𝐗𝐕 ┇ a revolução em felimate.
─── CAPÍTULO QUINZE
a revolução em felimate.
VER TERRA FIRME DEPOIS de tanto tempo em alto mar deixou toda a tripulação ansiosa: comandos sobre retirada de botes, posicionamento de cordas e velas eram gritados de todas as direções, e havia uma correria caótica que só fazia sentido para os marinheiros.
Na proa, Caspian usava uma luneta de bronze para enxergar as Ilhas, acompanhado por Edmundo e lorde Drinian. De toda a área que ele tinha conseguido avistar da Ilha Felimate, a maior das Ilhas Solitárias, não havia encontrado sequer um sinal de vida.
Era por isso que sua maior esperança era Eris, que havia se transformado em uma águia para sobrevoar o arquipélago, e naquele momento retornava ao navio.
O trio abriu espaço para a feiticeira voltar para a forma humana, e ela se transformou ainda no ar, pousando graciosamente sobre o chão de madeira e arrancando um suspiro admirado de lorde Drinian, que parecia sempre se surpreender ao vê-la se transformando — ele não dormiria à noite pensando em seus poderes, se tivesse a conhecido durante a guerra contra Telmar, quando ela se transformava com o dobro da frequência e realizava feitos muito mais espantosos.
— O lugar está vazio, mas com sinais de civilização. — ela começou, enquanto Ed a observava admirado, percebendo que aquela transformação não lhe arrancara sequer uma respiração ofegante. — Tenho certeza de que havia pessoas por lá, mas parecem ter deixado as ruas de última hora. Não consegui sobrevoar o pátio mais a sul da aldeia de Felimate, por causa de aves maiores do que eu, mas ao longe vi sinais de movimentação. Se quisermos descobrir o que está acontecendo, é para lá que precisamos ir.
— Você viu algum estandarte de Nárnia por lá? — questionou Caspian, que havia passado sua luneta para Edmundo. — Não conseguir ver nenhum pela luneta.
Eris negou com a cabeça: — Não há estandartes ou bandeiras de reino algum.
— Mas as Ilhas Solitárias sempre pertenceram a Nárnia. — disse Ed.
— Sim. Parece suspeito. — Caspian falou, ainda encarando o horizonte.
— Acho melhor desembarcarmos agora. — Emundo anunciou. Ele se virou para o capitão: — Drinian?
O lorde hesitou, antes de comentar: — Sinto muito, majestade, mas a cadeia de comando começa pelo rei Caspian e a rainha Eris neste navio.
— Mais pela rainha Eris do que eu, na verdade... — brincou Caspian, ao perceber que o amigo havia ficado constrangido.
— Tudo bem. — Ed disse, dando de ombros. — O que faremos, então?
Os dois novos soberanos se entreolharam, como se estivessem tentando escolher quem daria as ordens, e a feiticeira acenou com o queixo para o rei, como se estivesse lhe cedendo a vez.
— Certo, vamos usar os botes. — disse Caspian. — Lorde Drinian, pegue alguns homens e vá até a praia.
— Sim, majestade.
— Travos! — Caspian chamou o minotauro, que, já acostumado com a rotina de desembarcação, começou a gritar ordens para os marujos.
O rei e a feiticeira começaram a dar suas próprias instruções para alguns marinheiros também, e Edmundo ficou impressionado com a forma como agiam como uma só pessoa: as ordens de Caspian pareciam complementar as de Eris, e vice-versa.
Em poucos minutos, dois botes a remo aportavam na Ilha Felimate, com mais de uma dúzia de marinheiros, além dos reis, rainhas e seu indesejado acompanhante, Eustáquio, que, surpreendentemente, havia ido a convite de Eris.
Ripchip era quem mais parecia animado com a nova aventura.
— À frente! — gritava o rato, quando os botes aportaram no porto. — A emoção do desconhecido nos espera!
— Não poderiam ter esperado até amanhã? — questionou Eustáquio, emburrado, enquanto seus primos saiam do bote.
— Não há honra em dar as costas à aventura. — Ripchip disse, recebendo uma careta do menino.
Caspian, que já estava em terra firme, estendeu a mão para ajudar Eris a sair do bote, e permaneceu a segurando quando a mesma se pôs ao seu lado. Pareciam exatamente o casal de navegadores que no futuro seriam eternizados pelas lendas: Eris, com sua espada afiada presa ao cinto, Caspian, com a balestra pendurada nas costas.
O grupo começou a subir o porto por uma rampa de pedra, e a artesã abriu uma expressão intrigada.
— O que foi? — Caspian questionou.
— Há algo de errado com esta ilha. — disse ela. — Minha intuição está me dizendo para tomarmos cuidado.
Lúcia concordou: — Escuta só... Não há barulho nenhum. Cadê todo mundo?
Ninguém soube o que responder, a tensão crescendo entre todos.
Na ausência de respostas, Ripchip se virou para Eustáquio, esticando sua pata para ajudá-lo a sair do bote.
— Me dê logo essa mão, rapazinho. — disse o rato, impaciente.
— Eu consigo sair sozinho! — o menino retrucou, orgulhoso, tentando sair do bote, antes de se desequilibrar e cair de cara no chão.
— E é parente de vocês mesmo? — Caspian perguntou, arrancando uma risada anasalada de Edmundo, e um suspiro de advertência de Eris.
O grupo seguiu pela rampa, que levava a um pátio vazio, com visão para casas e mirantes da Ilha Felimate. Eris estava correta quando dissera que havia sinais de civilização: puderam ver uma carroça abandonada, vasos de barro enfileirados em um muro, sacos de grãos... Tudo abandonado, como se quem por lá vivesse tivesse deixado tudo de última hora.
Havia uma ladeira que levava às construções mais altas, e o grupo começou a subi-la, até que, de repente, o badalar de sinos ressoou pela ilha, assustando a todos.
Caspian e Eris soltaram suas mãos, ambos retirando suas armas ao mesmo tempo, como se fizessem aquilo todos os dias: a feiticeira segurou sua espada de prata com as duas mãos, enquanto o humano segurou sua balestra diante do rosto, pronto para mirar em qualquer ameaça que surgisse.
— Ripchip — Caspian chamou. —, fique aqui com os homens de Drinian e proteja o lugar. Vamos subir. Se não retornarmos até o amanhecer, mande nos procurar.
— Sim, majestade. — respondeu o roedor, e o grupo começou a subir.
Chegaram até o pátio de uma aldeia, Caspian, Ed e Lúcia indo mais à frente, enquanto Eris ficou para trás, para vigiar Eustáquio. Tinha medo que o menino fugisse para longe do grupo, esperando conseguir contatar o tal Consulado Britânico.
O lugar era como a entrada do porto: tinha carroças abandonadas, vasos e sacos de comida e outros objetos de valor deixados para trás. Eris sentiu um arrepio subindo pela espinha: aquele lugar não parecia abandonado. Se as pessoas estivessem fugindo de alguma ameaça, deveriam ao menos ter levado a comida. Parecia mais como se estivessem se escondendo.
Ela viu Eustáquio se aproximando das janelas de uma das casas, cuja uma das tábuas estava solta, dando visão para o seu interior. Ele olhou através da abertura e deu um pulo para trás, assustado.
— É! — exclamou ele, alto. — Parece tudo abandonado! Já podemos voltar?
A artesã arqueou a sobrancelha: — Tem certeza?
— Claro! Porque eu mentiria? — Eustáquio questionou, nervoso.
— Eu não disse que você estava mentindo. — retrucou ela, antes de lançar um olhar para o trio mais à frente, que havia parado em frente às duas grandes portas de ferro de uma construção tão decadente que lhes parecia abandonada, a qual supunham ser a fonte do badalar dos sinos.
Observando o primo, Edmundo disse, hesitante: — Você quer ficar aqui vigiando alguma coisa? Ou ajudar?
— Boa ideia, primo! Ficarei vigiando. — o menino disse, correndo para se aproximar do grupo. Eris logo o alcançou também. — É bem... Lógico.
Caspian se aproximou de Eustáquio e a rainha, o encarando um tanto desconfiado, antes de puxar um punhal preso em seu cinto e entregá-lo ao menino, para ele usar para se proteger.
— Deixa comigo, pode deixar. — disse o menino, e mal era possível saber se ele estava nervoso ou entusiasmado. Talvez os dois. — Eu ficarei aqui com o seu... Artefato.
— Vamos. — Caspian disse a Eris, e a rainha lançou um último olhar para Eustáquio, antes de seguir o trio para o interior da construção.
A artesã se arrependeu assim que entrou: aquele lugar fedia à ferrugem.
Havia dezenas de sinos de ferro pendurados no teto, com cordas que tocavam o chão, além daquelas duas portas enormes feitas do mesmo material. Eris conseguia sentir sua magia se recolhendo para dentro de si e, pela primeira vez na vida, ela entendeu na prática sobre o paradoxo que envolvia o poder dos artesãos.
A parte mais incomodadora nem era aquela, entretanto. Eram as enormes estátuas de homens vestidos com túnicas, esculpidos em pedra clara, posicionadas ao longo do salão formando um corredor. Cada uma das estátuas havia sido esculpida sem nada acima do pescoço: elas tinham os braços estendidos à frente do corpo, segurando suas cabeças perdidas, todas coroadas.
— Tem certeza que não querem ir embora mesmo? — Eustáquio perguntou da porta, sua voz ressoando por todo o salão, e Eris quase concordou com o menino.
No centro da sala havia uma mesa, com um grande caderno sobre ela. Logo o grupo se aproximou para ver o que era, e Edmundo usou sua lanterna para iluminar as páginas.
Eram nomes, centenas deles. A maioria deles estava riscado, com um número anotado bem à frente.
— Quem são essas pessoas? — perguntou Lúcia, ao observar os nomes.
Edmundo encarou o caderno, curioso: — Por que riscaram os nomes?
— E veja só esses números. — Lúcia continuou. — Parece algum tipo de tarifa.
— Mercadores de escravos. — Caspian se deu conta.
Foi quando o som de gritos se misturou ao súbito badalar de sinos: havia homens descendo pelas cordas dos sinos, todos prontos para o ataque.
Mercadores de escravos atacando inocentes deveria ser a coisa mais horrenda da qual Eris ouvira falar, mas ela tinha que lhes dar o crédito pela emboscada. O ataque foi tão surpreendente que o grupo demorou segundos preciosos para conseguir agir. A feiticeira ficou tão desorientada que sequer conseguia pensar em algum animal para se transformar — e nem precisaria, uma vez que não conseguiria.
Ao seu lado, Caspian posicionou sua balestra a atirou contra um homem que ainda descia a corda de um sino, e então em outro que já estava sobre o solo. Aquilo acordou Eris para a vida: uma vez que suas habilidades como artesã pareciam estar tímidas, ela sacou sua espada e avançou contra um homem que ia na direção de Lúcia.
Ela desferiu sua espada contra o oponente, antes de chutá-lo no peito com força, derrubando-o e partindo para a próxima.
Tentou desferir um golpe contra um homem mais jovem, que desviou com facilidade e levou sua lâmina com tudo na direção do pescoço da artesã. Ela teve apenas um segundo para se abaixar, a espada do inimigo quase tocando os fios do topo de sua cabeça. Aproveitou sua posição para dar uma rasteira eficiente no homem, que grunhiu ao cair no chão.
Assim que se pôs de pé, Eris ouviu um grito alto e assustado, e se virou para a direção das portas, apenas para ver um homem de roupas luxuosas com a adaga que Caspian havia entregue a Eustáquio no pescoço do próprio menino.
Tranquilo, o homem fechou as portas de ferro, e disse: — Se não quiserem ver este aqui gritar como uma garotinha novamente, eu sugiro que entreguem as armas.
Eustáquio tentou falar alguma coisa, mas o homem apertou seu ombro com força, e ele se calou. Ninguém percebeu os poucos passos que Eris deu na direção de Caspian, os dois ficando quase lado a lado.
— Vamos! Ponham-nas no chão. — o homem ordenou, ameaçador, e, contra a própria vontade, cada um dos reis e rainhas soltaram suas espadas. — Ótimo! Homens, algemem todos eles.
O corpo de Eris congelou, se lembrando de anos atrás, quando ela havia sido algemada por lorde Sopespian antes da Batalha de Beruna. Tinha certeza que daquela vez Aslam não se juntaria a ela para assoprar suas algemas e libertá-la.
— Se transforma! — Caspian gritou para Eris, quando os homens começaram a se aproximar com as algemas. O rapaz mal resistiu, concentrado na segurança da noiva.
A artesã tentou se transformar, sua imagem se distorcendo como sempre acontecia, mas permanecendo na forma humana, sem nenhum resultado.
— Não consigo! — devolveu ela. — Há muito ferro aqui.
Então o homem jovem que havia sido derrubado por Eris durante o duelo se aproximou dela, segurando seus pulsos para algemá-la, e ela puxou seus braços para longe, pronta para atacá-lo. Foi quando outro homem se aproximou por trás, agarrando-a e impedindo que ela se movesse.
— Tire suas mãos de mim! — gritou a artesã, se contorcendo para sair do aperto daqueles homens desprezíveis.
— Ah, querida. — começou o mais jovem, fechando as algemas ao redor dos pulsos de Eris. — Eu não tiraria mesmo se meu chefe mandasse.
A feiticeira juntou toda a saliva em sua boca e cuspiu no inimigo, e o olhar que ele lhe lançou ao limpar o rosto fez com que ela sentisse uma pontada de arrependimento.
— Deveríamos colocá-la em um dos barcos para a Névoa, Governador Gumpas! — disse o homem, e seu tom era mais ameaçador do que Eris esperava, por mais que não soubesse o que era a Névoa.
— Não comece, Julian. — disse o homem que segurava a adaga contra Eustáquio, Gumpas. — Ela é bonita demais para isso. Dará um bom dinheiro. Vamos enviar ela e as duas crianças para o mercado, e os outros dois para a masmorra.
Eris logo se deu conta de que aquele homem deveria ser o Mercador de Escravos. Se vestia com luxo porque provavelmente tinha mais dinheiro do que todos os outros, e liderava aqueles homens. Imediatamente a artesã criou um desprezo especial por ele.
— Soltem ela! — gritou Caspian. — Soltem todos eles, seus tolos insolentes! Eu sou o seu rei!
— E eu sou a Rainha Bruxa de Nárnia. — brincou Julian, arrancando risadas dos outros homens, e ele mal podia imaginar que estava mais perto daquela rainha do que qualquer um. E que havia despertado sua ira de uma forma que não acontecia há anos.
A artesã se contorceu para escapar novamente, e recebeu um tapa tão forte de um dos mercadores que estava próximo dela que teria caído, se aquele maldito Julian não a estivesse segurando pelo braço.
Tanto Caspian quanto Ed pareciam prestes a explodir de raiva ao observar a cena, ambos tentando se aproximar da feiticeira, sendo impedidos pelos mercadores que os seguravam.
— Vocês vão pagar caro por isso! — berrou Edmundo.
— Na verdade, outra pessoa vai pagar. — disse o Mercador. — Por todos vocês.
Então ele fez um sinal de cabeça para seus homens, que logo começaram a arrastar Eris, Eustáquio e Lúcia para fora da construção.
— Eris! — gritou Caspian, ao mesmo tempo que Edmundo gritava por sua irmã.
— Caspian! — a feiticeira gritou de volta, antes de conseguirem tirá-la do salão, fechando as portas diante de si.
Logo os homens de Gumpas acorrentaram o pescoço de cada um dos três, antes de jogarem-nos em uma carroça. Com as mãos acorrentadas, Eris passou os braços com dificuldade sobre a cabeça de Lúcia, envolvendo seus ombros em um abraço.
— Vai ficar tudo bem. — sussurrou ela para a garota. — Aposto que os outros perceberão o que aconteceu e nos salvarão.
A Pevensie parecia estar lutando contra as lágrimas, sua cabeça escondida no pescoço da feiticeira, enquanto a carroça os levava para longe de Caspian e Edmundo, até chegarem no que devia ser o mercado central da ilha, onde dezenas de pessoas estavam acorrentadas a paredes, tristemente esperando pela hora em que seriam compradas.
Eris não se contorceu quando um mercador se aproximou para acorrentar o metal de seu pescoço à parede, com medo de que a separassem de Eustáquio e Lúcia se ela fosse rebelde, e mal conseguiu dormir quando a noite chegou, preocupada com o destino de Ed e Caspian e envergonhada por ter sido tão inútil naquele conflito.
— Eris? — Lúcia a chamou no meio da noite.
— Estou acordada. — a jovem rainha disse.
— Por que você não se transformou? — questionou a garota. — Você não estava acorrentada quando teve a chance.
Eris suspirou: — Havia muito ferro naquela sala. Quanto mais poderoso um artesão se torna, mais sensível ao ferro ele fica. Eu poderia transformar a aparência de Edmundo, você, Caspian e eu ao mesmo tempo sem ficar cansada, e mesmo assim, ficar cercada por tanto ferro deixa minha magia confusa.
— Sinto muito. — disse Lúcia. — Deve ter sido horrível.
— Não foi o meu melhor momento, mas pelo menos estou aqui com você e seu primo agora, e os protegerei. — Eris disse, tentando tranquilizá-la. — Não sei o que farei ainda, mas posso garantir que eu adquiro o dobro da minha força quando estou com raiva, e que estou irada agora.
A Pevensie levou sua mão até a da artesã, o barulho de suas correntes reverberando pelo silêncio da noite, e minutos depois ambas dormiam, encolhidas de frio.
Poucas horas mais tarde, as duas acordaram com som de movimentação. Dezenas de homens se aproximavam do mercado, prontos para comprarem escravos como se fosse nada demais.
Logo um grupo de escravos foi solto das paredes e jogado sobre uma carroça, e um homem — que não parecia ser escravo — gritou por sua esposa, acompanhado por sua filha.
Eris se virou para o fauno que estava acorrentado ao seu lado: — O que está acontecendo?
— Estão levando estes para a Névoa Verde. — respondeu ele, sua voz parecendo absolutamente sem vida, o olhar cansado. — Não vão voltar.
— Névoa Verde? — questionou Eris, se lembrando do que Julian havia dito, no dia anterior.
— Sim. Ninguém sabe exatamente do que se trata. É uma névoa feita de maldade pura, que surge sobre o mar e engole tudo o que está em seu caminho. Acreditam que precisamos sacrificar pessoas para que a Névoa não engula a ilha. Então os mercadores enviam alguns dos ilhéus para o sacrifício.
O coração de Eris pesou só de observar a cena, mas antes que ela pudesse pensar em qualquer coisa, uma dupla de mercadores se aproximou, desacorrentando Lúcia da parede e a agarrando pelo braço.
— O que farão com ela? — perguntou Eris, tentando se agarrar ao tecido da calça da menina, que foi posta para mais longe dela.
— Não se preocupe. — disse um dos homens, parecendo se divertir pelo seu desespero. — Logo será a sua vez.
Então a pobre garota foi levada para uma espécie de palco, onde o Governador Gumpas estava sentado sobre uma cadeira dourada e luxuosa, como se fosse seu trono, acompanhado por seu braço-direito, um homem conhecido como Pug, que vestia roupas douradas e joias chamativas.
Eris tentou se aproximar de Eustáquio enquanto o evento acontecia, tocando o braço do garoto com uma espécie de carinho maternal, as mãos ainda acorrentadas, como se tentasse tranquilizá-lo. O garoto não tentou afastá-la, mas não a olhou nos olhos.
— Vamos começar o leilão com a nossa mais nova aquisição. — no palco o Governador começou. — Esta é jovem e forte, como vocês podem ver. Com certeza aprende rápido. Poderá lavar, cozinhar, arrumar a casa... Uma aquisição e tanto. Então, quem começa?
— Eu dou sessenta! — disse um dos compradores.
— Eu dou oitenta!
— Eu dou cem pela mocinha!
— Eu dou cento e vinte!
— Eu dou cento e cinquenta!
— Mais algum lance? — perguntou Pug. Ninguém disse mais nada, e o homem acenou com a cabeça, satisfeito. — Vendida!
Então ele pôs uma placa de "vendida" ao redor do pescoço da garota, e a entregou para um dos mercadores, que ficaria vigiando-a até o fim do leilão.
— Se esta menina os agradou, vocês precisam ver a que veio com ela! — disse Gumpas, enquanto Eris era separada de Eustáquio e levada até o palco.
Ela se contorceu no caminho, batendo sua cabeça contra a de um homem e chutando outro, até que um terceiro conseguiu bater na jovem com o cabo de sua espada, a deixando tonta, e, quando a rainha se deu conta, ela estava sobre o palco, seu braço sendo segurado com força por Pug.
— Linda, não é? É um pouco selvagem, eu admito, mas será uma experiência divertida domá-la. — o Governador brincou, arrancando risos dos homens ao seu redor, e Eris se perguntou se conseguiria cuspir no rosto daquele homem como cuspira no de Julian.
Uma dor de cabeça latejante atingiu a feiticeira, a raiva que crescia em seu peito se tornando quase sufocante.
— Recomendo que, caso me comprem, mantenham a corrente. — ela não se conteve. — Porque só os deuses sabem o que eu farei se conseguir me soltar.
— Pago cem! — um comprador disse, enquanto os outros gargalhavam, entretidos pela ira da jovem.
— Cem? — Gumpas reclamou. — Por favor, ela é bonita demais para começar por este preço. E foi difícil capturá-la. Tivemos que apagar um rapaz para que ele não corresse atrás dela, foi tudo muito cansativo... — Caspian, pensou Eris imediatamente. Será que Ed e ele estavam feridos? E se tivesse sido mandados para a Névoa? — Mas pelo menos prova o quanto ela é encantadora, certo? Começaremos por no mínimo cento e trinta.
— Eu pago cento e cinquenta! — gritou um homem, no fundo da plateia. — Ela cozinha?
— Apenas se você quiser morrer envenenado. — respondeu Eris.
Os compradores riram ainda mais, e a artesã se deu conta de que era quase impossível um homem reconhecer uma mulher como um perigo.
— Vou prendê-la em um jaula e a deixarei falando para me divertir. — um homem comentou. — Pago cento e oitenta.
— Eu pago duzentos!
— Duzentos e trinta aqui!
— Duzentos e cinquenta! — gritou um homem com um capuz azul que ocultava seu rosto, e Eris tinha certeza que conhecia aquela voz.
— Vendida! — Gumpas gritou, antes que o homem pudesse voltar atrás. Ninguém mais pagaria tanto por uma jovem perigosa e mal humorada como aquela, pensou ele.
Logo colocaram a mesma placa de "vendida" em Eris, e ela foi colocada ao lado de Lúcia, que logo segurou sua mão, parecendo amedrontada.
— Não se preocupe. — Eris sussurrou para que apenas a menina pudesse ouvir. — Tenho quase certeza de que nossos amigos já estão entre nós.
Antes que Lúcia pudesse perguntar alguma coisa, Eustáquio foi levado até o palco, atraindo a atenção das duas.
— Agora, temos este belo espécime! — comentou Pug. — Quem vai abrir o leilão?
Os homens se entreolharam, pouco convencidos, enquanto Eustáquio olhava ao seu redor, sem saber o que fazer.
— Entusiasmo! — incentivou Pug. — Ele é magricela, mas é bem fortinho!
— Este aí pode ser forte, mas fede como o traseiro de um minotauro! — brincou um dos compradores, arrancando risadas do restante.
— Mas isto é uma mentira absurda! — reclamou Eustáquio, ofendido. — Eu ganhei o prêmio de higiene escolar dois anos seguidos!
Os homens gargalharam novamente, e, se Eris percebeu mais homens de capuz se espalhando pelo mercado, cobrindo todas as saídas. Se tivesse olhado para cima, também teria visto dois guardas do Mercador guiando Caspian e Edmundo para fora das masmorras, através das escadarias ao alto.
— Deem um lance logo! — exclamou Governador Gumpas, impaciente.
O homem que havia comprado Eris deu um passo à frente, e disse: — Eu te alivio desta carga. Eu te alivio de toda esta carga!
Então ele abaixou o capuz, revelando o rosto de lorde Drinian, com Ripchip sobre seu ombro.
— Por Nárnia! — gritou um homem ao lado de Drinian, e outros repetiram, tirando suas capas e capuzes, revelando quem eram: a corajosa tripulação do peregrino da Alvorada. Empunhando suas espadas, eles logo atacaram os compradores e senhores de escravos.
Eris aproveitou a surpresa para se jogar contra o mercador que vigiava Lúcia e ela, e mesmo com a dificuldade imposta pelas correntes em suas mãos, a narniana conseguiu bater a cabeça do homem contra o chão, deixando-o inconsciente.
Em questão de minutos o Mercado de Escravos de Felimate se tornou um campo de batalha. Até mesmo os moradores, que se escondiam a maior parte do tempo para não serem pegos pelos mercadores ou enviados para a Névoa se juntaram à tripulação do Peregrino da Alvorada, jogando pedras e vasos de barro contra os mercadores.
— Drinian! — Eris gritou para o capitão, quando este se aproximou dela, junto a Ripchip. A jovem rainha estendeu os braços para o lorde, que, em um golpe de espada, conseguiu quebrar suas algemas, libertando-a.
A artesã jogou as correntes para longe dela, sentindo sua magia se restabelecer em seu corpo, e suspirou, aliviada, antes de se virar para o primeiro mercador de escravos que apareceu em sua frente, se transformando em uma águia imensa e o atacando no rosto, até que ele estivesse caído no chão, a pele toda arranhada.
Voltou para a forma humana e roubou a espada do inimigo, lutando contra um, dois e então três mercadores, até que o último também foi parar no chão. Então se transformou em um medonho enxame de abelhas, atacando mais dois mercadores de uma vez. Quando terminou, assumiu sua forma original ofegante, e conseguiu ver Edmundo e Caspian se juntando ao ataque. Sorriu, aliviada por saber que os dois estavam bem.
Teria corrido até eles, se não tivesse encontrado Julian no caminho.
— Ei, querido! — gritou ela, chamando-o pelo mesmo apelido que ele havia a chamado no dia anterior. O homem congelou no lugar ao ver a ira em seus olhos e a forma hábil como segurava sua espada. Não parecia a jovem abalada que ele sequestrara na sala dos sinos. — Tenho uma péssima notícia para você: você não é a Rainha Bruxa de Nárnia. Eu sou!
Então, com um gesto de mão, a artesã o transformou em um besouro de casca negra, pequeno e indefeso, que saiu voando desajeitado para longe dali. Eris nem sentiu culpa: em uma semana, quando ela se esquecesse daquele feitiço e concentrasse sua magia em coisas mais importantes, ele voltaria para sua forma humana, encontrando centenas de ilhéus furiosos por seus anos de serviço como mercador.
Em poucos minutos aquele curto episódio, que anos mais tarde seria chamado pelos historiadores de Revolução em Felimate, chegou ao fim, e Eris correu para encontrar seus amigos na entrada do mercado.
— Eris! — Caspian gritou assim que a viu, a abraçando-a com força. Ele se afastou apenas para checar sua aparência: tinha alguns arranhões no rosto e braços, mas não parecia ferida. — Está bem?
A narniana assentiu: — Sim. E você? E Ed, pobrezinho? Temi que tivessem ferido vocês dois nas masmorras.
— Estamos bem. Ficamos preso nas masmorras com lorde Bern.
— Lorde Bern? Um dos sete lordes perdidos? — questionou Eris, enquanto Edmundo, Lúcia e Drinian se aproximavam do casal, uma procissão de ilhéus satisfeitos os seguindo pelo caminho.
— Sim. Depois te explico tudo. — revelou Caspian, segurando a mão da noiva enquanto todo o grupo se dirigia para o porto, onde os botes do Peregrino da Alvorada haviam aportado. A jovem apertou o ombro de Edmundo, sinalizando que estava contente em vê-lo bem, e o amigo lhe concedeu um sorriso doce.
Quando se aproximavam do porto, um homem apareceu, gritando por Caspian.
— Majestade! — gritou ele, enquanto Drinian o segurava, impedindo-o de chegar até o rapaz. Caspian fez um gesto para o capitão, que soltou o homem. — Majestade, minha esposa foi levada esta manhã. Eu imploro que me leve, por favor.
Antes que Caspian pudesse respondê-lo, uma menina, talvez dois anos mais nova que Lúcia, apareceu, agarrando o homem pela manga da blusa.
— Papai! Por favor, não me deixe! Eu quero ir!
O homem nem encarou a menina nos olhos, antes de afastá-la com o braço: — Gael, vá com a sua tia. — ele se virou para Caspian. — Majestade, meu nome é Rhince. Sou um bom marinheiro! Passei quase minha vida inteira no mar. Posso ajudá-lo.
O rei assentiu com a cabeça: — É claro. Venha conosco.
— Obrigado! — exclamou o homem, e sua filha, Gael, se aproximou novamente.
— Mas papai — começou ela, seus olhos cheios de lágrimas. —, e eu?
O pai a segurou nos ombros: — Eu já deixei de voltar para você? — questionou, e a menina negou com a cabeça. — Então não será diferente desta vez. Seja boazinha com a sua tia, e eu voltarei logo logo.
Aquilo encheu Eris de raiva. Como aquele homem poderia largar a própria filha como um brinquedo e esperar que ela continuasse no mesmo lugar quando ele voltasse? Nem havia se despedido dela direito.
Ela vai ficar bem melhor com a tia do que com o pai, pensou a artesã, irritada, antes de voltar sua atenção para Caspian, que conversava com Edmundo e Drinian, até eles começarem a descer a rampa de pedra que os levaria até o porto, encontrando Lorde Bern à sua espera.
— Meu rei! — o velho chamou pelo rapaz, que logo se aproximou, com Ed e Lúcia o alcançando. — Recebi esta espada do seu pai. A escondi em segurança em uma caverna durante todos estes anos.
Edmundo parecia surpreso: — É uma espada narniana antiga.
O lorde confirmou: — É da Idade do Ouro de Nárnia... Existem sete espadas como esta. São presentes de Aslam para proteger Nárnia. — ele encarou Caspian. — Seu pai a confiou a nós. Pegue.
Ele estendeu a espada, que estava coberta por uma crosta de pedras que cobria seu cabo e lâmina.
— Que ela o proteja. — disse o lorde, quando o Grande Rei a aceitou. Todos os ilhéus que observavam a cena bateram palmas.
— Obrigada, milorde. Vamos achar seus cidadãos perdidos. — prometeu Caspian, antes de se virar para Eris, mostrando-lhe a espada.
Lorde Bern observou a rainha com atenção, abrindo um sorriso gentil:
— Imagino que esta seja a sua tão falada noiva, majestade.
Caspian acenou com a cabeça, com um sorriso surpreendentemente tímido: — Sim, ela mesma.
— É tão bela quanto você me contou. — elogiou o lorde. — A majestade tem sorte de ter alguém que se preocupe tanto com você.
Eris sorriu.
— Estou ciente disso, milorde. Há algo que possamos fazer pelo senhor?
— Nada, minha querida. — disse o lorde, com um sorriso tranquilo. — Já me deram a liberdade. Façam uma boa viagem.
A rainha assentiu.
— Espero poder reencontrá-lo quando voltar para cá, Lorde Bern. Conto com a sua ajuda para manter esta ilha em ordem. — ela disse, e o homem assentiu para a jovem, fazendo uma profunda reverência, antes de Eris se juntar a Edmundo, para quem Caspian entregou a espada do lorde.
O amigo sorriu para o casal, e logo todos eles estavam de volta ao navio, junto à corajosa tripulação que havia salvado suas vidas.
Naquela noite, todos comemoraram o resgate de seus soberanos e a liberdade da Ilha Felimate cantando canções de marinheiros sobre sereias, lutas de espadas e bebidas fortes. Eris cantou junto à tripulação e dançou com metade do navio, incluindo Caspian, Edmundo, Drinian e Lúcia.
Mesmo assim, seu coração estava em outro lugar.
©︎DEVILEVIE, 2021.
────── evie.
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