𝐗𝐕𝐈𝐈 ┇ feras invisíveis e arbustos exóticos.
─────── CAPÍTULO DEZESETE
feras invisíveis e arbustos exóticos.
POR DOIS DIAS, nada fora do comum acontecera: nenhuma ilha fora avistada, nenhum duelo interessante ocorrera, e por mais que os pesadelos de Eris continuassem, ela pelo menos seguia sobrevivendo a eles.
Naquela tarde, a narniana tentava superar seu tédio na cabine real, usando carvão mineral para desenhar o rosto de seu noivo em uma folha de papel, os dois sentados à mesa próxima de uma das janelas que davam a vista do mar, enquanto Eris lutava para manter o rapaz parado em seu lugar.
— Está ficando bom? — questionou ele pela décima vez, e a artesã revirou os olhos, impaciente.
— Se você ficar parado, quem sabe fica? — retrucou ela, arrancando um sorriso divertido de Caspian. Ele adorava quando ela lhe dava respostas impacientes, e era fácil lhe tirar a paciência. — Sabe o que eu acho?
— O quê?
— Que você fica muito bonito com essa barba. Não permitirei que você a tire nunca mais.
— Eu deveria usar isso como ameaça. — decidiu o rapaz. — Algo como "ou você se casa comigo logo, ou eu tiro a barba".
Eris riu, sem desviar os olhos do desenho: — Nunca daria certo. Eu usaria meus poderes artesãos para mantê-lo sob essa aparência para sempre, e prolongaria este noivado até o fim das nossas vidas. Você seria eternizado pelos livros de história como o rei que nunca conseguiu se casar com a sua rainha. E nem fazer a barba.
— Que criatura cruel é esta pela qual eu me apaixonei. — comentou Caspian.
— Eu não posso ser cruel. Dizem que apenas os bons governam Nárnia. — retrucou a artesã, antes de fazer uma careta de concentração, como sempre fazia quando estava dando os toques finais para o seus desenhos. Aquela era uma das visões favoritas do Grande Rei. — Terminei. Acho que ficou bastante fidedigno.
Então ela virou a folha para o rapaz, revelando uma figura terrível de chifres, barba longa e dentes afiados, que fez com que Caspian arfasse de surpresa e diversão.
— Você é terrível! — ele exclamou, quando a noiva explodiu em gargalhadas.
Os dois logo se envolveram em uma perseguição, Eris correndo pelo pouco espaço da cabine, na tentativa de escapar de um rapaz divertidamente irado, que, cedo ou tarde, conseguiu derrubá-la sobre o chão de madeira, prendendo-a pelos pulsos.
— Peça desculpas agora, e eu prometo ser misericordioso. — proferiu Caspian, quando conseguiu prender os braços da feiticeira.
Ela gargalhou alto: — Não me desculparei! Foi a obra mais fiel que eu já fiz. Uma pena que eu não tenha usado tons de vermelho para os chifres e pele.
A expressão que o rei lhe lançara foi cômica.
— Eu não acredito na dimensão da sua maldade, Grande Rainha Eris. — disse ele. A jovem se mexeu na tentativa de se soltar, e Caspian a apertou com mais força.
— O que eu preciso fazer para que você me solte? — questionou ela.
O rapaz fingiu pensar: — Aceite realizar nosso casamento imediatamente, e eu a soltarei.
— Eu me nego a ceder. — declarou Eris. — Se não me soltar agora, deixarei você igualzinho ao desenho. E não vou desfazer o feitiço.
— Você não conseguiria fazer o feitiço sem as mãos.
— Você está duvidando?
Ele a soltou, falsamente contrariado, e rolou para o lado, libertando a feiticeira do peso de seu corpo, apenas para puxá-la de volta para si quando a mesma tentava se levantar.
Eris riu pelo susto, mas logo levou suas mãos sujas pelo carvão até cabelo do rapaz, afastando seu cabelo do rosto, antes de tocar a barba que mais cedo elogiara, deixando um rastro acinzentado na pele do rapaz. Ela viu Caspian sorrindo para ela, aquele sorriso familiar que ela tanto amava, então se inclinou sobre ele e o beijou.
A rainha sentiu o rapaz levar a mão até o seu cabelo, enrolando uma de suas mechas entre os dedos. Aquela era uma mania boba que ele tinha, mas que Eris amava acima de tudo: às vezes deixava o cabelo solto, ou o prendia sem cuidado algum, apenas na esperança de que Caspian enrolasse uma mecha entre os dedos.
— Posso te contar um segredo? — pediu a feiticeira, e um sorriso cresceu no rosto do telmarino.
— Adoro ouvir os seus segredos.
— Às vezes eu duvido que exista alguém que consiga sentir metade do amor que eu sinto por você. — sussurrou ela. — Às vezes acho que nem mesmo eu aguentarei sentir tanto.
O rei sorriu para ela: — Pois eu compartilho do mesmo segredo.
Então a jovem se inclinou para beijá-lo novamente, mas foi imediatamente interrompida por batidas na porta. Caspian fez um som de impaciência, e tentou ignorar, sua mão ainda no cabelo da feiticeira, puxando-a para mais perto, mas as batidas se repetiram.
Eris se afastou do rapaz, se sentando sobre o chão da cabine e passando as mãos pelo cabelo, antes de dizer:
— Só um minuto! — e para o telmarino, sussurrou: — Se recomponha.
Então ela atendeu a porta, abrindo um sorriso resplandecente para Dumas, um dos imediatos de lorde Drinian.
— Desculpe incomodá-la, vossa majestade, mas avistamos ilhas. Um arquipélago. Estamos passando entre terras que parecem inabitadas. — disse ele. — O capitão pediu para chamar a milady e lorde Caspian, mas nós não o encontramos.
Atrás de Eris, o telmarino sufocou o riso, e a feiticeira fingiu uma tosse para abafar o barulho: — Não se preocupe, milorde. Eu o encontrarei.
— Tenho certeza que sim. — respondeu o marinheiro, observando o cabelo bagunçado da jovem, e logo fez uma reverência, antes de se afastar.
Então tanto o rei quanto a rainha de Nárnia explodiram em gargalhadas altas, precisando de alguns minutos para se recuperarem e deixarem a cabine para trás.
Assim que subiram ao convés, encontraram lorde Drinian, Dumas e Edmundo na proa do navio, tentando enxergar alguma coisa através de uma luneta.
— Veja, lorde Dumas, encontrei sua majestade. — anunciou ela, e o imediato abriu um sorriso divertido.
Caspian, que já tinha o braço em volta de sua cintura, a cutucou nas costelas em advertência, e a jovem sufocou o riso, enquanto o rei se virava para o capitão:
— O que estão procurando?
— Sinais de vida na ilha mais à frente. — respondeu Drinian, estendendo a luneta para o telmarino.
Diferente da ilha Felimate, aquela ilha mais à frente parecia realmente inabitada. Não tinha sinais de construções, como torres de vigia ou portos, e sua praia parecia completamente intocada.
— Parece desabitada. — anunciou ele, e Edmundo e Drinian confirmaram com a cabeça. — Mas se os fidalgos seguiram o nevoeiro para o leste, devem ter parado aqui.
— Pode ser uma armadilha. — comentou o capitão.
— Ou pode conter respostas. — retrucou Edmundo, e logo todos se viraram para Eris, como se esperassem pelo seu veredito.
— Sobrevoarei a ilha. — ela se ofereceu, mas Caspian a impediu.
— Não. — disse ele. — Se for mesmo uma armadilha, estarão escondidos como os mercadores estiveram em Felimate. Prefiro que você não se arrisque por isso.
Aquilo incomodou a rainha de alguma forma que ela não conseguia explicar, mas acabou concordando. De nada adiantara sobrevoar Felimate, mesmo. E aquilo só a fizera se lembrar de que seus poderes não foram úteis no restante da estadia naquela ilha.
— O que fazemos então? — questionou Ed.
— Vamos passar a noite na praia. — decidiu o rei. — Percorremos a ilha pela manhã.
— Sim, majestade. — disse Drinian, antes de se afastar para repassar sua ordem.
ANTES QUE O SOL desaparecesse por completo, o Peregrino da Alvorada já havia sido atracado próximo à praia, e três botes foram enviados à ilha, onde pelo menos treze tripulantes desembarcavam. Entre eles, estavam os quatro reis e rainhas de Nárnia, Eustáquio e o capitão Drinian, que havia deixado Tavros e Dumas mantendo a ordem no navio.
A tripulação logo tratou de acender uma fogueira, onde esquentaram um pouco de comida, e em questão de duas horas todos já estavam dormindo.
Foi quando a Rainha Artesã sonhou mais uma vez com Jadis: daquela vez, a terrível Feiticeira Branca tinha em suas mãos o mesmo cetro que anos atrás, nas catacumbas de Monte Aslam, Fome e Sede usaram para invocá-la, e apontando-o contra a artesã, ela começou a transformá-la em pedra, como as antigas histórias narnianas contavam que Jadis era capaz de fazer.
A transformação era dolorosamente lenta e, mesmo que fosse apenas um sonho, Eris conseguia sentir seus pés, pernas e tronco virando rocha escura. Ela observava horrorizada suas costelas virarem pedra, até não conseguir mais respirar.
Tentou levar as mãos até a garganta, mas elas também eram rocha dura e densa, e a artesã foi sufocando lentamente, sua visão se tornando turva pelas lágrimas.
— Sua magia não pode ajudá-la nisto, não é? — ela ouviu Jadis lhe questionar, enquanto Eris tentava puxar o ar necessário para continuar viva, falhando tristemente. — Você é fraca, Eris. E nunca será uma rainha de verdade.
Foi quando uma mão pesada balançou seu ombro, tentando acordá-la.
— Eris! — era Caspian. A visão de Eris focou no rosto do rapaz, que estava sentado diante dela, com uma expressão que parecia uma mistura de preocupação e desespero. Ela se deu conta de que suas pálpebras já estavam abertas, e sua pele úmida pelas lágrimas. Sonhara de olhos abertos.
A artesã demorou para conseguir se mover, o corpo rígido como se realmente tivesse sido transformada em pedra. Ela teve dificuldade em afastar a mão que havia levado até a garganta — o gesto que não conseguira realizar em sonho — e foi precisa a ajuda de Caspian para afastá-la.
— O que foi isso? Acordei com o som de você sufocando. — ele contou. A feiticeira percebeu que Edmundo estava ao seu lado. — Você estava de olhos abertos, mas parecia não me ver.
Eris se sentou, passando a mão pelo cabelo para afastá-lo do rosto, e respirou fundo.
— Desculpe. Foi só um pesadelo.
— Só um pesadelo? — retrucou Caspian. — Eris, você estava sufocando. Gritamos seu nome e você não se movia.
Aquele sonho foi mesmo mais intenso, e a artesã tinha notado que, quanto mais se aproximavam do leste, mais intensos seus pesadelos se tornavam. Suas dores de cabeça misteriosas também se tornavam cada vez mais fortes.
Eris encarou a areia da praia, sem saber o que falar, até que percebeu algo verdadeiramente esquisito: enormes pegadas no chão.
— O que é isso? — questionou ela, apontando para as pegadas. Os dois reis observaram as marcas, curiosos.
— Gigantes? — sugeriu Caspian.
— Pequeno demais para gigantes, grande demais para humanos. — falou Eris, secretamente feliz pelo assunto ter se desviado dela.
— Espera, cadê a Lúcia? — perguntou Ed. Caspian e Eris procuraram pela garota com os olhos, e tudo o que encontraram foi o cobertor sobre o qual ela dormira, e seu livro, caído de qualquer jeito sobre a areia. — Lúcia? Lúcia!
— Todo mundo de pé! — Caspian gritou para a tripulação. — Precisamos fazer uma busca!
Lorde Drinian ecoou as ordens do Grande Rei, e em três minutos, todos estavam despertos e armados, prontos para rastrearem as pegadas na areia. Saíram com tanta pressa que nem perceberam que haviam deixado o pobre Eustáquio Mísero para trás, ainda preso em seu sono pesado.
Adentraram a ilha, até que as pegadas desapareceram, e, atravessando uma curta mata, eles chegaram a um enorme jardim, cheio de arbustos com formas de espirais, surgindo do centro de grupos de outros arbustos, estes redondos. A garota observou a paisagem ao seu redor com tanta atenção que acabou tropeçando em algum objeto.
Ela olhou para o chão de grama escura, curiosa: o objeto em que tropeçara era a adaga que pertencia à Pevensie mais nova.
— Ed, Caspian — chamou a feiticeira, pegando a arma da amiga desaparecida. —, vejam! É a adaga de Lúcia.
De repente, enormes estacas de madeira surgiram do nada, sendo lançadas contra o chão, não atingindo os tripulantes do Peregrino da Alvorada por pouco. Todos empunharam suas espadas, em posição de ataque, mas não tinham como atacar: seja lá o que estava lançando as estacas, não era visível.
— Fiquem parados! — uma voz masculina e irritante exclamou, e todos se viraram em sua direção, sem encontrar seu dono. — Ou vão morrer!
A espada de Caspian foi lançada para longe de suas mãos subitamente, e o rei foi empurrado contra o chão com força. O mesmo aconteceu com Eris: em um momento ela estava de pé, no outro, uma força invisível a lançava contra o chão.
Mais uma vez a feiticeira se viu inútil: queria transformar os inimigos — seja lá quem eles fossem — em seres inofensivos, mas a magia artesã alterava apenas aquilo que o feiticeiro podia ver, e Eris não enxergava o que os atacava.
Novamente, uma dor latejante atingiu a artesã, e por um momento todo aquele barulho ao seu redor se tornou insuportável. Está sendo inútil de novo, uma voz lhe sussurrou. Do que serve tê-la aqui?
— Que tipo de criaturas são vocês? — Caspian perguntou, enquanto ele e os outros tentavam se erguer.
— Criaturas enormes! — disse uma voz, diferente da que os ameaçou. Uma das espadas perdidas pela tripulação foi erguida no ar, sua lâmina cortando o vento de maneira ameaçadora. — Com cabeça de tigre e corpo de um... Um...
— Um tigre diferente! — outra voz completou, e outras concordaram, como se achassem a sugestão muito inteligente.
— Isso mesmo! É melhor não mexerem com a gente!
— Se não o quê? — perguntou Edmundo, valente e irritado.
— Se não retalhamos vocês com nossas garras! — uma voz respondeu e, enquanto falava, sua imagem começou a surgir.
— Atravessamos vocês com as nossas presas! — ameaçou outro, enquanto também se tornava visível.
A artesã observou os seres ao seu redor: um a um, todos deixaram de ser invisíveis, revelando o último tipo de ser que ela imaginava poder encontrar. Não eram gigantes com cabeças de tigres e corpos de tigres diferentes. Eram anões. De todos os seres possíveis, eram anões com um único e enorme pé.
Eles formavam trios: um anão sendo erguido sobre os ombros de outros dois, para que juntos eles parecessem gigantes. Foi por isso que, ao observarem as pegadas nas areias, Eris tinha visto pares de pés, não um pé só.
— Rasgamos vocês com os dentes! — disse um outro anão, a primeira voz a ameaçar o grupo mais cedo. Ele tinha cabelos ruivos e barba grisalha, e parecia ser o mais velho do grupo. Os anões pareciam não ter se dado conta de que estavam visíveis.
— E mordemos vocês com os nossos caninos! — terminou um último anão, que estava sobre o ombro de outro.
Edmundo os encarou com um olhar divertido: — Quer dizer que nos esmagarão com estes barrigões?
— Que barrigões? — um dos anões perguntou, confuso, e os outros ecoaram, encarando os próprios corpos.
— E nos fazem cócegas com estes pés? — Caspian complementou, e o susto por terem sido descobertos fez com que os anões que seguravam o ruivo deixassem ele cair.
Lorde Drinian e Ed recuperaram suas espadas na grama, e apontaram suas lâminas para ele.
— O que fizeram com a minha irmã, seus pestinhas? — questionou o Pevensie.
— Ahn... Veja bem... — o ruivo começou a gaguejar, e Ed aproximou a ponta de sua espada de seu pescoço. — Calminha aí!
— Contem agora. — Eris ordenou, o humor irritadiço pela dor que sentia. — Contem, ou os transformarei em um bando de insetos insignificantes.
Então, para demonstrar que não estava brincando, ela estendeu a mão na direção de uma árvore, e a transformou em uma planta tão pequena que sumiu entre os arbustos que a cercavam, de forma que a impressão era a de que ela tinha desaparecido.
Aquilo pareceu perturbar os inimigos: de repente alguns deles estavam agitados, gritando coisas desconexas sobre a artesã ser como o "Opressor".
— É melhor contar para eles, chefe! — um dos anões disse, e os outros concordaram, nervosos. Eris percebeu que aquele grupo não era um grande exemplo de sabedoria e intelecto, e que eles provavelmente só iam na onda das ideias que achassem mais inteligentes, porque viviam imitando uns aos outros.
— Ela está na mansão. — o ruivo admitiu.
Edmundo franziu a testa: — Que mansão?
Todos se encararam em silêncio por um segundo ou dois, absolutamente confusos, até que uma enorme mansão surgiu no centro do jardim, se tornando visível do mesmo jeito que os anões se tornaram.
Eris observou a tudo maravilhada: era um casarão de quatro andares, as paredes brancas do primeiro e segundo andar quase completamente cobertas por trepadeiras verdíssimas, e janelas de vidros brilhantes. Se não morasse em um castelo milenar, ela adoraria morar ali.
— Ah, aquela mansão. — Ed e Eris disseram em uníssimo, no mesmo tom sarcástico que sempre carregavam, e então se entreolharam, divertidos por pensarem da mesma forma.
Antes que alguém pudesse dizer mais alguma coisa, foi possível ouvir o som de folhas farfalhando e Eustáquio Mísero apareceu pelo mesmo caminho que o restante da tripulação havia usado. Sua pele estava avermelhada, provavelmente irritada pela vegetação, e ele parecia contrariado.
— Saibam que eu já estou cansado de ser deixado pra trás! — exclamou o menino, antes de observar aquela estranha cena: um jardim com arbustos exóticos e anões de um pé só. O olhar de choque dele divertiu Edmundo e Caspian, que nutriam uma irritação especial por ele. — Esse lugar está ficando cada vez mais esquisito!
— Esquisito? — um dos anões ecoou, ofendido, e os outros logo repetiram.
Foi quando as portas da mansão se abriram, e todos se viraram para ela, a tempo de ver Lúcia atravessando a entrada, acompanhada por uma figura interessante: um homem mais velho, de cabelos grisalhos, e vestes marrons sob um quimono dourado.
Ver o homem encheu os anões de ansiedade: eles passaram pular de um lado para o outro, como se tentassem escapar dele, enquanto gritavam que ele era o "Opressor".
— Lúcia! — Ed exclamou aliviado, quando a irmã parou diante dele, e a garota sorriu.
O tal Opressor se inclinou em uma reverência.
— Majestades. — cumprimentou ele.
— Caspian, Eris, Edmundo — começou Lúcia. — este é Coriakin. Esta ilha é dele.
O trio se inclinou em uma reverência para aquela figura misteriosa, até que o anão ruivo se meteu entre Caspian e Eris, e disse:
— É o que ele pensa! Você nos enganou, mago!
Mago. Os dois reis logo encararam Eris. Sua busca por outros magos finalmente teria dado resultados, mesmo que por coincidência?
— Eu não enganei vocês! — o mago se defendeu, andando tranquilamente na direção dos anões. Cada um deles deu pulos para trás, como se tivesse medo de serem tocados por ele. — Eu apenas os deixei invisíveis para sua própria segurança.
— Opressor! — o ruivo berrou, enquanto pulava para trás, e os outros ecoaram. "Opressor, Opressor", todos diziam, mais como uma ofensa do que como um nome.
— Eu não oprimi vocês. — Coriakin disse com calma.
— Ahn... Mas podia ter oprimido, se quisesse! — retrucou o ruivo, em sua lógica sem sentido.
— Vão embora! — exclamou o mago e, em um gesto um tanto teatral, ele lançou flocos brancos na direção dos anões, cada um dos flocos flutuando magicamente no ar, enquanto o grupo que fugia aterrorizado.
— O que era aquilo? — perguntou Lúcia.
Coriakin abriu um sorriso maldoso: — Algodão, mas não conte a eles.
Eris sorriu ao ouvi-lo dizendo aquilo. Parecia o tipo de coisa que ela faria.
Observando aqueles estranhos seres de um pé só se afastando aos pulos, Eustáquio perguntou: — O que são eles?
— Tontópodes. — Coriakin disse simplesmente.
— É claro que são. — disse o menino com cinismo. — Bobeira minha perguntar!
A rainha artesã riu pela indignação do Mísero. Devia ser estranho ser jogado em todo aquele mundo novo sem informação alguma. Edmundo havia lhe dito que, quando ele fora para Nárnia pela primeira vez, também havia estranhado algumas coisas. E cometera alguns erros.
— Venha, Eustáquio. — disse ela. — Depois eu te explico qual o tipo de criaturas você poderá encontrar por aqui. Tenho um livro ilustrado sobre os seres de Nárnia.
O menino pareceu aliviado por alguém se importar com aquilo, e se aproximou da feiticeira, enquanto Coriakin a observava com atenção.
— Majestade. — cumprimentou o mago. — É uma honra estar diante da Rainha Artesã.
Eris sorriu, tímida: — Também é uma honra estar diante de um mago... Acredito que tenhamos muito o que conversar.
— Temos mesmo. É melhor que entremos logo então.
Todos concordaram, e logo ficou acordado que a tripulação ficasse vigiando o jardim, para garantir que os tontópodes não voltassem, enquanto Coriakin, Eustáquio, lorde Drinian e os reis e rainhas adentravam a mansão.
— Porque você é chamada de Rainha Artesã? — questionou Eustáquio, enquanto eles atravessavam um corredor luxuoso no segundo andar do casarão. — O que você faz? Tricô? Bordado? Pintura de mesa?
Eris abriu um sorriso divertido.
— Eu uso minha magia para transformar a forma das coisas. Animais em outros animais, objetos em outros objetos. Os feiticeiros do meu tipo vieram de outro mundo, o Mundo Imperfeito, onde eram conhecidos como Bruxos Artesãos.
Eustáquio suspirou: — Bruxos do Mundo Imperfeito. É claro que sim.
Caspian e Ed, que ouviam a conversa, riram, divertidos pela forma como o garoto parecia mais exausto de toda aquela estranheza do que chocado.
Mais à frente do grupo, Lúcia perguntou a Coriakin: — Por que o senhor disse que tinha deixado eles invisíveis para o seu próprio bem?
— Parecia o jeito mais fácil de protegê-los do mal. — respondeu ele.
— Do nevoeiro? — perguntou Ed.
— Do que está por trás do nevoeiro. — respondeu o mago.
Então o grupo adentrou uma sala enorme, que deveria ser o cômodo mais bonito que Eris já vira em sua vida: as paredes eram luxuosamente adornadas, havia enormes estantes de livros, alguns deles flutuando livremente, e, próximo ao teto, havia uma espécie de projeção do céu noturno, muito mais complexo e requintado do que a imagem que a bruxa artesã formara em sua cabine. Ela estava quase se coçando de tanta inveja.
— Quero uma sala igual. — anunciou Eris para Caspian, cutucando-o no braço. — No castelo. Quero uma sala exatamente como essa.
O Grande Rei sorriu: — Eu faço uma se você se casar comigo.
— Eu me caso com você se você fizer uma. — devolveu a feiticeira.
Coriakin sorriu para os dois, achando a cena divertida: — Ah, é mesmo. Vocês noivaram recentemente. Nada mais bonito do que amor jovem.
— Como o senhor sabe? — perguntou Eris.
O mago deu de ombros, e não se esforçou para elaborar uma resposta. Em suas mãos, segurava um enorme pergaminho, que ele jogou no ar. O pergaminho se desenrolou magicamente, pousando sobre o chão de assoalho e formando uma imagem, tão realista quanto a projeção do céu.
Quero fazer isso, Eris pensou. Quero ser capaz disso.
O grupo observou o pergaminho com atenção: formava a imagem do mar, com ilhas em alto-relevo no canto, e nuvens flutuando acima dele. Suas bordas desenhavam toda a história de Nárnia, passando por sua criação, a guerra contra a Feiticeira Branca até a Revolução Narniana.
— Até que é bem bonito... — comentou Eustáquio, observando o pergaminho. Ed e Lúcia o encararam. — Para um mapa de de faz-de-contas de um mundo de faz-de-contas.
— Aqui está a fonte de seus problemas. — começou Coriakin, apontando para o pergaminho e fazendo a imagem se transformar. Era como se o oceano se movesse rapidamente, até chegar à imagem de uma porção de terra escura que, olhando pelo ângulo correto, formava a imagem de uma caveira. — A Ilha Negra. Um lugar onde o mal espreita. Ele pode tomar qualquer forma, e faz seus sonhos mais sombrios se tornarem realidade.
Eris sentiu um arrepio subindo pela espinha. Se os sonhos que ela vinha tendo ultimamente se tornassem realidade... Bem, ela talvez não sobrevivesse para contar a história.
— A ilha tenta corromper toda a bondade, para roubar a luz deste mundo. — continuou o mago, andando sobre o pergaminho. As nuvens que pairavam sobre a imagem se afastaram dele, como se fossem de verdade.
— E como vencemos isso? — perguntou Lúcia.
— Quebrando o feitiço. — respondeu Coriakin. Ele se virou para Edmundo, apontando para a espada presa em seu cinto, aquela que Lorde Dain havia lhe presenteado. — A espada que você carrega... Existem outras seis.
— Já viu todas elas? — questionou o Pevensie.
— Já.
— Os outros seis fidalgos... — Caspian se deu conta. — Eles já passaram por aqui?
— Sem dúvida.
— E para onde eles foram?
— Para onde eu mandei. — respondeu Coriakin. Suas respostas eram tão enigmáticas quanto as de Aslam, mas ele não era Aslam, e o rei telmarino sentiu uma pontada de irritação por causa daquilo.
O mago voltou a caminhar sobre aquele enorme papel mágico, voltando para a borda, e a imagem da Ilha Negra desapareceu, dando lugar à uma nova ilha, daquela vez menos sombria. Acima dela, pairava um pequeno globo de luz azul. Uma estrela, percebeu Caspian.
— Para quebrar o feitiço, você deve seguir a estrela azul até a Ilha de Ramandu. Lá, as sete espadas devem ser pousadas na mesa de Aslam. Só então o verdadeiro poder delas poderá ser libertado. — orientou Coriakin. — Mas cuidado, pois todos vocês serão testados no caminho.
Ele encarou Eris com um olhar enigmático, e por um momento, a feiticeira se perguntou se ele sabia sobre os sonhos estranhos que ela vinha tendo, da mesma forma que sabia sobre o noivado dela com Caspian.
— Testados? — indagou Lúcia.
O mago confirmou com a cabeça: — Até pousarem as sete espadas, o mal estará com a vantagem. E vai fazer de tudo em seu poder para tentar vocês. Sejam fortes.
O grupo se encarou, todos tensos. Mesmo que não tivessem revelado uns aos outros, cada um deles vinha sendo assombrado por alguma insegurança que vinha se tornando perigosa. A de Eris era a mais ambiciosa.
— Não caiam em tentação. — continuou Coriakin. — Para derrotar as trevas, precisam derrotar as trevas dentro de vocês.
Ele se virou para Eris, como se estivesse consciente do que enfrentava.
— Você, de todos, é quem mais precisará de forças. As trevas que vivem dentro dos humanos são perigosas, mas as que vivem dentro de nós, feiticeiros... Estas são as mais destrutivas. É por isso que seus pesadelos já começaram, e as trevas já a perseguem.
Todos encararam a artesã, e ela não pôde deixar de pensar que, naquele momento, todos deveriam estar lembrando de Jadis ao olhar para ela.
— O que me lembra de que precisamos conversar. Você e eu. — comentou Coriakin. Ele se virou para o restante do grupo. — Vocês poderiam nos deixar a sós por um momento? Não demorará muito.
Caspian e Eris trocaram um olhar, e a narniana acenou com a cabeça para o noivo, como se dissesse que estava tudo bem. Logo o grupo saiu da sala, deixando os dois feiticeiros a sós.
— Você vinha procurando por seres como eu. Estrelas que assumiram a forma humana para praticar magia. — disse o mago, assim que a porta da sala foi fechada. — Isso significa que você parou de buscar pelo seu tipo?
Aquela pergunta pegou Eris de surpresa: ela havia desistido dos Artesãos? Para ela, só era possível desistir daquilo que era real, e a possibilidade de haver mais Artesãs há muito tempo havia se tornado irreal para ela.
— Eu não encontrei sequer um indício de que mais do meu tipo existem. — disse ela por fim, mas as palavras tinham um gosto amargo na boca.
— Talvez você esteja procurando errado. — Coriakin rebateu. — Talvez esteja procurando por Artesãos que se pareçam com você, e nem todos tem uma aparência como a sua?
Se aquela conversa fosse com Caspian, ele provavelmente teria arqueado a sobrancelha e dito algo como: Você quer dizer bonito como eu?, mas Eris não tinha mais tanta energia para ser engraçada, então apenas arqueou as sobrancelhas e perguntou:
— O que quer dizer com isso?
O mago deu de ombros: — Nem todo Artesão tem a forma humana, não é? — Eris confirmou com a cabeça. — E, quando você buscou por eles no litoral, você buscou por seres com esta forma, não?
Eris abriu a boca para respondê-lo, mas nenhuma palavra saiu dela. Então a fechou de novo, sua mente dando um nó.
— Isso não importa, de qualquer forma. — garantiu Coriakin, indiferente à crise da jovem rainha. — Artesãos não se deixam ser encontrados. Eles se revelam quando acharem melhor, então a sua busca foi inútil de um jeito ou de outro... Foi por isso que eles não ajudaram Nárnia contra a Feiticeira Branca: porque não acreditavam que aquele era o momento ideal para se revelar. Não são de assumir riscos, o que te faz uma Artesã muito especial.
A feiticeira logo se lembrou de Pedro Pevensie, que havia lhe contado, quando os dois se conheceram, que havia conhecido Artesãos durante os Anos de Ouro. Ele havia dito que aquela espécie não havia lutado na guerra contra Jadis, mas que se uniram a Nárnia depois disso.
E sua mãe havia lhe dito que os Artesãos há milênios se escondiam entre as outras espécies. Não eram um povo de conflitos. Eram Artesãos afinal.
Coriakin parecia não ter muita paciência para reflexão, pois logo mudou de assunto: — Como eu dizia... Você vinha procurando por feiticeiros como eu, não é verdade?
— Sim, eu vinha. — confirmou a jovem, aceitando a virada na conversa. Se Coriakin fosse um pouquinho parecido com Aslam, então não adiantaria lhe pressionar para falar nada. — Quase tudo o que eu aprendi a fazer com a minha magia, eu aprendi sozinha. Desde o fim da guerra, venho procurando por outros artesãos, mas não encontrei nenhum. Tinha esperança de que um mago pudesse me ajudar.
— Eu estou ciente dos seus conflitos. — revelou o mago. — Sei que você vem duvidando cada vez mais da sua magia. Que ela não lhe vem parecendo muito... Eficaz nos últimos tempos.
— Tenho meus motivos para pensar isso.
— Eu sei que tem. Mas permita-me dizer que eu admiro seus dons. Você ainda será uma das mais poderosas feiticeiras da história de Nárnia. Acha que ter aprendido sozinha a fazer tudo o que faz é um infortúnio, mas é um dom. Você é uma autodidata. A maioria de nós, magos e feiticeiros, levamos décadas de estudo constante para conseguir lidar com a própria magia, coisa que você fez em menos de uma década.
Ele foi até um canto da sala, de onde tirou um enorme livro.
— Este é o Livro dos Feitiços. — disse, se aproximando da jovem. — Ele é encantado e por isso qualquer pessoal sem magia pode recitar seus feitiços com sucesso, desde que esteja segurando uma de suas páginas. Mas apenas um verdadeiro feiticeiro pode recitar sem precisar delas.
Coriakin o mostrou para Eris, e ela descobriu que, além da tranca que impedia o livro de ser aberto, toda a sua capa era feita de ferro, com letras em alto relevo, espalhadas por ela aleatoriamente. De todos os materiais possíveis, a capa era feita do único capaz de anular a magia artesã. Parecia uma piada pessoal do universo contra a jovem rainha.
— O seu tipo veio do Mundo Imperfeito, um lugar onde a única função dos feiticeiros era aperfeiçoar a realidade. — revelou Coriakin. — A magia de transfiguração se tornou instintiva a cada geração, de forma que os artesãos nunca precisaram recitar um feitiço em voz alta para conseguir mudar a forma das coisas. Mas você está errada em pensar que esta é a única coisa que é capaz de fazer. Assim como nós, estrelas, vocês nasceram com um único dom: manipular a magia. Com os instrumentos certos, podem fazer qualquer tipo de feitiço.
Ele segurou o objeto diante do rosto, e então o assoprou. As letras da capa se desembaralharam, formando o título: O Livro de Feitiços. A tranca da capa se abriu, e Coriakin folheou o livro, lhe mostrando as páginas, todas belamente desenhas, cheias de feitiços para os mais diversos fins.
— Este livro é seu agora. Não sou eu quem está te dando, mas Aslam. Aprenda o que está escrito aqui, e você será capaz de fazer qualquer tipo de magia. Mas saiba que isto não é um presente. É uma provação. Lidar com magia é algo perigoso. Pense na Feiticeira Branca: quanto mais aprendeu, mais ambiciosa se tornou. Você passará pelo mesmo desafio, e eu torço para que consiga superá-lo.
— E o ferro? — perguntou Eris, insegura.
— Ele pode ser uma fraqueza de sua magia instintiva, mas não de um feitiço falado. — garantiu o mago. — Você poderá aprender mais sobre isso aqui.
A feiticeira encarou o livro, esperançosa. Vinha enfrentando secretamente a dor de ser a única de seu tipo naquele mundo, de não ter ninguém vivo que pudesse ensinar-lhe magia, mas aquele livro... Mudava tudo.
── NOTAS.
UM. ︴ gente me perdoa, eu juro que tento fazer capítulo curto, quando vou ver ele tá com 5300 palavras 😭😭😭
DOIS. ︴uma das coisas mais importantes em a viagem do peregrino da alvorada é que todos os personagens precisam lidar com suas inseguranças e temores, e a insegurança da eris é a de não ser uma feiticeira boa o suficiente. ela foi muito útil durante a guerra contra telmar, mas agora seu mundo se expandiu e sua magia vem se mostrando insuficiente, e isso é difícil para ela. espero que vocês estejam conseguindo enxergar isso, é bem importante para a jornada dela :)
TRÊS. ︴enfim, deixe aqui sua estrelinha e até o capítulo que vem 💕
©︎DEVILEVIE, 2022.
────── evie.
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