IV - LEMBRANÇAS
Lú não acreditava no que os seus olhos viam. Era o mesmo gato preto do sonho. Ele só podia estar alucinando sob o efeito da claustrofobia. Tentou não olhar, talvez ele desaparecesse.
O garoto azul precisava relaxar mesmo com toda a pressão exercida em seu estado emocional. Ele estava exausto e com fome, e sentia a fraqueza em suas pernas. O corpo estava pesado demais para se manter em pé. Ele sentou-se no meio das folhagens, inspirou profundamente e soltou o ar. Uma coisa que ele aprendeu com a sua mãe foi meditar quando necessário nessas situações.
Ele fechou os olhos e ficou em posição de lótus. A concentração o ajudaria a relaxar e aliviar a pressão do corpo e da mente. O barulho da natureza era o único som à sua volta, apesar do receio de escutar vozes novamente.
Logo, ele começou a sentir a sua mente fluir, se desconectar daquele mundo como se a sua alma se entregasse ao cosmo, dispersando-se em um plano astral. O seu corpo estava leve e rapidamente a sua consciência o levou a um lugar que ele logo reconhecera. O garoto achou que estivesse sonhando, mas era o mesmo local. O quarto de vidro que reluzia as cores do arco-íris. Ele não conseguia ver nada através das paredes, aquilo o deixava atordoado. E quando menos esperava, surgiu uma fumaça negra tomando forma.
O gato preto.
O felino com seus olhos amarelos o fitava atentamente.
Lú foi tomado pelo medo e no mesmo instante em que seu sentimento aflorava, as paredes, o teto e o chão rachavam, fazendo um tilintar. O gato continuava a olhá-lo sem se importar com o quarto. Ele parecia estar estudando o interior do garoto, lendo seus pensamentos. Aquilo deixava Lú mais apreensivo. E não demorou muito para o ambiente ficar totalmente trincado.
O ambiente reagia conforme os sentimentos negativos de Lú. O garoto começou a perceber isso, então soube que não podia ter medo. Em seu sonho, aquele quarto havia explodido em cacos, mas naquela ocasião não se parecia nada com um sonho.
Ele via imagens distorcidas de si nos reflexos das paredes trincadas e o felino à sua frente nada dizia — se é que ele realmente falava. As rachaduras aumentaram e Lú viu uma luz branca surgindo do interior. Ia acontecer novamente. A luz foi ficando cada vez mais forte, engolindo o ambiente, o seu corpo e, por último, o gato.
Antes de ser engolindo completamente, o felino falou telepaticamente.
"Desperte o seu poder. "
Um clarão tomou conta, tão forte que fez o garoto azul despertar de verdade.
Ele abriu os olhos e percebeu que estava na mesma posição de antes e a floresta continuava silenciosa. Uma mão branca estava estendida para ele, e os seus olhos perdidos seguiram lentamente para o alto, reconhecendo então a garota ninfa. Pela primeira vez, ele sorriu ao vê-la e ela retribuiu o sorriso. Ela o ajudou a se levantar. Lú se sentia bem, era com se aquela experiência de minutos atrás o libertara de seu pequeno problema psicológico.
— Você está bem? — Lauren perguntou.
— Sim, eu acho — Lú respondeu, ainda incerto se estava mesmo.
— Não devia ter fugido daquele jeito.
Lauren fez um gesto para eles irem caminhando. Lú ficou calado e juntos seguiram sem realmente saber para onde.
Enquanto iam caminhando, bem atrás deles, no meio da trilha, haviam duas estátuas. Elas tinham o tamanho de um humano, e anteriormente não estavam ali. As figuras eram de dois homens vestidos com pele animal e ambos seguravam um punhal na mão direita em posição que lembrava um movimento cauteloso, preparando-se para um bote. Nem Lú e muito menos Lauren perceberam os monumentos, e de alguma forma eles surgiram ali. Mas como?
...
Lú e Lauren seguiam o caminho tranquilamente. As árvores naquela parte eram mais afastadas umas das outras e o garoto podia contemplar o céu e a lua, enquanto a ninfa o observava.
— Você me parece bem — disse ela. — Ainda tem medo de mim?
— Se fosse para me matar, já teria feito isso. Mas ainda tenho minhas dúvidas sobre você. — Lú permaneceu olhando para o alto.
Lauren assentiu.
— Bem... eu nunca faria mal algum a você.
— Humm... — Lú parecia pensativo. — Existem mais pessoas como você? — Ele perguntou.
— Não muitas — Lauren explicou. — Eu sou a única nessa floresta.
— Será que teríamos a chance de encontrar outra como você?
— Mas você encontrou. — Lauren sorriu. — Não exatamente parecida comigo, mas também é uma ninfa.
Lú olhou para ela, franzindo o cenho. Não conseguia entender, então Lauren continuou.
— Ela te salvou no mar. Você estava se afogando quando tentou voltar para a sua ilha.
Lú se lembrava disso, mas pensou que havia sido um sonho. Foi tudo tão confuso, principalmente quando aquela criatura o tomou em seus braços. Foi algo mágico, diferente de estar na presença de Lauren.
— Ela se chama Samy. É uma ninfa da água.
— Ela... — Lú se interrompeu, não havia palavras para descrevê-la, mas queria vê-la novamente para agradecer.
— Você gostaria de vê-la novamente, não é? — Lauren pareceu ler os pensamentos do garoto.
— Isso poderia acontecer?
— Difícil, mas não impossível.
— Entendo.
Lú pareceu ficar triste por alguns segundos, mas logo mudou a expressão. Eles pararam de caminhar quando chegaram a um córrego. A água cristalina chamou a atenção do garoto. Ele estava com muita sede, então caiu de joelhos na água e começou a bebê-la, enchendo as mãos em concha e levando à boca.
Lauren olhava ao redor, em busca de alguma árvore frutífera, mas não havia nenhuma. Lú estava faminto, e talvez só achariam algum alimento ao amanhecer.
Ao terminar, Lú se levantou e enxugou os lábios com as costas da mão, para só então olhar para ela.
— Para onde estamos indo? — ele perguntou.
Lauren ficou em silêncio e parecia não saber a resposta. Depois de um breve momento pensando, ela respondeu.
— Precisamos encontrar um lugar nesse mundo que seja seguro para você.
— Tem alguma ideia?
— Eu pensei em Sabatow. É um pequeno vilarejo excluído do resto desse mundo. Ninguém se atreve a ir lá pelo simples fato de ser em um país na neve, e também pela distância.
— Se não tenho outra escolha...
— Vamos levar muito tempo. Nem sei calcular em média a quantidade de meses.
— Não precisa ir comigo. — Lú deu as costas para a ninfa e ergueu a cabeça para o céu.
— Eu já disse que não o deixarei sozinho, e você precisa da minha ajuda para chegar até lá.
— E quanto a sua floresta?
— Ela não precisa de mim. Ao menos, por enquanto. Você é a minha prioridade nesse momento.
Depois que a ninfa disse isso, um breve silêncio se instalou entre eles.
— Acho melhor ficarmos aqui essa noite.
— Aqui? — Lú olhou para ela.
— Sim. Você está cansado e precisa dormir. Não se preocupe, eu fico de guarda enquanto você descansa.
— E quanto a você?
— Eu não durmo, essa necessidade serve apenas para os mortais. — Ela suspirou ao se lembrar de algo. — E não desconfie de mim. Não farei nada enquanto dorme.
Lú ficou meio receoso, mas concordou. Ele olhou para o ambiente e encontrou um conjunto de rochas — o terreno próximo a ele possuía algumas gramíneas —, então resolveu se deitar lá. As rochas eram um ótimo esconderijo caso aparecesse algum caçador por ali. Lauren sentou-se embaixo de uma árvore, enquanto o garoto a fitava, talvez se perguntando se deveria confiar nela.
Apesar da aparência de assustado, o garoto não era tão ingênuo. A ninfa o ajudava de verdade, e pelo seu conhecimento, ela parecia ser uma criatura mística, embora, se fosse humana, não faria sentido uma garotinha estar sozinha em uma floresta. Lú sorriu para si mesmo. Garotinha. Era isso que ela era, apenas uma menina, uma criança. Por que ele estava com medo dela?
...
Uma espécie de embarcação, que mais lembrava uma canoa, repousava nas areias da praia. A maré estava calma e o dia ensolarado. Um grupo de pescadores chegava do alto-mar com uma embarcação parecida e trazia em suas redes de pesca o ganho do dia. Um homem azul alto olhava para o horizonte, onde se avistava uma fina linha de terra. A sua curiosidade o levava a admirar o desconhecido e talvez tomar uma decisão.
— Senhor Ecss, quer ajuda com esse barco? — perguntou um velho pescador apontando para a embarcação ao lado dele.
Embora fosse jovem, o homem azul era uma pessoa respeitada naquela comunidade, era o melhor caçador do local e liderava grupos de caça. O homem de cabelo comprido olhou para o velho pescador.
— Se não for muito incômodo... — respondeu ele.
O velho pescador com ajuda de mais dois parceiros empurrou a embarcação até a água. O jovem azul sorriu agradecido, ao mesmo tempo em que retirava da areia algumas sacolas de tecido cheias de roupas, armas, comidas e outros suplementos para uma viagem, colocando-as no barco em seguida.
— Eu não sabia que também pescava, Senhor Ecss — comentou um pescador mais jovem.
O homem sorriu, percebendo a inocência daquele jovem, principalmente, por não ter notado que em sua bagagem não havia nenhum equipamento de pesca.
— Saul!
Uma voz ao longe gritava por seu nome, fazendo o homem seguir a voz com seus olhos. Era a sua esposa grávida acompanhada do seu primogênito. Ela chegou ofegante, demonstrando grande preocupação. O seu marido a recebeu com o mesmo sorriso de antes.
— Por que está tão aflita? — ele perguntou, levantando os dedos para tocar a face dela.
A mulher interrompeu o carinho dele, segurando o seu pulso de forma agressiva. Ela parecia furiosa.
— Aonde pensa que vai?
Saul continuava com a mesma expressão tranquila. O seu filho, ao lado da mãe, olhava-o de forma assustada, sem compreender o que acontecia.
— Eu pretendo viajar. Conhecer o mundo — disse ele de maneira sonhadora.
— Está louco? Você não sabe o que se pode encontrar por lá — a esposa disse ao liberar o seu pulso.
— Por isso mesmo que preciso ir. Alguém do nosso povo precisa ter coragem.
— Muitos tiveram essa coragem e não voltaram.
Eles se entreolharam seriamente por um longo instante. Saul namorava a face preocupada da sua esposa, os seus olhos tinham a cor do mel, algo incomum na sua raça. Léa, como ela se chamava, vinha de uma família de caçadores ferozes. Ela enfrentou feras selvagens e sozinha entrava na Floresta Nevoada — muito temida no arquipélago — e retornava com inúmeras caças. Ela era forte e corajosa, muitos homens a invejavam, mas Saul se apaixonou pelo lado meigo dela, que naquele momento podia se notar claramente.
Ele via lágrimas em seus olhos. Lágrimas tristes e de desespero, talvez. Ele a abraçou contra o seu peito e massageou com os dedos o cabelo negro dela. Por um instante, ele pensou em desistir daquela ideia maluca, mas sorriu novamente.
— Nunca tarda em se arriscar um pouco mais — ele disse em voz baixa.
Saul olhou para o seu filho. Ele ainda era tão pequeno, mas não estava abandonando-os, ia retornar um dia. O homem azul deixou a sua esposa e caminhou até o garoto, agachando-se à sua frente.
— Lú, eu não quero que fique triste — ele disse. — Você promete uma coisa para mim?
Lú o fitava com uma expressão séria, mas assentiu com a cabeça positivamente.
— Promete que vai cuidar da sua mãe e do seu irmãozinho que vai nascer?
— Não vai mais voltar? — Lú perguntou com as sobrancelhas franzidas.
— É claro que irei, meu filho, mas enquanto eu estiver viajando, quero que você seja corajoso, assim como sua mãe.
Lú parecia inseguro com tamanha responsabilidade sendo imposta a ele.
— E se eu não conseguir?
— Claro que você consegue. Você é um Ecss. Somos excelentes caçadores A sua mãe vai te ensinar tudo e garanto que será tão bom quanto eu. Ou... — Ele apontou com o queixo para a Léa. — como ela.
Os dois sorriram e Lú abraçou o seu pai.
— Não demore, papai.
— Prometo voltar o mais rápido possível.
Saul levantou-se e caminhou na direção de Léa, que olhava chorosa para ele.
— É isso mesmo? Vai embora?
— Não exatamente "ir embora". Algum dia eu voltarei.
Ela o abraçou bem forte, como se tentasse impedi-lo de partir, enquanto soluçava, fazendo com que Saul fechasse seus olhos. Léa sabia que ele não conhecia o mundo fora da ilha e era consciente dos riscos que podia correr, mas o espírito aventureiro e sonhador de Saul não o prenderia para sempre naquele lugar.
Ele beijou os lábios da sua esposa — um beijo longo e lento —, apenas para ela não se esquecer dele, em seguida ajoelhou-se na areia para beijar a sua barriga. Não queria que seu segundo filho nascesse na sua ausência e por mais que tivesse pensando em adiar essa viagem, Saul estava sendo guiado pelo seu destino. Um destino louco e suicida, condenando a sua eternidade por isso. Mas esse era o seu sonho desde criança.
O homem azul subiu na embarcação e pegou um dos remos. Em pé, olhou mais uma vez para a sua família, uma última vez, então sentou-se e remou até o barco ir para longe, até sumir no horizonte.
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