças como se fossem penas e outros saíam junto com os adultos para a caça.
Isso lhe fazia lembrar de seu povo. Lú foi mimado demais. Talvez pela ausência de seu pai, a sua mãe não lhe permitia fazer nenhum tipo de trabalho pesado, nem sequer o levava para as caçadas. Aprendeu pouco enquanto viveu em sua antiga ilha, e as suas tentativas de provar ao mundo que ele era capaz de sobreviver sem ajuda de ninguém falharam vergonhosamente.
— Acorde, paspalho! Trabalhe! — Karlo o despertou dos seus devaneios.
O homem de peito nu apoiando uma perna em um tronco dava um longo gole em sua cabaça de rum — essa era a bebida viciante dele. O cabelo era comprido, na altura na cintura, e brilhava de forma ofuscante com o sol matinal. As jovens moças da vila passavam carregando cestas de legumes e frutas, admirando-o timidamente. O tórax esculpido e os músculos definidos invejavam até mesmo os homens, e inspiravam até o mais jovem garoto.
— A minha mãe se dispôs a costurar roupas novas para você — disse Karlo, analisando as roupas rasgadas e sujas do garoto. — Você está mais para um espantalho.
Lú não reagiu ao comentário sarcástico dele, mas ainda tinha uma dúvida.
— Karlo? — ele perguntou, enquanto apoiava o machado em um tronco.
— Fale, mas não pare de partir a lenha.
Lú revirou os olhos, continuando a partir as toras.
—Você não me queria aqui antes, por que agora quer que eu fique?
Karlo sorriu, pensativo, observando uns garotos chegarem em uma charrete trazendo mais lenha.
— Já chega! Temos madeira demais para essa semana! — ele gritou para os garotos.
Os garotos acenaram, entendendo o aviso. Só então Karlo olhou para Lú.
— Por que se arriscou para salvar toda essa gente? — ele perguntou sem nem ao menos responder à pergunta que o garoto fez antes.
Lú partiu uma tora ao meio, enquanto elaborava alguma resposta que faria sentido a ele.
— Bem, eu... — Ele olhou para Karlo. — Não podia deixar vocês ali, presos, e não fazer nada. Eu tinha que fazer alguma coisa. — Franziu o cenho, pausando por um instante. — Não podia deixar ninguém morrer.
Karlo olhou no fundo dos olhos dele, e deu um pequeno sorriso, colocando uma mão no ombro do garoto.
— Respondendo à sua pergunta. Eu não posso deixar você morrer por aí. Eu preciso e irei... fazer alguma coisa. — Terminando de falar, ele foi se retirando.
— Mas eu não compreendo. — disse Lú.
— Não precisa compreender, apenas observe ao seu redor e vai entender do que estou falando. Agora trabalhe! Esse vilarejo ficou uma bagunça depois do ataque de ontem.
Karlo saiu dali, caminhando em direção a alguns homens que prendiam os animais soltos em um cerco.
Lú estava pensativo. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, Lauren surgiu no ar à sua frente.
— O que você quer? — Lú perguntou com grosseria. Lauren pareceu não se abalar com isso.
— Já se decidiu? O que pretende fazer?
Lú não respondeu, continuou a partir a lenha enquanto gotas de suor escorriam por sua face.
— Eu vou esperá-lo o tempo necessário. Sabatow é longe, mas vamos conseguir chegar em segurança.
— Eu me sinto seguro aqui — Lú respondeu, quase como um sussurro.
— Aqui? — Lauren cruzou os braços. — Com o que aconteceu ontem, eu não acho nada seguro. — Ela sorria cinicamente, olhando em volta.
Lú olhou de lado, já enfurecido com a sua implicância.
— Me desculpe. — Ela entrelaçou seus dedos. — Eu entendo que está à procura de seu pai. Podemos fazer isso juntos e levar vocês dois a Sabatow.
— Você acha mesmo que eu quero a sua ajuda? Ontem à noite você me disse que mentiu para mim. Como eu posso confiar em você?
— Você é cismado demais comigo. — Lauren suspirou. — Desde o dia em que te encontrei, você teme que eu faça algo ruim. Eu não quero o seu mal. Estamos juntos há dias e nada aconteceu. Como você pode confiar nesse homem que acabou de conhecer e em mim não?
Lú continuava o seu trabalho, fingindo não escutar.
— Você tinha medo que os humanos dessas terras te fizessem mal e confiou nos primeiros que encontrou — ela continuou após uma pausa. — Talvez pelo fato de ser imortal não me ajude muito.
Lú partiu uma tora de madeira com tanta força, que acabou partindo ao meio o tronco de apoio. Ele lançou um olhar enfurecido a ela.
— Dá para calar a sua boca! — ele esbravejou em voz alta e alarmante. — Já estou cansado desse discurso diário de ter que confiar em você! Confiança se conquista! Se quer que eu confie em você, me prove isso!
— Lú, por favor... — Embora assustada, ela tentava alertá-lo de algo. — As pessoas estão olhando.
Realmente, Lú chamou tanta atenção que todos tinham parado de fazer suas obrigações e olhavam assustados para ele, ouvindo-o gritar para o ar — já que Lauren não podia ser vista e nem ouvida por mais ninguém.
Lú não se importou. Ele pegou o machado, segurando-o fortemente pelo cabo com as duas mãos e desferiu o golpe certeiro em direção à cabeça da ninfa, sem nem ao menos pensar nas consequências.
Enquanto isso, Lauren sequer se moveu e o machado ficou imóvel na altura da sua cabeça.
Lú estava trêmulo e ao mesmo tempo assustado. O que ele havia feito? Mas o que ele temia não havia acontecido. Lauren parou o ataque com apenas um dedo. Um dedo que nem sequer cortou com a lâmina afiada.
O garoto estava estupefato. Ela parou o ataque com apenas um dedo?
Ela realmente era uma ninfa?
Lú deixou o machado cair aos pés dela e sentiu alguém puxar o seu ombro com força para trás.
— Você está louco ou coisa parecida? — Karlo lhe deu uma bronca. Ele segurava fortemente em seu ombro, como se fosse esmagá-lo, porém Lú parecia assombrado. Os seus olhos demonstravam medo diante do ocorrido.
...
Lú bebericava um chá em uma xícara feita de argila. Estava sentado à pesada mesa de madeira na cozinha de dona Sina, ainda aturdido com o evento anterior.
— Chá de camomila vai ajudá-lo a ficar mais calmo — disse dona Sina a ele, antes de olhar para Karlo com a preocupação estampada no rosto. — Karlo, você não está exagerando com ele?
— Garotos da idade dele não dão chilique — Karlo respondeu enquanto olhava pela janela, atento ao movimento do lado de fora.
— Mas ele não está acostumado a esse ritmo todo. Pobrezinho.
— Ah, mãe, por favor! De onde ele veio, fazem mais que isso.
Lú olhou para ele, pensando se deveria lhe contar sobre Lauren ou não.
— Mãe, prepare as roupas novas que conseguiu para ele e alguns pães. Eu sei do que ele precisa.
O olhar de Karlo parecia perdido, mas Lú não quis opinar em nada.
...
Karlo levou Lú para um lago formado pelo rio que passava pela vila. A água descia em curtas cascatas, deslizando pelas pedras cheias de musgo. O sol irradiava na água cristalina, que refletia as árvores em suas margens. Escutava-se o canto de variados pássaros, e muitas borboletas voavam sob plantas floridas que nasciam ao redor das rochas.
Lú e Karlo jaziam nus na água. O garoto se mantinha na parte rasa do lago de braços cruzados, meio que tímido, mesmo percebendo que a água transparente não escondia nada.
— Garoto, você é muito feio! — disse Karlo, rindo.
Lú revirou os olhos e o observou mergulhar. O garoto arriscou ir para um pouco mais fundo, deixando a água na altura de seus ombros. Karlo voltou à superfície e o encarou.
— Por que você fala sozinho?
A pergunta pegou Lú de surpresa, mas era um fato que o vexame que ele passou mais cedo geraria dúvidas.
— É que...
— Está muito grandinho para ter amigos imaginários — Karlo disse, enquanto retirava uma mecha de cabelo do rosto. — Eu sei que homens azuis não voam — ele continuou. — E não fazem a noite virar dia como vi ontem. Acho que você tem algo de especial.
Lú estava achando a conversa estranha, mas lembrou-se da última vez que viu o gato preto. Ele disse algo sobre "feiticeiro", mas o garoto não sabia o que significava essa palavra. Será que o fato de ele poder fazer aquelas coisas o tornaria um feiticeiro?
— Você pensa demais! — Disse Karlo. — Relaxe, garoto, e venha até aqui!
Lú estremeceu. Onde Karlo estava parecia bastante fundo, até mesmo a água era escura naquele local. Ele olhou assustado para o homem.
— Que olhar de peixe morto é esse?
— Eu... não gosto muito de lugares fundos.
Karlo estreitou os olhos.
— Não me diga que não sabe nadar?
Lú assentiu positivamente com a cabeça, fazendo Karlo suspirar.
— Eu quero que venha até mim, sabendo nadar ou não.
— Eu vou me afogar!
— Eu não quero bebês chorões em meu grupo! Você vai aprender a nadar hoje mesmo. Venha logo!
Lú quis protestar, mas sabia que não deveria ter medo.
— Tente nadar até aqui — Karlo explicava. — Você vai está a favor da correnteza, e isso facilitará a sua movimentação. Bata os braços e as pernas, e tente não engolir água. Não se preocupe, eu não o deixarei se afogar.
Lú respirou fundo e decidiu confiar naquele sujeito. E, também, se ele podia flutuar no ar, na água seria mais fácil. Com esse pensamento em mente, ele partiu ao encontro de Karlo, jogando o corpo para a frente e batendo as pernas e os braços, e com a força do impulso e a ajuda da correnteza, ele estava conseguindo, mas a sua alegria durou pouco.
De repente, ele se viu afundando.
Lú relutava, batia os braços e as pernas com força. Em meio ao desespero, por diversas vezes acabou engolindo água, e quando se deu por si, ele estava completamente submerso.
O seu corpo afundava para o vazio da sua mente. Ele estava exausto. Os seus olhos abertos viam peixes, algas e pedras, e tudo parecia zombar de seu fracasso. Logo, ele se cansou de lutar e abriu seus braços, deixando-se afundar lentamente.
E se morrer fosse a única saída?
Única saída para salvá-lo de tamanho sofrimento e de tanto desgosto de si mesmo. Ele não se sentia honrado em ser o único da sua espécie. Tantos outros mais corajosos poderiam ter recebido tal privilégio, mas logo o garoto azul mais covarde se safou.
Os seus olhos cansados viam algo que há muito tempo ele não via. Poderia ser o fruto da sua imaginação pós-morte, mas era muito real até para isso.
A água tomava forma, transformando-se em uma silhueta feminina com um longo cabelo comprido, e as pernas... não eram bem pernas, mais como uma cauda de peixe com uma grande nadadeira. Embora a criatura tivesse a cor da própria água, Lú podia ver a sua face angelical e aquela sensação quente da sua presença que ele nunca se esqueceu. Ele se sentia protegido, como se estivesse nos braços da sua mãe. Ela era uma sereia! Uma ninfa da água que irradiava tamanha ternura ao aconchegá-lo em seus braços mais uma vez.
Ela era a ninfa Samy.
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