o monstro /48/
Íris (s.f)
é a verdade que mora no meu olho. É um espaço manchado de Arte, é a tinta que faz a aquarela ter inveja do natural de cada cor. É o mar no qual nada uma pupila apaixonada. É a minha música favorita do Goo Goo Dolls.
É quem sente as lágrimas que ainda não nasceram.
— Está bom pra você? — pergunto, entrando no solário de visitações que, em um tempo passado, fora um boticário usado para curar os soldados na guerra. O ambiente é minimalista e acolhedor; o cheiro das plantas é refrescante, mas com sua presença, o ar fica opressivo. Derrubo o capuz da blusa, percorrendo os dedos no cabelo, nervoso e preocupado. Só com um olhar, trouxe de volta aquela criança, aquele machado, aqueles porcos, o ódio...
— Eu acho que sim. — ela responde, serena, calma e delicada, ignorando a raiva que sinto só de tê-la aqui.
A última vez que a vi foi no casamento, quando se esforçava para me parabenizar e desejar felicitações; eu estava tão focado em Poppy que ela não passou de um mero detalhe.
Bridget senta no sofá clássico em frente à mesa de centro, cruza as pernas e olha os arredores com um olhar cauteloso enquanto tira o cachecol numa respiração audível. O tempo está fechado, mas transmite através das paredes e teto envidraçados uma luz brilhante que faz seus cabelos ficarem vibrantes e sua pele pálida se acentuar nas inúmeras sardas expostas sem sua maquiagem costumeira; o cabelo é um manto sedoso numa cor escarlate escura, tão mais forte e vermelha que o próprio sangue. Uma criada lhe oferece chá, mas nega educadamente.
Sentado na poltrona à frente, espero até que os empregados nos deixem a sós; meus olhos se estreitam em direção a essa bruxa e seus gestos passivo-agressivos.
Sim, uma verdadeira bruxa, essa é sua natureza. Muitos não acreditam nessas singularidades, mas bruxas são mulheres que sabem mexer com os elementos da natureza e conseguem compreendê-los de vastas maneiras. Bridget é uma bruxa; meu avô costumava dizer que ela não era normal, e sim uma mulher peculiar e única na nossa família, na nossa seita que tanto despreza e inferioriza com unhas e dentes. Percebo seu jeito misterioso, como se conseguisse ler as almas das pessoas à sua volta, enxergá-las como realmente são; quem sabe seja a razão de sempre ter me detestado. Mas querendo ou não, tudo começou com ela, ela que amamentou o monstro que me tornei. E sendo o feiticeiro, o Ovates que sou, é normal ter nascido de uma bruxa feito ela... A questão é que ela não tem nem a metade do meu tamanho, é magra desde a época que me teve, me faz duvidar que um bebê grande e, agora, um homem como eu um dia saiu da sua barriga.
Seus lábios tremem, e ela diz antes que eu volte a perguntar:
— Eu sabia que você estava aqui porque é nesta Fortaleza que os Macay sempre vieram para esconder e manter segredos macabros envolvendo qualquer tipo de sujeira... E quando seu avô começou a te ensinar, trouxe você para cá, e você ama esse lugar tanto quanto ele amou. Eu sei disso.
— Boa, então? Você está aqui agora, e tenho certeza que não veio para tomar café e por as fofocas em dia. — digo, não em tom sarcástico, mas grosseiro.
— É... Bem por aí. — ela faz uma pausa, coloca um cacho solto do coque atrás da orelha, suas íris verdes acinzentadas leem minha feição. Imponente, ela levanta o queixo; não posso negar que nutro ódio versado em admiração. Como essa megera consegue ser tão fria? Me lembro que já tentei matá-la algumas décadas atrás; tive várias oportunidades, mas fui impedido por algo mais forte, uma força maior. Algo que sinto nesse momento e transparece nas minhas veias.
— Dale, Julianne, a sua única irmã... foi sequestrada... — Por mais forte que seja, sua voz e seu queixo tremeram ao dizer.
Levanto as sobrancelhas; tá aí uma coisa que não estava esperando. Cacete...
— Recebi uma mensagem criptografada há uma semana, assinaram como da Yakuza, disseram que se eu fizer qualquer movimento contrário vão matá-la e só vão libertá-la caso... Caso você entregue e liberte a sua esposa ou eu revele onde você está se escondendo!
— O que você fez?!!
— Eu vim até aqui, não fiz nada ainda, apenas notifiquei que iria fazer de tudo pra ter minha filha de volta! E isso não é em vão... Estou preocupada, eu não durmo, e estou desesperada! Sabe como sua irmã é, e eu não consigo nem imaginar o que deve estar passando; eles enviaram um vídeo terrível, Dale! E eu não me importo de jogar tudo aos ares para libertá-la...
— Não se preocupa, os desgraçados não são loucos de matá-la já que é a única maneira que têm de chegar até Poppy, de qualquer jeito, eu vou montar um plano o mais rápido possível. Julianne vai sair dessa inteira, eu acho. O que é? Ela é burra? Não tem um segurança? Por via das dúvidas, a senhora vai voltar em um barco; o iate vai tomar outra rota para despistar caso algum imbecil tenha lhe seguido, e minha equipe fará uma ronda pelo mar, era só isso?
Ela abre a boca e franze o nariz, numa reação chocada:
— Eu escutei bem...? — ela ri debochada — Dale, você é uma besta selvagem! Se esses homens sequestraram sua irmã que é um doce, e se você está aqui nessa fortaleza no meio do nada onde os homens da família mataram e torturam, deve ter uma razão, um motivo, não me faça de tola! Coitada da sua esposa, está destinada a viver nessa família podre! Tenho quase certeza que aqueles asiáticos são da família dela também! Meu Deus! Tudo isso é culpa sua, só poderia ter vindo de um monstro sanguinário como você; o que você está fazendo com essa moça aqui? Está machucando...
— BASTA! Não se meta no meu casamento ou no que eu faço; você não tem mais o direito de levantar a voz pra mim, nunca foi minha mãe e nem é mais a porra de uma condessa, se acabou o que tinha a dizer e, eu já disse que vou cuidar do seu problema, pode se retirar!
Eu sempre tive vontade de matá-la, mas agora mais do que nunca cerro os punhos, nunca consegui concretizar sua morte; talvez seja porque agora é o momento. Ela me encara com essa cara enojada, a cara que me irrita profundamente, morde o lábio inferior e solta estufando o peito:
— Você sempre me ferrou. Confesso que eu nunca te amei, mas Julianne sim! E agora está ferrando ela junto, ela sempre foi obcecada e te adora! Você está acabando com minha vida desde o dia que nasceu, desde quando foi concebido! Eu preciso por um fim nas suas atrocidades, mas duvido que vou conseguir... Mas ao menos eu vou ter minha filha de volta, e você só tem essa opção! Senão esse seu castelo, tudo que construiu vai ruir! Você é fraco, só não sabe disso; seus alicerces, sua origem...
— Do que você está falando? — grunho prestes a me levantar e cuspir nessa maldita louca do caralho; a raiva me domina como adrenalina.
— Estou falando do meu passado! Do seu passado, dos segredos sórdidos que escondi por anos para proteger essa família imunda de um escândalo! Mas eu não aguento mais, não aguento mais ter que olhar em seus olhos!!!
— Faça o favor de ir embora agora! — exijo entre-dentes; ela balança a cabeça negando, os olhos cinzas derramam uma lágrima, límpida que ela seca com a ponta do dedo.
— Você vai me ouvir agora, vai ouvir tudo. Como a vossa graça nunca se perguntou do porquê de Edwin, seu pai, nunca ter lhe dado a menor atenção ou o porquê do seu avô ter te acolhido como se fosse um novo pupilo? A oportunidade única de ter um Berseker, um Ovates e um Conde que representasse toda linhagem Macay. Você acha que foi numa situação comum? Não, não foi aleatório. Tudo tem uma explicação, uma nojenta, maldita explicação! E a única pessoa que pagou o preço nessa vida de merda foi eu! Eu tive que botar no mundo um ser desprezível, você!
Respiro fundo, soltando meus punhos e esfregando as palmas da mão como se estivesse me aquecendo.
Em outro momento eu teria voado no pescoço e estrangulado Bridget, mas agora... Eu vou evitar. Suas palavras me dão ânsia, mas não me ferem como antes. Ela é uma miserável, uma miserável de espírito forte, mas ainda uma vaca ingrata, desalmada e mal-amada que tem como único prazer alimentar a vida frívola de Julianne e se aproveitar da riqueza que a corte a oferece, por enquanto. Não há nada de interessante que possa sair da sua boca; cruzo os tornozelos com as pernas esticadas e aliso minha testa, aturando um pouco mais o seu papo.
Ela volta a olhar para baixo, soltando suspiros profundos, não se importando e voltando a dizer em um tom abatido, bem diferente do que ela costuma demonstrar:
— Tudo começou bem antes do seu nascimento. Começou com a morte dos meus pais forjada pelo meu tio, o qual você chamava de avô. Foi horrível ter perdido meus pais, e aquela dor, o luto que eu sentia ainda tão nova, me encaminhou para a pior parte da minha vida, a coisa que me transformou no que eu sou hoje. Eu tinha 13 para 14 anos quando eles morreram, e eu fiquei na tutela de Charles; eu criei carinho pelos meus primos, embora eu fosse tão tímida e solitária... Edwin era sensível, mesmo sendo um pouco mais velho e também tendo um lado sombrio como qualquer Macay, ele me ajudou a superar o luto. Mas foi não muito tempo depois, nos Jardins, nos campos da família no castelo de Inverness, que eu conheci meu pior pesadelo.
Bridget parou, colocou a mão no peito e segurou como se estivesse doendo, olhando para baixo, para as pernas cruzadas. Pisquei; meus lábios entreabertos ficaram secos. Queria dizer algo, mas me mantive calado, observando e escutando:
— Ele tinha 20 anos e trabalhava na época de colheita; o pai dele era um andarilho que também havia morrido, mas que conseguiu um pequeno pedaço de terra infértil que ele tentava manter a todo custo. Não passava muito disso, e eu era bem mais nova... Era ingênua e queria fazer amigos; eu fui burra. Eu me aproximei dele como uma mocinha tola; ele falava coisas bonitas, colhia flores para mim, e às vezes conversávamos escondidos em um solário quase igual a este, por horas a fio. Foi aí que começaram os toques, os gestos românticos. Eu sabia que não deveria estar conversando com um plebeu, mas eu gostava dele, era nova demais para ver maldade, e me aproximava cada vez mais. Quando percebi, já era tarde; estava envolvida com o jovem trabalhador, sonhando com ele. Parecia tão diferente, novo. Algo me avisava que era errado, que era sombrio, mas não conseguia me afastar. Eu me sentia atraída por esse lado; ele demonstrava tanto cuidado, carinho comigo; eu ficava completa.
Bridget me olha, os dentes visíveis e um olhar forte:
— Do mesmo jeito que você, que seu tio, seu avô, meu pai... Eu também tenho essa essência não ligada a este mundo que desprezo, essa realidade torpe que me atormenta todas as noites e que de maneira cruel atrai pessoas fatais. Mas eu aprendi a me forjar, a dor? A dor nunca me curvou! Eu me fortaleci com o passar do tempo! O terror me rondou, me consumiu, me afogou, mas eu nunca me submeti ao medo! Porque eu tenho esse sangue, sou uma Macay e os Macay não servem para ser presas medrosas, não por muito tempo, nós dominamos o terror! Somos os cavalheiros cruéis, então, posso dizer que eu sou uma sobrevivente.
Apoio meus cotovelos nos joelhos e observo-a atentamente. Primeiro meu pai ficou demente? Agora ela? Já estou começando a ficar assustado, será que a Poppy vai me deixar doido assim? Eu estou muito fodido.
— Eu não tenho tempo para seus romances adolescentes, não estou interessado nessas suas ladainhas. Se tem algo para dizer que diga logo, senão suma daqui. E caso não saia, eu não vou me opor a jogá-lo no fundo do mar. Faço tudo para ter minha paz de espírito.
— Você nunca vai ter paz de espírito! Você é atormentado, possuído pelo monstro mais horrível que possa existir!
Faço um muxoxo:
— Esse papo está chato demais, e estou interessado em ficar mais tempo com minha esposa, na nossa longa lua de mel.
— Ah, você acha que está chato? Achei que você gostaria de saber um pouco mais a respeito do seu pai.
— Eu sei tudo sobre Edwin, ele morreu demente. Completamente louco.
— Não! Não minta pra mim. Você o matou e matou o rapaz que era apaixonado por ele! — ela vocifera.
— O rapaz era louco, sofreu abusos desde pequeno, não sabia diferenciar amor de manipulação, porra!
— Eu sei disso, mas Edwin foi a única pessoa que tentou me ajudar, ele me amou!
— Esse tipo de amor é podre, tanto que me dá nojo. Ele fodia o rabo de garotos!!!
Ela desvia o olhar para as plantas suspensas nas grades, sabe que estou certo.
— Existem pessoas doentes, que até tentam mudar, e existem monstros que adoram os crimes que cometem. Eu não acho correto o que ele faz, mas eu vi a angústia que essa doença... A pedofilia é uma doença, atrelada à psicopatia é bem pior.
Reviro os olhos e solto a respiração, notando minha paciência se esvaindo. Ela faz o gesto de "não" com o dedo indicador:
— Não, Dale, eu sei, é tão ruim para você quanto é para mim conversar com alguém que eu não suporto. Mas você vai me escutar, é a única coisa que eu estou pedindo e eu nunca, nunca pedi nada para você.
— Deveria continuar assim, mas tudo bem, conclua o que você tem a dizer.
— Eu guardo isso por muito tempo, se passaram anos, Dale, tempo suficiente. Três décadas, está na hora de você saber a verdade.
Ela limpa a garganta e continua enquanto fita os sapatos:
— Eu era atormentada por muitos pesadelos depois que meus pais morreram, com leões me atacando no círculo de pedra, meu tio, todo tipo de pesadelo aterrador. Eu achava que o plebeu podia me ajudar, ele me fazia sentir especial, me fazia dar risada. Acreditava em contos de fadas e esperava que ele pudesse me amar e não quisesse só meu título ou o poder que eu poderia oferecer, ledo engano. Certo dia o pebleu convenceu a jovem boba que eu era a encontrá-lo escondida no celeiro herdado da sua família, ele prometeu que eu não iria me arrepender. Não era muito longe, consegui escapar, acreditava que não teria problemas, seria bem rápido e estava tão curiosa. Chegando lá, fui surpreendida com uma mesa de jantar posta, luz de velas e tudo! Fiquei comovida, até meu prato favorito ele tinha feito, era simples, mas delicioso, e eu não me importava, afinal era a prova de que me amava, certo? Só que eu não imaginava que o suco de morango estava envenenado e logo depois de beber eu apaguei. Quando acordei, m-m-mi-minha vida se transformou em caos, terror. Durante três meses eu fiquei desaparecida para o mundo. Os Macay só informaram a polícia local, tinham esperanças e não queriam envolver a mídia, mesmo que alguns acreditassem na minha morte, nem imaginavam o que estava acontecendo comigo naquele celeiro que fedia a fezes e esterco. Por três meses sofrendo as piores atrocidades dia após dia. O mostro me deixou presa em correntes deitada sob uma pilha de feno. Eu fui estuprada, milhares de vezes intermináveis, e quando ficava exausto o psicopata mijava na minha cara e dava risada, em seguida fechava os portões e me deixava ali. Eu poderia gritar até morrer, ninguém iria escutar. Eu fiquei nisso por um loop infinito até que ele teve uma nova ideia, colocou uma coleira de cachorro no meu pescoço e me prendeu em uma cruz na parede do celeiro, metendo, enfiando dentro de mim os mais diversos instrumentos, desde cabos de madeira a um tipo de ferro para concertos mecânicos, e sempre dizia durante os atos o quanto os meus parentes estavam em busca da jovem Bridget, até quando eles estavam exaustos de procurar. Ele ajudava nas buscas locais também.
Um sorriso enojado surgiu dos seus lábios, enquanto seus olhos permaneciam distantes no passado perturbador.
Bridget me olhou, os dentes visíveis e um olhar forte envolto em lágrimas:
— Ninguém desconfiava dele. Ele me machucava, me rasgava e, pior de tudo, começou a abusar dos animais fracos e debilitados que "resgatava das ruas" e depois usou os cachorros para abusar do meu corpo. Você tem ideia do que é ter o seu corpo profanado por animais raivosos? Eu tenho! Ele gostava de assistir os cães de caça, montando o meu corpo e me usando como uma cadela vira-lata. Nunca vou poder mensurar a tamanha dor que eu vivi; palavras não são suficientes para captar esse horror, mas nenhum ser humano merece passar pelo que eu passei, nas mãos daquele asqueroso. Meu corpo era usado para as perversidades dele e dos seus pobres animais. Eu só estava viva porque ele me alimentava com a pouca comida dos cavalos e vacas que criava. Às vezes, não satisfeito, ele me fazia comer a merda amarela, fedida e amarga, cheia de moscas circulando dos animais doentes, e então eu vomitava, e ele me forçava a comer de novo. Era isso que o deixava contente.
Ela para, engasgando com o próprio choro, e vê-la assim esmaga meu coração. Engulo em seco, não querendo escutar mais uma palavra, mas não conseguindo fazê-la parar.
— Os olhos dele são uma lembrança de maldade, perturbam-me até hoje; íris doentes, sádicas e hediondas. Uma vez, ele construiu uma superfície de madeira e a colocou no telhado do celeiro, amarrou-me ali nua, lá no topo, só para que a chuva gelada me machucasse. Eu pensei que iria morrer, queria ter morrido naquela noite de tempestade. Mas eu sobrevivi, embora de forma inusitada, senti como a iniciada que era tudo bem amplificado. A minha desgraça tinha só começado; eu sabia que era isso que os espíritos da floresta queriam me dizer quando acordei estirada e querendo morrer, pedindo para ir para o inferno porque acreditava que lá haveria calor. As lágrimas só duraram até aquela noite, a partir dali, não permitiria essa fraqueza, não por um bom tempo. Ele usava as cordas mais grossas para me amarrar, deixando-me em carne viva. Para alimentar a agonia, como música para os ouvidos dele, banhava-me com uma solução de sal e vinagre que queimava às feridas do meu corpo. Eu era um constante pedaço de carne, berrava até desmaiar e acordar vivendo tudo de novo. Eu já não andava mais; quando podia, conseguia me arrastar. Meu braço estava deslocado devido às longas surras constantes e só se arrumou quando, em uma delas, fui jogada com força suficiente no chão de barro para o braço voltar ao lugar. Eu não podia ir ao banheiro e, quando não aguentava, liberava em mim. Eu prometi tantas vezes, tentando sobreviver a isso, que nunca mais seria rebaixada! Os dias passavam, eu esperava apenas o momento em que ele fosse cansar e me matar, até que, uma vez, escutei tiros de espingarda vindo de um lugar próximo no meio da noite. Com tanto tempo, já conhecia a rotina do rapaz; ele me abusava metade do dia, na outra, fazia experimentos e depois saía sem trancar o celeiro. Eu não podia correr, não é mesmo? Ele bebia e roncava na casa porca dele ao lado do celeiro. Eu não sabia quanto tempo havia passado, mas reconheci os tiros de espingardas e acreditei, deitada nos fenos, que era época de caçada. Foi minha esperança! Era aquele dia ou nunca, sem a coleira, mas acorrentada em um dos pés. Eu só tive uma ideia; fiz o que tinha que ser feito, a escolha difícil! Eu quebrei meu tornozelo. Não podia gritar, mas a dor era terrível. Eu fugi, arrastando meu corpo nu e quebrado; eu não tinha muito tempo e fiz tudo isso sabendo que, se me encontrasse, não haveria escolha a não ser a morte. Eu consegui me embrenhar na mata e a minha sorte foi ter encontrado meu primo, Edwin, e seu avô Charles. Eles me resgataram; por quatro meses eu não falava com ninguém, não conseguia dizer nada, fiquei recebendo cuidados médicos em casa. Foi comentado que a Lady Macay havia se perdido na floresta, passado fome e quase morrido, mas estava melhorando. Nada foi mensurado para os parentes próximos sobre o estupro, violência. Eu estava depressiva e, para piorar tudo, no segundo mês após o ocorrido, fui informada da minha gravidez. Eu estava grávida daquele monstro e tinha pesadelos de novo; eu só pensava em abortar e espancar minha barriga, mas não podia fazer isso; era errado nessa maldita seita, sem contar que, se uma notícia dessa viesse a vazar nos tabloides, era o fim; os holofotes estariam sobre mim e a reputação da família seria manchada! Ah, o bebê já era grande. Com o passar dos meses, eu fiquei atormentada sabendo que um monstro crescia na minha barriga. Para encobrir a desonra que foi acometida e que ninguém encontrou o culpado, pois esse fugiu, como uma medida de emergência, eu fui entregue ao meu primo. Eu não queria pensar no feto que estava crescendo, me deixando fraca, consumindo a minha alma. Quando eu estava com oito meses, a minha bolsa estourou; não uma bolsa comum, uma bolsa de sangue... Eu fui levada por Charles imediatamente para o círculo de pedras; para ele, era melhor que um hospital! "Você tem que ter um Macay no círculo de pedras, eu pressinto, Brid! Ele não é só um Macay, ele é o maior..." foi o que seu avô disse. Eu não me contive " Não, ele é um bastardo, um demônio que não deve nascer!" eu disse, implorei para que não acontecesse, mas seu avô falou que você era um Macay independente de tudo, filho de uma Macay, uma druida. Eu fui presa no círculo de pedra por três dias, aterrorizada; no primeiro dia, eu tive que suportar os ataques e dores massacrantes e, na segunda e terceira, eu já conseguia enxergar formas medonhas e confusas dançando a minha volta, risadas dos espíritos sombrios do submundo, alucinações macabras chamando por você. Seres das sombras nefastos circulavam o círculo, esperando o nascimento do grande protegido deles. Eu sangrei muito, berrei o mais alto em uma noite de lua minguante dando à luz sozinha, até que você nasceu. Eu escutei seu choro estridente, mas quando olhei pra você eu só vi um pedaço do jovem que me abusou, enquanto era circundada pelos espíritos das trevas. Eu não queria te alimentar, mas você só queria ter o leite materno! Eu fui obrigada a amamentar aquele bebê do diabo e ter que olhar nos seus olhos todos os dias até os três anos de idade.
Levanto-me da poltrona. Meus olhos formigam, meu corpo está quente, e sinto uma camada fina de suor grudada na minha pele. Agora, sou eu quem evita o contato visual com ela. Sou eu, essa criança bastarda. Escutei do meu avô Charles, o feuno, que meu nascimento foi épico... Marcou uma nova linhagem; os espíritos selvagens e mais fortes me apadrinharam. Isso é inegável; estou rendido, prestes a desabar nas mãos dessa mulher. Encaro, vendo as pupilas de Bridget dilatar; a dor escorreu dos seus olhos prateados, agora quase tomados pelo vermelho.
Bridget limpa o rosto com as duas mãos e funga, levantando-se. Pega de dentro da bolsa que carrega ao seu lado um envelope de papel pardo, colocando-a na mesa de centro.
— Aqui está tudo que eu consegui sobre ele por um tempo, com detalhes. Perdi o rastro do infeliz em 2010, embora nunca soube exatamente onde o monstro estava. Com ajuda de Edwin, eu consegui capturar um padrão. Ele era um psicopata e sempre teve casos de necrofilia em diversos lugares, até nos Estados Unidos, onde foi o último. Eu não podia chamar a polícia porque era uma nobre. Ele matava as vítimas, sempre em pontos aleatórios de prostituição. Encontraram a cabeça de uma indigente abusada em um rio em Illinois; tenho quase certeza de que estava ligada a ele. Penso que talvez ele tenha morrido entre 2012 ou 2013 quando o padrão específico parou.
— Qual era o nome dele? ME DIGA O NOME DELE?! — vocifero.
Ela volta a me fitar, os olhos cheios d'água.
— Você não tem os traços dele, tão pouco é parecido fisicamente. Acho que Deus te presenteou com a aparência do lado menos podre do seu sangue. Só que não há jeito de mudar; você, igual a ele, emana essa energia devassa e sombria, mas existe uma semelhança intocável entre os dois. Você tem os olhos dele. Julianne foi uma esperança na minha vida, um milagre. Eu escolhi o nome dela; já você ganhou um nome graças ao avô. Depois do seu nascimento, eu não esperava que ela chegasse, sabe? Com um parto normal, trazendo felicidade na minha vida! Consegue sentir a dor que é perdê-la? Eu não posso deixar isso acontecer. Enfim, me dói falar sobre o seu verdadeiro pai. Ele tinha vários nomes, era um perverso. Quando veio trabalhar na família, chamávam pelo sobrenome: Disinmore. Mas uma vez ele me confidenciou o verdadeiro primeiro nome. Até onde eu posso saber, seu pai de sangue se chama Fargus Disinmore.
Sinto um estalar batucando minha cabeça; a única coisa que eu preciso depois disso é beber. Ela sabe que não vou suportar sua presença por muito mais tempo, aqui na minha frente. Volto a me sentar e seguro o papel pardo.
— Eu guardei essa sujeira escondida por anos, e não por dinheiro ou o título, mas porque eu assinei um pacto de sangue no dia que eu te entreguei para seu avô. Prometi que sua origem seria cem por cento dos Macay. E o sangue ruim que corre nas suas veias, o sangue plebeu contaminado do Fargus só alimentaria mais a sua força e nunca iria inferiorizar sua origem. Só que agora, filho, eu não vou deixar a Julianne, a filha que eu amo, nas mãos de criminosos. E se eu tiver que explodir essa bomba para sujar a minha imagem e a sua, eu vou fazer sem pestanejar! A escolha é sua!!
— Eu já disse, Julianne vai ficar bem. Me deixa sozinho.
Bridget pega o cachecol e a bolsa; quando cruza a porta, eu não resisto em chamar:
— Mãe!
Ela trava e vira o rosto na minha direção, como se ao invés de chamá-la de mãe eu a tivesse xingado. Com os olhos trêmulos e escorrendo em lágrimas, digo:
— Sinto muito.
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