IX
- E agora?
A pergunta saiu de Henry em um fio de voz. Com a nuca apoiada contra o encosto de concreto de um banco da praça, as mãos cruzadas acima da barriga e as pernas esticados à frente do corpo, o Hart tentava encontrar uma lógica em meio ao redemoinho de informações que haviam recebido de Eta. Ao seu lado Charlotte imitava sua posição, mal se mexendo desde que saíram da Caverna Man. Eta havia ficado dormindo, assim como Alia, as duas sendo vigiadas por Schowz e Ray enquanto os dois tiravam um instante para pensar calmamente.
- Eu não sei. - a resposta veio carregada de resignação.
Charlotte torceu o nariz quando escutou as risadas suaves vindas do seu amigo, girando o pescoço para encontrá-lo tentando segurar uma gargalhada. O observou incrédula, o que o provocou uma alta gargalhada que fez o seu corpo tremer. Os lábios da Page começaram a trêmular; desconcertada, Charlotte levou uma mão à boca, mas logo não conseguiu segurar mais e se juntou às risadas de Henry. Com o corpo inclinado na direção do outro, os dois riram até suas barrigas doerem e lágrimas se acumularem em seus olhos. Porém, as lágrimas de Charlotte se tornaram mais presentes em gotas grossas que molhavam seu rosto em contínuo.
Henry a puxou para os seus braços, o alívio do riso dando lugar às próprias lágrimas silenciosas. E assim, abraçados em um banco de praça em uma noite nublada, o casal de amigos chorou de cansaço, cada qual perdido em seus próprios pensamentos enquanto buscavam conforto no abraço conhecido. O tempo passou devagar, suas respirações sendo controladas aos poucos e os corações desacelerando em meio às respirações ritmadas. Charlotte se afastou o suficiente para encarar o Hart, observando os olhos castanhos iluminados pelas lágrimas derramadas.
- Eu não quero brigar, Hen.
- Também não é o ponto alto do meu dia discutir com você. - confessou, beijando sua testa antes de puxá-la novamente para os seus braços.
- Precisamos levar essas crianças para casa. - declarou em tom baixo, envolvendo um braço que a apertava com os seus. - Sinto que algo terrível pode acontecer com elas.
Henry respirou fundo, fechando os olhos enquanto era envolvido pelo perfume floral de Charlotte, tentando buscar forças enquanto proferia angustiado:
- Ou com todos nós.
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Eta rolou de bruços, apoiando o queixo nos braços cruzados acima do travesseiro. Analisou todas as irregularidades da parede à sua frente a fim de evitar se perder no buraco negro de angústia que se encontrava alojado em seu peito. Não sabia mais o que fazer ou falar. Não possuía ideia alguma do motivo do homem não tão misterioso odiar a sua família ou para quê ele queria tanto Alia. Ela só queria ir para casa.
- Oi.
Assustou-se com a voz, rolando rapidamente e encontrando parada à porta a última pessoa que queria ver naquele momento. Sentou-se desconfortavelmente, abraçando os joelhos e encarando a parede do outro lado do quarto.
- Hum. - murmurou em reconhecimento, notando pelo canto do olho a maneira como a outra garota se movimentava. - Oi. - forçou a saudação a sair por seu lábios, sentindo o corpo tenso quando a viu dar alguns passos para dentro do ambiente.
- Como você está?
- Por que você se importa?
A pergunta saiu rápida e áspera, não era o planejado e viu como Piper estreitou os olhos em irritação. Poderia se desculpar, sua mãe não a havia criado daquela maneira, mas estava cansada de mais para conseguir controlar sua língua. Piper respirou fundo e tentou abrir um sorriso educado, porém, era visível o esforço que ela estava fazendo para se manter calma.
- Olha, garota, você é a minha sobrinha. Ou vai ser no futuro. É estranho porque temos quase a mesma idade. - apontou, torcendo o nariz enquanto dava de ombros. - Mas o que estou dizendo é que estou aqui para ver como você está, mas então sou recebida com essa atitude desnecessária.
Eta não queria discutir, ela detestava brigas e discussões. Então forçou a pior parte da sua personalidade a permanecer no fundo e perguntou em um tom controlado:
- O que você quer que eu faça?
- Seja mais educada? - declarou como se fosse óbvio. - Você é filha da Charlotte, caramba.
- Meu pai é Henry Hart.
- Isso explica muita coisa.
Piper declarou, olhando ao redor do cômodo quase vazio. Eta seguia seus movimentos quase que inconscientemente, analisando cada ação da mais velha, desde o franzir da testa ao cruzar dos dedos na mão direita. A atmosfera parecia se condensar aos poucos, dificultando a respiração de Eta e a indiferença de Piper. Por fim, a mais velha retornou o olhar para ela, girando os ombros para trás e afirmando um tanto entediada:
- Sei que ainda não fomos apresentadas nesse tempo, mas me senti um pouquinho mal por não ter olhado para você direito.
"E você é capaz disso? De se sentir mal por alguém?"
O pensamento veio súbito e amargo e Eta se forçou a disfarçar sua reação.
- Hum.
Piper tombou a cabeça para trás, bufando em frustração.
- Você é muito difícil.
- Como se você fosse fácil. - resmungou, levantando-se rapidamente, sentia uma energia incontrolável dominar seu corpo a impedindo de permanecer parada.
Piper deu dois passos em direção à porta, girando no lugar para ficar novamente de frente para ela.
- Não, não sou, mas também não trato as pessoas mal por diversão. - a loira estalou a língua resignada quando viu a expressão de descrença da mais nova. Baixando o olhar para as unhas pintadas de preto, confessou de forma um tanto blasé. - Tá legal, talvez eu faça, mas seja melhor que isso.
- Melhor do que você? - Eta não conseguiu controlar, franzindo os lábios quando teve a atenção completa dela.
A mais velha a encarou longamente, a boca torcida como se estivesse experimentando algo com um gosto terrível.
- Tente.
O murmúrio veio com calma, mas logo a reposta de Eta dispensou toda a futura tranquilidade que poderia surgir.
- Não é impossível, você sabe.
- Você é horrível.
- Não sou!
Eta encarava a adolescente em um misto de raiva, frustração e mágoa. Como ela não poderia estar percebendo que havia algo errado? Por que ela continuava a irritando? Ela só queria que Piper voltasse para onde estava, longe dela e do seu coração.
- O que eu fiz para você?
- Nada.
A risada seca que saiu da Hart fez a mais nova dar um passo para trás, cruzando os braços em frente ao corpo como se para se proteger das palavras futuras.
- Você olha pra mim como se eu tivesse matado o seu peixinho dourado. Eu fiz isso no futuro? Por que com toda a certeza foi sem querer.
Eta não respondeu, apenas virou o rosto para longe, sua mente girando em círculos de frases não ditas e inundada por sentimentos que procurava bloquear. Mas o som de desdém que saiu de dentro dela percorreu um longo caminho para que ela o impedisse.
- Viu?! Você fez de novo! - Piper apontou para ela, levando em seguida as mãos aos fios curtos que agora começavam a ficar desalinhados. - Apenas fale logo o que você quer, garotinha.
- Não me chame assim! - bateu o pé no chão, o que a frustrou ainda mais.
Eta se afastou, retornado para a cama, queria apenas deitar e evitar o confronto, se cobrir com a manta e fingir que Piper não estava ali. Porém, a Hart possuía outros planos.
- Então pare de agir como criança e diga logo.
- Eu sou uma criança! Como você não vê? - sua voz estava embargada e ela se forçou a evitar chorar na frente dela.
- Eu não sou cega, eu sei que você ainda é uma criança, foi por isso que vim ver como você está.
- E por que você se preocupa? Você ao menos é capaz de fazer algo assim?
Piper inclinou o corpo para frente, respirando pesado e cruzando as mãos na nuca. Mas logo endireitou o corpo, o rosto vermelho e os olhos injetados de raiva.
- Olha, até o momento você testou todos os níveis da minha paciência, mas se começar a me atacar eu não vou ficar calada. - praticamente a ameaçou, o tom de voz calmo contrário a toda a visão de seu ser. - Você não tem motivos para isso.
A mais nova sentiu uma pontada forte em seu coração e o peso em seus ombros a fazer tombar levemente.
- Eu tenho todos os motivos do mundo.
- De que merda você está falando?!
Eta se encolheu quando viu a raiva brilhar nos olhos de Piper e deu outro passo para trás em busca de uma distância necessária. A Hart apertou as mãos em punhos, respirando superficialmente como se para controlar seu temperamento. As duas se encaravam com uma teimosia familiar, nenhuma querendo recuar do embate ou desviar o olhar em receio.
- Piper.
O tom fora alto e claro em aviso, o que fez as duas virarem para a porta e encontrarem Ray de braços cruzados, mas a Hart não se rendeu.
- Não! Eu vim aqui na maior boa vontade para saber como ela estava, fiz isso pensando na Charlotte e no Henry. - declarou, retornando o olhar para Eta que estava prestes a perder o controle das lágrimas.
- Piper. - o Manchester tentou novamente, esticando a mão para ela que desviou de seu toque.
- Não, Ray! Ela é quem deveria ser mais educada. - apontou para Eta, avisando irritada enqanto se retirava. - Sua vida está em risco, não afaste quem pode estar te ajudando.
Quando ela sumiu pela porta, Eta sentiu suas pernas perderem a força, levou uma mão ao peito apertado, caindo em um baque sentada na cama. Com os olhos nublados por lágrimas, tentou respirar, porém, não conseguia. Se sentia caindo em um looping de angústia, com o coração a mil ressoando em seus ouvidos, o corpo trêmulo e as lágrimas salgadas escorrendo por seu rosto. Mal sentiu a presença de alguém ao seu lado, apenas fechou os olhos e tentou respirar. Tentou fazer tudo parar, mas não conseguia. Era muito. Estava sendo soterrada em meio a palavras não ditas e sentimentos crus. Inclinou o corpo para frente em busca de um apoio não existente, ela precisava de algo. Precisa de alguém para não desabar. Ela não sabia mais o que fazer.
Nada parecia certo.
Nada nunca pareceu certo.
Não era justo.
Não era justo.
Não...
- Ei. Respire.
A voz soou distante, mas firme. Se forçou a tentar, mas não conseguia.
- Se concentre em mim. - ressoou a voz por perto. - Concentre-se na minha voz.
Era cada vez mais familiar. O toque quente em suas costas, o tom controlado e tranquilo. Eta tentou novamente, inspirando fundo e expirando devagar. Por longos segundos se concentrava apenas no cantarolar ao seu lado e na sequência de sua respiração. Prender o ar em seus pulmões, soltar em alívio, prender e soltar, inspirar e expirar. Aos poucos conseguiu recuperar seu parco controle.
- Eu não quero mais fazer isso, mãe. - afirmou em um fio de voz, a abraçando frouxamente.
- Está tudo bem.
Não estava e se afastou rapidamente, a raiva e a mágoa retornando como uma onda forte, arrastando tudo o que tocava.
- Não, não está! Por que ela fez isso?! Por que ela me deixou? Eu só tinha quatro anos. Eu era tão pequena e ela... ela simplesmente foi embora. - um soluço escapou por seus lábios. - Como fez agora! Como vai fazer pelo resto da vida dela!
- Do que você está falando?
Não precisou olhar para saber quem era, os passos pesados adentrando o quarto eram comparados as batidas do seu coração. Um tum-tum-tum carregado tal qual uma tempestade que iria destruir tudo assim que caísse.
- Piper. - escutou seu pai ao longe, provavelmente tentando impedi-la de falar algo.
- Do que... do que você está falando?
Eta finalmente a encarou quando a escutou hesitar.
- Você me abandonou... Por que você me abandonou?
Apesar das lágrimas que nublavam sua visão, Eta viu o momento em que Piper Hart perdeu o equilíbrio, o instante em que ela procurou apoio na parede atrás de si e foi amparada por seu irmão. Apesar da sua raiva e do ressentimento, Eta sentiu seu coração quebrar em milhares de pedaços após ver a cor sumir do rosto de sua futura genitora. Então se virou para a versão mais nova de sua verdadeira mãe e a abraçou forte, chorando livremente e ignorando a presença daquela que, em um mundo diferente, a deveria estar confortando.
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