ᴸᴼᴼᴷ ᵁᴾ
Oi! Antes de irmos ao capítulo eu tenho algumas coisas pra falar. Primeiro, eu pensei muito antes de decidir se faria ou não esse pequeno especial de natal, e por fim decidi que tentaria, apenas pra ver como ficaria, acabou que eu gostei do resultado final então aqui está.
A história é claramente inspirada no filme 'Last Christmas', de 2019, que foi dirigido pelo Paul Feig e escrito pela Emma Thompson, e apesar de ser um filme de natal ele cita alguns temas bem densos. Aqui nessa história eu tentei fazer o meu melhor, tentei deixar o tom leve e descontraído, e seguir ao menos a ideia central da história original. Mas vocês vão ver que tem várias diferenças, principalmente no plot twist final.
Enfim, eu não sei quando vocês vão ler isso, se no dia da postagem, se um, dois ou até três depois mas de qualquer forma, um já antecipado Feliz Natal e Ano Novo! Eu espero que vocês gostem de ler da mesma forma que eu gostei de escrever. E deixem suas opiniões, eu sei que não apareço tanto aqui, dessa forma, mas sempre vejo o que comentam.
Agora sim, uma boa leitura!
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— I don't want a lot for Christmas, there is just one thing i need. I don't care about the presents, underneath the Christmas tree. I just want you for my own, more than you could ever know. Make my wish come true, you know that all I want for Christmas is you — a minha voz soou de maneira suave e ecoou por toda a pequena igreja, junto do piano que um dos garotos da comunidade tocava. O restante do coral me acompanhou segundos depois e as vozes se mesclando deram um tom bonito e delicado a melodia que fora adaptada a um estilo lento.
Meus pais estavam na primeira fila da igreja, junto do meu irmão, Troye, esse que parecia focado no garoto do piano, mal se importando com o que acontecia longe de onde o olhar dele se encontrava.
A Virgin Mary's era uma simples igreja católica em Bagdá, que há muito tempo havia se tornado o destino semanal da minha família. Nós não só costumávamos frequentar, como também éramos bem ativos nas celebrações e atividades da comunidade, já que era o que de certo modo aproximava Petra, a minha mãe, dos costumes que ela tinha quando ainda morava no Brasil, junto da família dela.
Minha mãe nasceu no Brasil e viveu no país até os quinze anos de idade. Com essa idade ela se mudou para o iraque junto de uma tia, já que a família era originalmente toda de lá, e eles estavam passando por alguns problemas no Brasil, então a decisão de deixar minha mãe longe disso parecia o mais correto na época. Depois que ela se mudou, não demorou até que ela conhecesse meu pai, Said, e levou muito menos tempo ainda para que os dois começassem a namorar. Um namoro que logo escalonou para um casamento.
Troye, meu irmão mais velho, chegou um ano após o casamento, em 1994. Enquanto que eu nasci em 1996.
Meu pai era todo diferente, bem desprendido e tinha um problema sério com a própria família, por diferenças nos pensamentos, então sempre nos mantivemos muito mais em contato com meus avós maternos - que já nessa época não estavam mais vivendo no Brasil e sim nos Estados Unidos - do que com os paternos.
Apesar disso, meu pai gostava de viver ali, e minha mãe havia se acostumado, então durante muito tempo eles não se viam saindo daquele lugar.
Mas tudo mudou em 2002, a guerra deu indícios de que começaria; de uma hora pra outra ninguém tinha mais certeza de nada.
Meu pai, que trabalhava em um prédio comercial na parte central, quase morreu vítima de uma explosão, ocasionada por uma bomba em um conflito no centro. Isso foi no início de 2003, e foi aí que ele decidiu que era hora de sairmos do país. Ele tentou convencer alguns familiares a fazer o mesmo, inclusive meus avós, apesar da relação conturbada entre eles, mas de nada adiantou, o que não impediu ele e minha mãe de seguirem adiante com a decisão de saírem de lá. E então acabamos parando em Nova Iorque. Com o pouco que tínhamos seguimos para os Estados Unidos, já que os pais da minha mãe estavam morando lá na época, e a proximidade foi o que influenciou a decisão da mudança.
Eu cantando All I Want For Christmas Is You na igreja de Virgin Mary's, durante as festividades de Natal, é uma das últimas lembranças felizes que eu tenho do meu país de origem, e uma das últimas que eu tenho da minha mãe 100% bem.
A mudança afetou ela, e a proximidade com os meus avós até que ajudou mas isso foi só por um tempo, já que em 2005 ambos faleceram. Minha avó no início do ano; ela morreu de um jeito calmo, simplesmente não acordou em uma manhã de quarta feira. E meu avô partiu na metade do ano, poucos meses depois, quase que da mesma forma que minha vó, com a diferença de que ele deitou em uma tarde e encontramos ele no início da noite.
Minha mãe ficou destruída com isso.
Ela tinha perdido pessoas no Iraque, tanto por conta da guerra quanto por conta da mudança em si. Amigas, pessoas conhecidas do trabalho dela... E então perdeu os pais. Foi tudo muito rápido, pouco espaçado, e ela só não conseguiu aguentar o peso de tudo aquilo.
Meu irmão foi outra história, ele se focou em estudar e fazer do sonho do meu pai o dele. Isso porque quando nos mudamos do Iraque pros EUA, meu pai deixou de exercer a profissão de advogado, ele queria mas não podia, e não tinha como pagar pra se certificar de novo, já que tínhamos usado todo o dinheiro durante a mudança. Então ele acabou comprando um táxi usado e passou a fazer corridas por Nova Iorque, enquanto meu irmão estudava um número absurdo de horas para conseguir entrar em uma faculdade boa e se formar em direito.
Nesse tempo eu estava vivendo normalmente. Claro que eu reparava que meu irmão mal tinha tempo, que meu pai não parava em casa e que minha mãe vivia triste pelos cantos, mas eu tentava não deixar isso mexer comigo. E por muito tempo eu consegui me enganar de que minha vida não era tão ruim quanto parecia, apesar de toda a situação que envolvia minha família.
Mas em 2011 tudo mudou.
Eu tinha quinze anos e tinha recém descoberto que estava com um problema no coração.
Durante alguns exames de rotina o diagnóstico foi feito, e a sensação era que tinha um espaço se abrindo bem de baixo dos meus pés.
A condição era séria, do tipo que só seria resolvido com um transplante, e eu não tinha muita esperança que fosse viver muito à partir daquele dia, porque os custos médicos eram altos e minha família mal tinha dinheiro pra se manter, e eu não queria ser só mais um peso e causar tanto problema pra eles, não queria mesmo.
No dia do diagnóstico, foi quase como se uma parte minha tivesse morrido, e de fato uma estava. Na minha cabeça nada dava certo, e o problema no coração era só mais uma dificuldade num mar de muitas outras, não só pra mim, mas pra minha família também, e eu não tinha certeza se eles conseguiriam aguentar aquilo, porque eu não tinha certeza nem se eu aguentaria aquilo.
A sensação era de que o universo estava me punindo.
E eu não tinha a mínima ideia do porquê.
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— There is one thing that I would die for. It's when you say, "My life is in your hands". Cause when you're near me your love is all I need. Now I can't imagine. What do you want from me? It's not how it used to be. You've taken my life away, ruining everything...
— Você parece o tipo de pessoa que precisa de mais um drink — escutei uma voz calma ao meu lado e me virei sem tanto ânimo, apenas pra ver uma garota alta, de olhos claros e cabelos loiros, me encarando. Ela era extremamente bonita, e me olhava com uma leve faísca de alegria, como se algo estivesse a animando. Diferente de mim, que estava num dos meus piores dias. E nos últimos tempos eu era cheia de "piores dias".
— O que você é? Telepata? — brinquei e sorri de leve. Eu levei meu copo de gin tônica, que estava já no fim, em direção à minha boca e dei um último gole, deixando o recipiente vazio por completo.
— Posso dizer que sim — ela falou e se aproximou um pouco mais, não muito, mas o suficiente para o braço dela tocar no meu. O toque não me causou nada, a sensação foi como qualquer outra, mas com a proximidade eu consegui reparar ainda mais nela e no quão bonita ela era — Seria bom se você olhasse para mim — ela falou.
Eu suspirei de leve e com um sorriso no canto dos lábios, foquei meu olhar no da mulher ao meu lado.
Ela soltou um riso anasalado e falou:
— É, você está com sede.
— Oh, você é boa nisso — comentei, com um tom de ironia escorrendo de leve na minha voz.
— Pois é, e... Essa é sua música favorita — ela falou assim que What Do You Want From Me do Monaco começou a tocar mais uma vez, o que era o esperado já que eu tinha colocado quase dezesseis dólares na jukebox para repetir essa música.
— Uau, isso foi impressionante — falei, claramente brincando, e ela sorriu extremamente alegre e simpática.
— Nem tanto, isso foi só eu reparando que já é a quinta vez que você coloca essa música para tocar — ela apontou para a jukebox atrás de mim.
— Bem, é What Do You Want From Me, você tem que gostar dessa música — dei de ombros — Ela é maravilhosa.
— Eu concordo — ela balançou a cabeça positivamente e soltou uma risadinha leve —Mas me diz, o que você está fazendo aqui, em uma terça-feira, sozinha, escutando Monaco numa jukebox velha? — ela se inclinou de leve e apoiou o braço na mesa longa, estreita e alta que ficava na parede com vista para a janela.
— Eu saí do flat que estava "dividindo" com uma amiga. Amanhã eu tenho uma audição importante para um musical grande, e eu não tenho lugar para ficar. Eu sei que esse bar fica aberto até de manhã e eu só preciso ficar aqui até às seis, que é quando meu horário no trabalho começa — expliquei de forma resumida, ocultando algumas verdades, já que eu não tinha só "saído" do flat que estava dividindo. A história toda era mais complexa que isso.
Eu estava ficando no flat de uma amiga, Gemma, e depois de alguns problemas ocasionados pela minha falta de atenção e a falta de responsabilidade, Gemma tinha alegremente me "chutado" para fora do flat. Ela literalmente me colocou para fora com um sorriso no rosto. Mas ainda éramos amigas, óbvio, já que eu ser expulsa de um flat nunca foi motivo para o fim de uma amizade. Se fosse, eu com toda certeza não teria mais amigos.
— Você saiu do flat que morava e agora está sem casa? — ela perguntou e eu assenti — E sua família? Não mora aqui?
— Oh, eles moram — falei — Eles moram no Queens, e eu só não quero voltar para lá agora. Eu prefiro morrer a ter que fazer isso.
— Hm, problemas de família então...
— É, posso dizer que sim. Tem muita raiva, vergonha e ressentimento envolvido na minha relação com a minha família — falei — E isso só são as questões com a minha mãe, eu ainda tenho meu irmão. Ele... Ele é complicado — suspirei.
— Mas então seu plano é ficar aqui até de manhã?
— Pois é — dei de ombros — Eu já fiz isso antes, tá tudo bem.
— Bem, eu estou indo pra casa — ela comentou e eu reparei no sorrisinho de canto que ela parecia tentar esconder — É um apartamento bem legal e eu iria gostar de uma boa companhia. O que acha?
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Acordar foi difícil. A cama da garota que eu conheci no bar era extremamente confortável. E eu quase fiquei ali durante toda a manhã, se não fosse meu horário de entrada no trabalho... Eu definitivamente ficaria por lá sem problema algum.
— Bom dia, linda — a voz da garota soou baixa e calma, e eu abri meus olhos apenas para encontrar ela sentada na cama, ao meu lado. Ela já estava arrumada e segurava uma pequena xícara nas mãos — Eu preciso ir até o mercado no fim da rua. Tenho que comprar algumas coisas pra fazer meu café da manhã antes de eu ir treinar, mas... — ela estendeu a xícara em minha direção — Aqui. Capuccino. Eu acabei de fazer — eu peguei a xícara e agradeci e ela então se levantou — Eu vou indo mas você pode continuar aqui, eu não devo demorar. Hm, tem água quente no chuveiro, tem escova de dente nova no armário e toalhas limpas alí no closet.
— Obrigada — agradeci com a voz ainda meio rouca, por ter acabado de acordar.
— Não é nada — ela sorriu, e então saiu sem dizer mais nada. Eu observei isso e revirei os olhos segundos depois, jogando minha cabeça para trás, lembrando que tinha esquecido de perguntar o nome dela.
A gente realmente não tinha tido tempo para apresentações mais longas durante a noite/madrugada.
Tomei o capuccino em alguns poucos segundos e deixei a xícara na bancada da cozinha. Aproveitei que passei pela sala e abri a mala que eu estava carregando comigo, acabei separando a roupa que eu usaria pro dia, e então segui em direção ao banheiro.
Escovei meus dentes, levei todo o tempo do mundo cuidando do meu rosto e quando finalmente entrei no chuveiro eu deixei meu celular tocando Sagittarius Superstar do Coin, no alto falante.
Acabei me perdendo na voz cantando, com a cabeça ainda imersa em pensamentos, isso enquanto a água quente do chuveiro caía em mim.
Minha surpresa foi a maior quando a música parou abruptamente e então a cortina que tampava o box do banheiro foi aberta, e um cara nu apareceu na minha frente.
Eu não sei quem se assustou mais, eu ou ele. Eu, por ver um cara aleatório sem roupa enquanto eu mesma estava sem roupa, ou ele porque aparentemente tinha uma garota nua no banheiro do apartamento que ele dividia com a namorada. E isso eu entendi, a questão namorada, quando ele começou a gritar e falar:
— MEU DEUS, ELA TÁ FAZENDO ISSO DE NOVO. AGORA A GENTE VAI TERMINAR DE VEZ.
A próxima coisa foi eu sendo chutada - não literalmente - do apartamento da garota do bar.
O namorado dela me colocou pra fora, depois de me deixar terminar de tomar banho e me arrumar, e na saída ainda perguntou se eu tinha transado com a namorada dele, só pra ele ter certeza. Eu dei um sorriso amarelo, e a resposta era óbvia.
O cara comentou que tinha pegado um turno noturno no trabalho e realmente não esperava isso da Mackenzie - sim, esse era o nome dela - e eu só dei de ombros e pedi desculpas, já que era a única coisa que podia fazer.
A culpa não tinha sido realmente minha na situação. Eu não tinha ideia que a garota namorava, e que tipo de pessoa leva uma desconhecida pra casa sabendo que o namorado pode voltar a qualquer momento?? Certas coisas só não faziam sentido.
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— Deus, porque minha vida é tão ruim — sussurrei assim que virei na rua em que ficava a loja aonde eu trabalhava. O local já estava movimentado, as pessoas ainda estavam chegando nos estabelecimentos daquela rua e de longe eu vi que a loja da Santa - sim, minha chefe se chamava assim, ao menos eu acho que esse era o nome dela. Eu nunca tinha perguntado diretamente, eu só falava porque ela falava, mas enfim... - estava já aberta. Encarei o relógio do meu celular marcando cinco e meia da manhã em ponto e suspirei apressando meu passo. No caminho, Klaus, um cara que trabalhava como palhaço em uma das lojas ali perto, se aproximou de mim e, como ele fazia todo dia, jogou um dos inúmeros adereços que ele usava nos números que fazia, em cima de mim. Eu revirei os olhos irritada e falei: — Porra, Klaus! Isso não tem graça.
— Sempre tem — ele comentou e saiu em direção ao cara do food truck ali da frente, outro que ele amava irritar.
Eu entrei na loja e fui recebida por toda aquela decoração de natal à venda. Alguns bonecos estavam ligados esbanjando uma luz irritante enquanto dançavam, e outros tocavam "Last Christmas" do Wham!. Eu balancei a cabeça tentando afastar meus pensamentos quase suicidas porque nossa, como eu odiava trabalhar ali de manhã. Com tanta alegria sendo jogada na minha cara enquanto que eu mesmo só queria pular de um prédio pra ver se no inferno o sofrimento era menor.
— Hey, você está adiantada — Santa falou se aproximando de mim. Eu dei a volta na bancada do caixa e deixei minha mala de roupas ali atrás, bem escondida, e então vesti meu uniforme de elfa por cima da calça de moletom cinza e da camisa branca que eu usava. Finalizei com meu chapéu de elfa e sorri pra Santa, um sorriso irônico e caído — Você nunca chega adiantada. O que aconteceu?
— Problemas de acomodação — falei.
Ela revirou os olhos e disse:
— Oh, o de sempre então. O que você fez dessa vez pra te expulsarem? Matou o peixe de alguém? — ela perguntou e eu quase fechei os olhos com pesar, lembrando desse episódio.
Tinha acontecido na semana anterior. Eu fui dormir na casa de um cara que tinha conhecido no parque, ele se mostrou um ótimo amigo, me ouviu, me aconselhou e tudo mas aí na manhã seguinte, enquanto eu secava meu cabelo, sem querer eu derrubei o secador no aquário enorme que ele tinha. O pobre do peixe morreu na hora. A culpa foi minha? Obviamente, isso é claro, mas o aquário ficava perto da única tomada livre da sala, era um convite para algo dar errado.
— Isso foi semana passada — falei.
— Em algum momento você vai ficar sem esses seus "amigos de sofá". Ninguém vai querer te receber mais.
— Eles vão me receber — afirmei, ainda que no fundo eu soubesse que minha chefe estava certa. Em algum momento eu ficaria sem ter para onde ir. Eu conseguia arrumar problema em todo canto.
— Você tem estado com problemas — Santa disse — Isso é óbvio.
— Santa... — eu a olhei com um olhar irônico, fingindo surpresa — Eu não sabia que você ligava para os meus problemas.
— Eu não ligo — ela deu de ombros — Eu só não quero que eles te prejudiquem ao ponto de você fazer besteira na frente dos clientes. Isso é ruim para os negócios — ela falou e eu soltei uma risadinha anasalada — Vamos lá! Hora de trabalhar. Aproveita que você chegou cedo e arrume as prateleiras lá de cima.
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— Você tem que me ajudar a decidir — a senhora que eu estava atendendo estendeu dois Jesus em minha direção e suspirou cansada. Eu a encarei com uma sobrancelha arqueada, porque os Jesus eram iguais. Mas ela mal me olhou, focada nos filhos de Deus — Eles são tão lindos.
— Sabe o quê?! Vamos fingir que Maria teve dois filhos e aí você leva os dois — falei com um sorriso no rosto.
A senhora soltou uma risada leve e balançou a cabeça negativamente.
— Você deve amar o seu trabalho — ela comentou.
— Ah, eu amo — falei em um tom irônico, mas ela certamente não percebeu.
— Toda a alegria e o amor do Natal, todos os dias do ano — ela sorriu — Agora, qual Jesus bebê você acha que eu tenho que levar?
— Esse aqui é bonito mas esse... — apontei para o bebê da direita — Parece que ele está se divertindo mais.
— Eu reparei nisso também.
— Mas esse aqui... — eu apontei para o da esquerda.
— S/n! Hey! — uma voz grossa me tirou do meu momento "escolhendo bebês jesus", e eu virei minha cabeça para o lado, vendo meu irmão de frente para a porta de entrada. Ele provavelmente tinha acabado de chegar e estava tirando as luvas que usava.
— Jesus Cristo! — falei assustada, sem imaginar que eu veria Troye aqui, numa hora dessas.
— Esse aqui parece mais ele mesmo — a senhora continuou falando e eu revirei meus olhos, não por ela mas pelo meu irmão.
— Hm, me desculpe — falei para a cliente, ela me encarou sem entender e eu apontei pro meu irmão e falei que precisava resolver um negócio, e que seria rápido. Eu saí de trás da bancada e no caminho gritei para Santa ir ajudar a senhora a escolher os bebês Jesus — O que você tá fazendo aqui? — perguntei arrastando Troye para um canto da loja, bem de frente para a saída.
— Eu preciso falar com você — ele falou.
— Não sei se percebeu mas eu estou no trabalho. Você poderia ter me ligado.
— Eu liguei e você não me atendeu — ele suspirou irritado — Eu estou indo para o trabalho resolvi passar aqui já que é caminho.
— O que aconteceu? — perguntei impaciente.
— A mãe precisa falar com você. E você não atende a merda do telefone, ela tá preocupada. E toda vez que ela liga para você e você não atende, ela liga para mim — ele mostrou a tela do celular, que só então eu reparei que ele segurava — Eu tenho 25 chamadas dela só de ontem à noite.
— Eu vou ligar depois para falar com ela — falei em um tom áspero.
— Então liga — ele falou irritado.
— Eu vou — devolvi no mesmo tom — Não precisa ficar aqui mandando eu fazer as coisas. Eu sou adulta já.
Troye riu de maneira irônica e falou: — Você é a pessoa menos adulta que eu conheço.
— Você é péssimo, sabia — eu comentei — E eu preciso de um tempo para mim. É por isso que eu não tô indo para casa, não precisa ficar aparecendo aqui para me mandar manter contato.
— S/n... Eu tô pedindo para você fazer uma só coisa — Troye suspirou e jogou a cabeça pra trás e assim ficou por só alguns segundos. Logo ele voltou a me encarar — Só... Liga pra ela.
— Eu vou, mas sem pressa — falei — Sem pressa...
— Não, sem isso de "sem pressa". Você sabe que já faltou a umas cinco consultas no último mês? — ele falou — Você tem uma marcada pra segunda-feira. Você tem que ir, a mãe está louca com isso. Ah, e ela tá planejando um jantar para comemorar minha promoção no trabalho, e já disse que te quer no jantar. Além de que você não estar falando com ela tá afetando diretamente a minha vida e a do Timothée, é sério.
— Falando nele, você vai levar ele para o jantar? — perguntei ignorando completamente o restante das coisas que ele tinha dito.
Timothée era o namorado de Troye, só que ninguém sabia além dos amigos dos dois, e eu. Troye tinha um medo gigante de contar para os nossos pais que na verdade era gay, o que não tinha muito sentido, porque veja bem... Eu sou também, e eles sabem disso. Claro que para o Troye tudo parecia mais difícil, levando em conta que ele fazia de tudo para agradar. Primeiro a faculdade, depois o trabalho... Se assumir gay acabaria com a "magia" que ele mesmo tinha criado na mente dele. Isso tudo era uma besteira, a verdade é essa. Meus pais apoiariam Troye independente da situação.
Troye odiava quando eu citava Timothée, porque para ele eu sempre estava querendo o irritar - e eu realmente estava. Mas é só que, eu não entendia como ele podia viver se escondendo. Nossa mãe era difícil, mas ela não se importava se eu beijava mulheres, e certeza que não se importaria se soubesse que Troye gostava de homens.
— Só... Liga para a nossa mãe — ele balançou a cabeça negativamente e suspirou fundo, antes de sair em direção à rua.
Eu encostei no vidro da loja, e observei Troye andando até o carro dele. Ele abriu a porta do veículo e segundos depois saiu, sumindo da minha vista.
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— Gigi, sou eu... S/n — falei assim que minha amiga atendeu a ligação do outro lado.
— Eu sei, S/n. O que aconteceu?
— Nada, eu só... Eu preciso muito de uma cama pra dormir essa noite, ou talvez por algumas noites...
— Eu não sei se o Zayn vai gostar de te ter aqui — ela disse — Você sabe, da última vez você arruinou a arte que ele estava pintando. Ele não aceitou isso muito bem, lembra disso até hoje.
— Só uma noite — pedi, usando um tom de dar dó na voz.
— Ok, ok. Você pode ficar aqui, mas só uma noite. Duas no máximo — ela falou e eu sorri. Falei alguns "obrigada", e depois de falar o quanto amava Gigi, eu finalmente desliguei a chamada e voltei a focar minha atenção no trabalho.
Santa estava com alguns clientes não muito longe de onde eu estava. De frente para uma das prateleiras cheias de papais noéis. Ela falava e gesticulava, e todos pareciam até que bem entretidos naquele mundo de decorações de natal.
— Elfa! — Santa me chamou, e eu a olhei como que perguntando "o que?", ela sorriu de leve e voltou a atenção aos clientes, mas apontou para mim — Aquela é minha elfa — ela falou, não tão alto, mas eu ainda assim ouvi — O Papai noel tem elfos, vocês sabem. Pequenos ajudantes. Eu até dei um apelido para minha elfa. "Preguiçosa, a Elfa" — ela soltou uma risadinha leve e eu revirei os olhos — Porque ela aparentemente nunca trabalha.
— É, essa sou eu — eu comentei e sorri sem muita emoção na direção de Santa.
— Ela também pode ser chamada de "Decepção, a Elfa". "Me esgotando e tirando minhas forças, a Elfa". "Porque ela ainda está aqui? A Elfa"... — Santa continuou falando e eu balancei a cabeça negativamente, sabendo que aquilo continuaria por alguns minutos. Ela amava tirar uma com a minha cara, e eu não via como algo tão ruim. Eu era um problema e ela sabia, eu fazia merda e ela aceitava, e ainda pagava meu salário. Eu tinha mais é que ficar quieta mesmo.
Eu desviei minha atenção para o lado de fora, querendo ver como estava o tempo, e acabei reparando que havia começado a nevar. Mas nem foi a neve caindo que me chamou atenção, e sim a garota do lado de fora que parecia focada em alguma coisa acima dela.
Ela estava olhando para cima e parecia não se importar com a neve caindo, nem com as pessoas que passavam por ali olhando para ela.
Eu não sei ao certo o que me deu, mas fiquei curiosa, e acabei caminhando até a entrada da loja. Eu abri a porta e logo estava do lado da garota, que se assustou de leve quando eu perguntei:
— O que você está olhando?
— Deus! — ela colocou a mão no peito e soltou um riso leve — Você me assustou.
— Desculpa — dei de ombros — Mas o que você está olhando?
— Ah, aquele carinha ali — ela apontou para um ponto em específico no sinal neon em cima da loja e eu então vi um pássaro apoiado bem naquele lugar. Ele era pequeno mas bem diferente, bem bonito — Ele não costuma ser visto na cidade.
— Ele é- — comecei a falar mas fui totalmente interrompida quando o pássaro, do nada, resolveu fazer cocô no meu rosto, bem acima do meu olho direito — Um filho da puta.
— Uau — ela fez uma expressão de surpresa e colocou as mãos no meu rosto. Eu não sei da onde, mas ela tirou um pano de algum lugar e me ajudou a limpar o meu olho — Aqui, acho que seria bom você lavar com água. Só para garantir.
— Ótimo — suspirei irritada e saí em direção à loja, sem me importar em devolver o pano da garota. Tentando minimizar o dano que o desgraçado do pássaro fez.
— Aonde você estava? — Santa perguntou assim que me viu — E o que aconteceu?
— Um pássaro fez cocô no meu rosto — olhei pra ela e apontei para o meu próprio rosto. Ela me encarou levemente assustada e olhou para o alto da loja.
— Tem um pássaro aqui?
— Não — balancei a cabeça negativamente — Lá fora. É que tinha uma garota olhando pra cima, eu fui ver o que era e ela estava olhando esse pássaro estranho que não é comum de ser visto aqui na cidade e aí o desgraçadinho fez isso no meu rosto.
— Você não deveria nem ter ido lá fora, você sabe — Santa comentou — Tá vendo, é isso que acontece.
— Você tá insinuando que isso é algum karma ou coisa assim?
— Eu não tô insinuando nada — ela sorriu irônica — Só que você deveria estar trabalhando e não prestando atenção em gente olhando pra cima.
— Mas-
— Nem fala nada — Santa levantou a mão direita, em um sinal para que eu parasse. Eu dei de ombros e suspirei — Vai lavar esse rosto logo — ela falou e se aproximou de mim me apressando e me "empurrando" na direção do banheiro que ficava na parte de trás, bem perto do escritório.
— Eu vou, eu vou. Já tô indo.
• • •
— Aqui está, senhor. Aproveite sua mini árvore de Natal — falei e sorri, observando o homem de não mais que cinquenta anos sair com uma sacola de tamanho médio.
"Stake my life on it if somebody's gonna quit then I'd rather be sad with you than with any other girls but you"
— O que é isso? — Santa perguntou ouvindo wake me ecoar pela loja.
— Meu celular — respondi sem muito ânimo.
Eu peguei o aparelho, que estava no bolso da minha calça de moletom, e dei uma olhada na tela, vendo que era mais uma chamada da minha mãe. Acabei reparando que tinha algumas outras notificações, também dela, pendentes ali. A mulher parecia desesperada para falar comigo, e naquele momento eu não poderia ligar menos.
— Eu estou amaldiçoando o dia em que nasci — comentei.
Santa me encarou sem entender, mas então comentou:
— Eu também.
Ela não conseguia não me zoar. Eu já tinha aceitado.
— Ha ha ha — sorri sem emoção alguma e então continuei — Eu instalei tudo no telefone da minha mãe, isso foi na última vez que fui para casa, e agora ela consegue me perturbar não só pelas chamadas e mensagens mas também em várias redes sociais diferentes. É um inferno — falei e suspirei fundo, jogando minha cabeça para trás. Fechei meus olhos por alguns segundos e então os abri, só para encontrar Santa com um sorrisinho de lado — O que foi?
— Você é dramática — ela falou — Mas mães são complicadas mesmo, é preciso ter paciência. Saber lidar.
— O que eu claramente não sei — falei e Santa pareceu querer dizer algo mas o barulho da porta da frente abrindo chamou nossa atenção.
Uma garota de cabelos cortados, cheia de tatuagens e com olhos claros extremamente lindos entrou na loja. Eu levantei as sobrancelhas e estava pronta para ir atender ela, mas Santa me parou assim que pensei em me mexer.
— Eu atendo ela — ela disse.
— Mas eu posso fazer isso — protestei.
— Não, não pode. Você vai flertar com ela ao ponto dela esquecer de comprar o que veio comprar. Eu sei como isso acontece — ela falou e então saiu, com um sorriso falso mas agradável no rosto. Eu suspirei e me inclinei, para conseguir me apoiar na bancada.
Não sei quanto tempo se passou mas eu permaneci ali observando Santa e a garota das tatuagens conversando perto da seção de mini árvores. Meu olhar estava levemente perdido entre elas, e minha atenção só se desviou quando alguém surgiu bem na minha frente, cobrindo tudo que tinha pra ver.
— Oi! — a voz calma disse e eu subi meu olhar, vendo a garota do pássaro com um sorriso irritante - mas muito bonito - nos lábios. Eu revirei meus olhos e lancei um sorriso falso na direção dela.
— Oi... O que você está fazendo aqui?
— Vim ver seu olho — ela falou simples.
— Ele tá bem — eu dei de ombros.
— Isso é boa sorte, sabia?! — ela falou e eu a olhei sem entender.
— Boa sorte? Um pássaro ter feito merda no meu rosto é boa sorte? — perguntei irônica.
— É — ela balançou a cabeça, ainda com um sorriso no rosto — Enfim, eu vim ver também se você gostaria de dar uma volta comigo?
— Dar uma volta com você?
— Sim.
— Okay... — ajeitei minha postura e me apoiei na bancada de trás, ficando na altura certa da garota de frente pra mim — Você me achou no Tinder?
— Tinder?
— Sim. O aplicativo de relacionamento. Tinder...
— Eu não tenho Tinder — ela deu de ombros.
— Oh — a olhei surpresa — Então, pra ser sincera... Você não é exatamente o meu tipo — eu soltei.
Ela era muito bonita mas também parecia feliz e positiva demais. O tipo de gente que eu normalmente passava longe.
Eu estava muito bem mergulhada no meu poço de pessimismo, ironia e tristeza.
— Você também não é o meu... — ela falou e eu a olhei um pouco ofendida mas tentei não transparecer, porque pareceria muito hipócrita da minha parte. E eu era mesmo, mas ninguém precisava saber e me julgar por isso.
— Bem... Então você deveria ir embora.
— Mas eu gosto de um desafio — ela sorriu e apoiou as mãos na bancada — E eu quero dar uma volta com você.
— Você parece uma senhora falando que quer dar uma volta comigo — falei — E a resposta ainda é não.
— E porque?
— Porque eu não te conheço, você é estranha e eu não te conheço.
— Você não me conhece...? Disse a que usa Tinder. Você sai com pessoas se baseando em uma foto e mentiras numa descrição boba de perfil — ela falou e riu de leve.
— Ok... Você tem um ponto. Mas eu não quero dar uma volta com você — falei — Eu não te conheço. Então... — fiz um sinal e apontei pra porta — Tchau.
• • •
Eu estava presa.
Em transe.
Um homem tinha entrado na loja, já no fim do expediente, e ele e Santa pareciam hipnotizados um pelo outro. Ao ponto de que eles começaram a falar sobre um papai noel minúsculo que tocava Hallelujah.
A situação toda durou uns três minutos, e quando o homem finalmente saiu eu estava me sentindo como se tivesse acabado de ver um filme escandinavo de romance.
— Você está bem? — perguntei. Santa me encarou sem entender e eu apontei para a porta, para o homem que tinha acabado de sair — Isso foi estranho.
— Isso foi normal — ela falou e virou o olhar para qualquer outra coisa ali que não fosse eu.
— Espera... — me aproximei de Santa e semi cerrei meus olhos — Você gostou dele. Aha, Isso foi um flerte! — soltei uma risada anasalada e Santa revirou os olhos — Um flerte estranho? Sim, mas um flerte.
— Eu não gostei dele — ela falou e deu de ombros — Eu não sei nada sobre ele. E você está louca, Elfa. Porque tudo que você pensa nesses últimos dias é "sexo".
— Você não está errada nessa última parte. Mas você gosta dele sim — Santa revirou os olhos mais um vez e deu as costas para mim, indo em direção ao estoque. Eu sorri de leve e resolvi testar um negócio — Meu Deus. Ele está voltando! — falei e a reação foi imediata.
— Onde? — ela se virou com uma rapidez impressionante e eu acabei rindo, o que só me fez ganhar um olhar de reprovação dela.
— Desculpa, mas você gosta dele — falei — É bom que agora eu já sei seu tipo de homem. Alto, tímido e reluzente. Tipo uma lula, só que sem tantos braços e com menos ossos...
— Você está louca — ela falou e seguiu ao que ia fazer. Segundos depois ela voltou a aparecer do meu lado, só que agora vestindo um sobretudo e carregando uma bolsa média — Eu já vou. Não se esqueça de trancar tudo aqui, e até amanhã.
— Tchau! — acenei e observei ela sumir em direção a rua.
• • •
"Give back my keys, give back my chair. Take back those clothes you always left on the floor. You drove me wild, drove me insane. Drank the whole bottle, forgot my name..."
Tirei os fones dos meus ouvidos e imediatamente a voz do Wesley Schultz cantando Leader Of The Landslide sumiu.
Suspirei fundo e guardei os fones. Ajeitei a mala que carregava, que por sinal estava bem pesada, e segui em direção a entrada do teatro. Lugar em que eu deveria fazer um teste para um novo musical. Mas eu estava atrasada, uns trinta minutos. Só esperava que me deixassem fazer o teste ainda. Eu tinha falado daquilo a semana toda, seria péssimo não conseguir nem fazer.
— Oi! Eu estou atrasada — cheguei já avisando.
Os três avaliadores que estavam ali me encararam e um deles disse algo como "não estamos mais avaliando".
Eu sorri sem graça e disse que tinha perdido o horário, mas que meu nome estava na lista.
A única mulher que estava lá para avaliar, me encarou por alguns segundos e por fim convenceu os outros dois a me escutarem.
Eu perguntei se podia colocar o instrumental da música que ia cantar mas o técnico de som já tinha ido embora. Então acabei cantando Moon River acapella.
Minha voz era boa, eu tinha alguns problemas de confiança no palco, mas nada que me prejudicasse. Ainda sim, eu não consegui o papel, não fui nem selecionada para um segundo teste.
E naquela noite eu saí do teatro extremamente irritada, não com quem me avaliou, mas comigo mesma.
— Você passou? — uma voz surgiu do meu lado direito e eu levei um susto, colocando a mão no meu peito. Me virei com cuidado, pronta para xingar quem quer que fosse, e a minha surpresa foi grande quando eu vi a garota da loja. A que estava olhando para cima, para o pássaro. Ela estava em uma bicicleta roxa, apoiada com um dos pés no chão.
— Como você...?
— Você estava no teatro, tem um cartaz falando dos testes. Eu deduzi — ela deu de ombros.
— E o que você está fazendo aqui? Você me seguiu?
— Segui você? Não — ela riu de leve — Eu vim fazer um trabalho aqui perto. Isso aqui é só coincidência.
— Coincidência? — perguntei com um tom irônico, não acreditando tanto naquilo.
— Vocês, elfos, são sempre tão cínicos? — ela perguntou e eu balancei a cabeça negativamente e soltei um riso anasalado.
— Sim. São tempos sombrios para a comunidade de ajudantes do Papai Noel — falei e ela riu de leve, uma das risadas mais lindas que eu já tinha escutado na vida, e que eu só tinha reparado ali, por algum motivo. Talvez o fato de estarmos tão perto, de ser a segunda vez que nos víamos em um período curto de tempo. É, eu estava reparando nela sim.
— Enfim, você está aqui. Eu estou aqui... Nós nos encontramos por acaso. O que acha de caminharmos um pouco?
— Porque é que você quer caminhar comigo? Eu não sou um cachorro necessitado que não anda há meses.
— Certeza? Você está usando uma coleira — ela brincou e apontou para o colar que eu usava. Era um colar simples com um pingente que tinha uma pequena flecha.
— Ha ha ha. Muita engraçada — sorri sem ânimo algum — Mas sério, eu não estou no clima para caminhar.
— Porque?
— Ok — suspirei, disposta a falar mais sobre o que eu estava passando. Afinal, a garota parecia extremamente interessada — Eu sou péssima no que eu faço na frente de pessoas que poderiam me dar um trabalho.
— Eu achei que você tivesse um trabalho como elfa naquela loja maluca e sensacional.
— Eu tenho, mas eu quero um trabalho "trabalho", eu quero fazer o que gosto.
— E o que você gosta?
— Eu gosto de cantar — dei de ombros.
— Uau, isso é incrível — ela sorriu de leve.
— Nem tanto. É difícil viver disso. Mas enfim, falar das minhas derrotas é chato — balancei a cabeça e olhei para ela — Afinal, quem é você?
— Hailee — ela estendeu a mão e eu sorri de leve, antes de estender a minha em encontro a dela e apertar.
— S/n.
— Então, S/n. Você quer caminhar?
• • •
𝑺𝒊𝒍𝒗𝒆𝒓 𝑳𝒊𝒏𝒊𝒏𝒈 — 𝑻𝒉𝒆 𝑵𝒆𝒊𝒈𝒉𝒃𝒐𝒖𝒓𝒉𝒐𝒐𝒅
— Aonde a gente está indo?
— Só me segue — Hailee falou e tomou a minha frente.
Seguimos por um beco, que inicialmente gritava "lugar perfeito pra morrer nas mãos de um maníaco", mas conforme seguimos entrando eu me dei conta que o lugar era lindo.
Era um beco simples mas bem iluminado conforme íamos andando, e ele era extremamente decorado. As decorações de Natal davam um ar quase cinematográfico para aquele lugar. E eram as luzes que acrescentavam um quê de magia.
— Uau...
— Você nunca viu isso aqui antes, né — Hailee falou e eu balancei a cabeça negando — Meu irmão me mostrou. É um dos lugares mais bonitos dessa cidade durante essa época do ano. E é bem escondido. Eu gosto de lugares assim.
— Alguém já te disse que tem um tom de serial killer em você? Principalmente quando você diz essas coisas tipo "eu gosto de lugares escondidos" — perguntei em um tom sério mas claramente brincando.
— Pensando bem, ninguém me disse isso antes — ela respondeu, carregando um sorrisinho no canto dos lábios — Bem, ninguém nunca me disse mais de uma vez.
Eu revirei os olhos mas ri de leve, e ela me acompanhou.
Continuamos caminhando, até sairmos do beco e seguirmos em direção a uma rua, que eu sabia qual era. Só não sabia o que de tão especial tinha alí. Eu não tinha ideia alguma de onde Hailee estava me levando realmente, e isso porque eu morava na cidade havia anos, imagina se não morasse.
A coisa interessante de Hailee é que eu mal a conhecia. Eu sabia o nome dela, eu sabia que ela olhava pássaros aleatoriamente pela cidade, eu sabia que ela era divertida, mas nada além disso. Eu tinha a conhecido não tinha nem um dia e ainda sim eu nunca tinha me sentido tão confortável quanto me sentia ali com ela. Tinha algo nela que era simples e confortável, que causava uma sensação boa em mim.
— Pra onde a gente-
— Cuidado — Hailee me puxou para o lado e eu me assustei, vendo que se não fosse por ela eu teria mergulhado direto nos sacos de lixo espalhados pela calçada — Foi quase.
— Acho que hoje eu estou sem sorte — falei em um tom quase beirando o irritado.
— Uma hora isso passa — Hailee comentou. Eu reparei que ela ainda não tinha me soltado, e agora, enquanto segurava a bicicleta com a mão esquerda, ela me envolvia com o braço direito em um aperto fraco na minha cintura — Agora vamos. É logo alí — ela sinalizou com a cabeça, e eu olhei para frente vendo do que ela estava falando.
Era um daqueles típicos jardins de bairro. Eu conhecia muitos daqueles, mas definitivamente nunca tinha visto aquele em específico. E ele era lindo.
A neve tinha caído durante uma parte do dia, e não só as ruas estavam levemente cobertas como o jardim também. E com as decorações de Natal já colocadas o lugar estava lindo.
— Isso é... — Hailee me guiou pelo Jardim e eu perdi completamente minhas palavras assim que entramos.
— Lindo...?
— Sim. Eu sempre passo por essa rua, como é que eu não conhecia esse lugar?
— As pessoas costumam não ligar muito, acho que elas estão tão ocupadas em olhar para frente, em direção ao que vão fazer, o que precisam fazer, que esquecem de aproveitar a cidade. E esse lugar é mágico nessa época do ano.
Hailee apontou para um banco mais afastado e nós seguimos até lá e nos sentamos.
Não tinha muita gente ali, até pelo horário. Já passava das nove da noite. E as cinco ou seis pessoas que estavam lá pareciam todas imersas em seus próprios mundos.
— Olha ali — Hailee apontou para um homem sentado num banco não tão longe do nosso — Aquele ali é o Gideon. Ele acabou de se divorciar e está devendo $748 em pensão para o filho de seis anos.
— Nossa...
— Pois é... Eu ouvi ele gritando bem alto num dia desses, bem atrás daquele arbusto.
— Ele provavelmente achou que ninguém estivesse ouvindo — comentei.
— Pois é, mas eu estava, foi meio difícil não ouvir — ela deu de ombros — Oh, e aquele é o Vicenzo — ela apontou para um senhor que parecia ter uns 70 anos — Ele é chefe de uma organização mafiosa.
— Mentira — encarei Hailee, esperando que ela afirmasse que não, que não era mentira, mas ela riu e focou a atenção em mim.
— É mentira. Ele é atendente no burger king — ela disse — E ele é vegano, o que é bem conflituoso.
— Você quase me pegou nessa — falei — Hm, e aquela ali? — apontei para uma senhora. Ela estava lendo alguma coisa enquanto escutava algo nos fones de ouvido que carregava.
— Aquela é a Úrsula. Ela é dona de um bordel não muito longe daqui, e ela vive no flat bem atrás do lugar. Algumas garotas de lá do bordel vem aqui pra conversar com ela. Elas chegam, pegam um lugar, trazem um chá, café, qualquer coisa, e ficam horas falando e falando.
— Elas falam sobre o que?
— Tudo... Nada — Hailee deu de ombros — Acho que elas só se apoiam, falam da vida. A Úrsula não tem família então aquelas garotas são isso para ela, é bem comum ver elas aqui às vezes só fazendo companhia umas para as outras.
— Eu quero ir falar com ela — comentei e estava prestes a me levantar mas Hailee me puxou de volta, pra que eu me sentasse do lado dela.
— Você não pode — ela falou — Não agora. Aqui as pessoas guardam os segredos umas das outras e respeitam o espaço de cada um. É tipo uma regra não falada. A gente vem aqui, sabe das coisas e cada um fica no seu próprio mundo. A gente sabe quando chegar para conversar, e eu não acho que seja esse o momento.
— Ah, ok... — suspirei de leve — Mas você me contou sobre o Gideon e eu sei sobre a Úrsula e o Vicenzo — falei.
— É, eu acho que agora você é uma de nós então — Hailee sorriu e desviou o olhar para frente. Eu a encarei por alguns segundos mas acabei deixando um sorriso escapar, e voltei minha atenção para a frente, para o jardim. Vendo que a neve tinha voltado a cair.
• • •
— Quando é seu próximo teste? — Hailee perguntou assim que paramos no ponto de ônibus.
Eu precisava pegar um ônibus até a casa de Gigi, enquanto que Hailee seguiria de bicicleta até a casa dela, aonde quer que ela morasse. Ela foi gentil o suficiente para me acompanhar e esperar o ônibus comigo.
— Sábado — respondi — É para um musical de Frozen on Ice.
— Ah, então você patina no gelo? — ela perguntou.
— Não — eu falei — Mas eu vou descobrir como fazer isso.
— Você vai fazer um teste que precisa patinar no gelo e você não sabe patinar no gelo?
— Não — falei e soltei uma risada anasalada — Eu nunca nem tentei, mas eu sei que eu vou arrasar.
— É isso, pensamento positivo — ela sorriu. Nesse momento o ônibus chegou. Hailee colocou uma das mãos no sobretudo rosa que usava e me encarou sem saber como se despedir.
— Eu gostei da nossa caminhada hoje — falei.
— Eu fico feliz. Você quer repetir a experiência?
— Você quer me dar seu número?
— Eu não uso meu celular mais — ela sorriu de lado e eu a encarei incrédula, não acreditando no que tinha escutado.
— E eu aqui começando a te achar normal — falei em um tom de brincadeira.
— Ok, antes que você comece a me achar estranha e me jogue no lixo junto dos seus antigos romances. Eu não uso porque foi algo que prometi para o meu irmão.
— Porque?
— Porque eu passava tempo demais encarando uma tela minúscula — ela deu de ombros — Vendo as mesmas coisas, consumindo conteúdo que não me acrescentava em nada. Eu prometi para ele que aproveitaria mais isso aqui — ela apontou para o entorno de onde estávamos — O mundo. Enfim, você deveria tentar. É bom olhar pra cima, viver a vida, aproveitar o momento. A gente não tem ideia do que pode acontecer amanhã.
— Uau, intenso — falei — Mas não, isso é praticamente pedir pra eu me matar — eu comentei, e como um brincadeira de Deus, meu celular começou a tocar.
Eu peguei, apenas para ver que era minha mãe me ligando mais uma vez. Eu revirei meus olhos e recusei a chamada.
— Se você não tivesse um celular você ficaria menos estressada — Hailee falou vendo minha expressão com a chamada que tinha recebido.
— Ah, mas eu adoro ficar estressada — sorri irônica — Enfim, eu vou indo. O motorista do ônibus tá quase descendo aqui para me bater — falei e subi no ônibus, com um pouco de dificuldade já que eu tinha uma mala cheia de roupas para segurar.
Hailee me deu um último tchau e o ônibus então começou a andar. Eu me encostei na janela, e vi que ela ainda me encarava. Aproveitei a situação e mandei um beijo para ela como que numa brincadeira, que sorriu e "pegou" o beijo no ar.
Quando o ônibus virou e eu então perdi Hailee de vista, eu me deixei cair no banco do transporte. Acabei suspirando alto e fundo, e por alguns segundos mal me reconheci.
Fazia tempo que eu não me sentia daquele jeito.
Leve.
• • •
— Sua suíte, madame — Gigi abriu a porta do que seria o quarto da filha dela e eu reparei que ele estava quase pronto. Só faltava montar o berço, que estava ali no canto desmontado. E no lugar dele estava um colchão colocado no chão — Sorte que você ligou antes de montarmos o berço.
— Obrigada — eu falei. Deixei minhas coisas ali no quarto e saí junto de Gigi em direção a sala — Hey, Zayn!
— Oi, S/n — ele sorriu de leve, educado. E eu devolvi o sorriso, por educação.
Zayn não gostava de mim. E eu não julgava. Eu não sou a pessoa mais fácil do mundo, nunca fui, além de que da última vez que fiquei na casa dele e de Gigi, eu quebrei o barco em miniatura que ele tinha comprado por uma fortuna. Ele tinha motivos pra não gostar de mim.
— Como estão as coisas? — ele perguntou. Eu suspirei e me sentei no sofá, perto da mesa aonde ele estava pintando alguma coisa. Enquanto que Gigi foi em direção a cozinha.
— Bem.
— Aguentando bem os últimos dias?
— Sim, sim...
— E a Santa? Você ainda trabalha com ela?
— Ela tá bem. E sim, ainda trabalho.
— E seus pais, e o Troye?
— Eles tão bem — falei — O Troye tá como sempre. Trabalhando ainda na firma de advocacia e tal. Eu não tenho falado com eles tanto, você sabe. Eu estou me dando um pouco de espaço.
— E suas consultas? — Gigi perguntou ainda na cozinha.
— Eu tenho uma marcada pra segunda mas não sei se vou — dei de ombros — Mas chega de falar de mim. E a bebê? Como ela está?
— Ela está bem. Mas a gravidez é... Deus, eu não aguento mais. Aquela imagem que vendem sobre você brilhar na gravidez é uma total mentira.
— Eu imagino.
— Sério. São só nove meses de puro trauma.
— Isso é triste — comentei meio vagamente — Hm, eu vou sair um pouco. Prometo que não vou chegar tarde, mas não me esperem acordada — me levantei e vesti meu sobretudo que estava jogado ali na poltrona — Até depois!
• • •
Não me lembro como voltei pra casa de Gigi e Zayn. Só sei que acordei faltando vinte minutos para o início do meu expediente na loja.
Eu saí do quarto que tinha dormido e dei de cara com Gigi e Zayn tomando café da manhã na bancada da cozinha.
Eu dei um "bom dia" breve e estava saindo para o trabalho quando Gigi me parou.
Ela disse, com um tom triste na voz, que eu precisava ir embora. Que eu tinha chegado tarde demais, acompanhada de uma garota aleatória, e que tinha feito o maior estardalhaço no meio da madrugada. Eu acabei estragando o desenho que Zayn estava trabalhando, sabe se lá como, e é óbvio que foi isso que fez Zayn perder o resto da paciência comigo, e pedir para que Gigi falasse que eu precisava arrumar um outro lugar pra ficar.
Eu entendi completamente, e pedi desculpas pelo inconveniente. Eu tinha esse problema de passar dos limites, mas eu sabia reconhecer quando fazia isso, e não tinha problema em me desculpar.
O complicado era que eu fazia isso demais, e uma hora só desculpas não iam me ajudar em nada.
Eu fui arrastando minha mala até a loja, quase correndo, não querendo me atrasar mais do que já estava atrasada. E quando coloquei os pés a rua da loja, eu pude ver de longe uma movimentação na frente dela. Havia um carro policial, e algumas pessoas curiosas observando tudo.
Eu entrei na loja, tomando muito cuidado com tudo e sem saber o que tinha acontecido, e acabei dando de cara com Santa conversando com duas policiais. Ela me encarou com pesar e apenas informou que tinham entrado ali e levado algumas coisas, além de terem bagunçado o térreo todinho.
Eu ouvi aquilo e suspirei fundo, fechando meus olhos por poucos segundos.
Eu tinha esquecido de trancar a loja na noite passada. Saí com pressa, atrasada para o teste, e realmente não tinha me tocado disso, mas era óbvio, porque a chave que eu usava para trancar a porta principal ainda estava ali, jogada na bancada do caixa.
— Isso é bem comum nessa época do ano, ainda mais em lugares assim — uma das policiais disse — Enfim, aqui está o seu boletim da ocorrência. Você vai precisar para quando for ligar para o seguro. Nós já vamos, mas tenham um bom dia.
— Obrigada — Santa falou e acompanhou as duas até a porta. Assim que elas saíram e a porta foi fechada, Santa me encarou com um olhar de reprovação.
— Santa...
— Não fale comigo — ela passou por mim e seguiu em direção ao caixa.
— Mas...
— Eu falei "não fale comigo" — ela me encarou — Você esqueceu de fechar a loja ontem à noite.
— Eu posso te pagar o prejuízo — falei, mesmo sabendo que eu não tinha dinheiro suficiente no momento para fazer aquilo. Se eu tinha cinquenta dólares na carteira já era muito.
— Isso não é sobre o dinheiro — ela falou — Olha aqui, você vai me ouvir agora, e vai me ouvir de verdade — Santa suspirou irritada e continuou — Quando eu te contratei você era ótima no trabalho. Por isso eu te efetivei, por isso você passou a trabalhar as horas completas. Você era engraçada, simpática, carismática e extremamente competente. Eu me senti muito sortuda por ter você aqui. Mas desde que você voltou você não tem sido você mesma, e eu não me sinto mais sortuda. É como se você não ligasse para mais nada. Hoje eu tive que quebrar as janelas da minha própria loja para que isso parecesse uma invasão, um arrombamento, caso contrário o seguro não cobriria o prejuízo. Você me fez fingir algo e quebrar a lei, e eu não deveria te dar uma segunda chance, mas eu vou porque eu sou uma pessoa boa.
— Eu sei — falei e suspirei triste.
— Só que se você fizer mais uma dessas, você está fora de vez — ela disse e deu a volta na bancada, indo em direção ao andar de cima. Enquanto subia as escadas eu escutei ela falar — Só limpe essa sua bagunça, S/n. E volte a agir igual alguém decente, se não uma hora as pessoas vão desistir de você.
• • •
𝑷𝒓𝒆𝒔𝒔𝒖𝒓𝒆 - 𝑻𝒉𝒆 𝟏𝟗𝟕𝟓
— Hey!
— Hey! — sorri vendo Hailee chegar com sua bicicleta roxa.
Ela desceu da bicicleta e se manteve a segurando de lado enquanto me olhava.
Eu estava sentada na minha mala, bem em frente para a loja. Dessa vez eu me certifiquei de fechar tudo, e como não sabia para onde ir acabei me sentando ali apenas para pensar, por algum tempo, no que faria naquela noite.
— Você veio me ver? — perguntei.
Hailee sorriu mas balançou a cabeça negativamente.
— Não.
— Oh... Ótimo — falei tentando esconder o pingo de decepção que tinha caído sob mim.
— Você está bem? — ela perguntou.
— Na verdade não. Alguém entrou na loja e a culpa meio que foi minha. A minha chefe, Santa, passou o dia irritada. E ela tá na razão, eu fiz merda dessa vez. Além de que eu não tenho para onde ir hoje, então... Tá tudo indo de mal a pior.
— Hm...
— Eu sou praticamente uma sem teto de novo — comentei.
— As coisas estão ruins assim, hein?!
— Pois é — dei de ombros.
— Você deveria vir comigo — Hailee falou e eu soltei uma risadinha.
— Você veio muito me ver — comentei.
— E agora você sonhou — ela brincou — Vamos! — ela estendeu a mão para mim e me ajudou a levantar. Eu peguei minha mala e acompanhei Hailee, sem saber exatamente aonde iríamos.
Acabou que não andamos tanto, seguimos até duas ruas adiante, e quando eu vi estávamos de frente para um abrigo de moradores de rua.
— O que é isso? — perguntei.
— Um abrigo — Hailee respondeu óbvia — Para moradores de rua. O seu povo.
— Deus... Muito obrigada, Madre Teresa — revirei meus olhos.
— Você que usou a palavra "sem teto" — Hailee deu de ombros.
— Sim, mas... Eu quis dizer que eu estava sem lugar para ficar no sentido de um lugar que eu queira ficar. Eu só não queria voltar para casa — expliquei.
— Seus pais vivem aqui em New York, né? — ela perguntou e eu assenti.
— E eu vou precisar de uma bebida bem forte se for realmente voltar para casa hoje — falei.
— Ou você pode ir para casa sóbria — Hailee sugeriu — Eu aconselho.
— Quem é você? — a encarei com as sobrancelhas arqueadas.
— É só uma sugestão — ela deu de ombros — Enfim, eu vou indo.
— Você vai aonde? — perguntei.
— Ali — ela aponto para o abrigo.
— Mas você tem casa, não tem...? — perguntei.
— Sim, eu tenho, mas é que eu ajudo ali. Eu sou voluntária desde o ínicio do ano, meu irmão que me mostrou esse lugar — ela explicou.
— Você é boa demais — balancei a cabeça de leve — como pode!?
— E você não se aguenta — Hailee sorriu — Enfim, boa noite S/n!
— Boa noite! — falei.
Hailee sorriu e deu as costas para mim, indo em direção ao abrigo. Na metade do caminho ela gritou: — Ah, e Boa sorte!
• • •
Meu pai colocou Oasis para tocar no som do carro, assim que entrei.
Ele sabia que eu gostava da banda e amava fazer essas mínimas coisas para me agradar.
Eu tinha ligado para ele, pedindo para que ele me buscasse. E nem dez minutos depois de desligar a chamada com ele, o táxi apareceu ali aonde eu estava.
No caminho para casa ele falou como as coisas estavam em casa, falou dele, da minha mãe. E quando eu vi eu é quem estava falando, praticamente desabafando.
Para melhorar, Stop Crying You Heart Out estava tocando e eu não conseguia calar a boca.
— Eu acho que ela preferia quando eu estava doente — suspirei — Sabe... Como se isso fizesse ela ser mais importante. Porque todo mundo se preocupava com ela. E tudo que ela faz, desde a operação, é tentar interferir na minha vida, controlar as coisas. Não, e como é que você sabe que agora você tem uma vida? Que agora você pode viver? Eu passei anos achando que ia morrer, me privando de fazer as coisas. Deus... Tudo anda tão bagunçado. Como é que eu acabei aqui?
— Viemos de avião — meu pai brincou, e eu soltei um riso anasalado por conta da piadinha.
— Pois é...
— Chegamos — ele falou, parando o carro em frente a nossa casa.
Eu dei um beijo na bochecha dele e abri a porta do carro. Alcancei minha mala e antes de ir, perguntei:
— Não vai entrar?
— Sua mãe ainda está acordada — ele falou e eu entendi tudo — Eu vou dar uma volta, pegar algumas corridas, e depois volto de madrugada.
— Ok — falei e me despedi mais uma vez, vendo o táxi dele desaparecer em direção ao fim da rua. Caminhei até a porta de casa e bati de leve, sem pensar muito, porque se fizesse isso eu nem entraria em casa — Mãe! Mãe! — bati um pouco mais forte mas nada aconteceu — FBI! Abram a porta! — gritei e nem um minuto depois, minha mãe abriu a porta de casa, me puxando para dentro.
Eu ri de leve e ela me encarou irritada.
— Foi uma brincadeira — falei.
— Não se brinca com essas coisas, S/n — ela falou em português.
— Vai me dizer que você preferia o FBI aqui na frente mesmo — sorri irônica.
Minha mãe balançou a cabeça negativamente, em reprovação, e parou por um segundo para me encarar.
— Você está igual uma pessoa morta — ela colocou a mão no meu rosto — Essas olheiras...
— Eu estou bem — me afastei.
— Você está péssima, S/n — ela falou.
Eu deixei minha mala ali na sala e tirei meu casaco, jogando no sofá. Segui em direção a cozinha, querendo comer algo, e minha mãe me acompanhou, seguindo logo atrás de mim.
— Porque você não me liga hein? Você está igual o seu pai. Some por aí, não dá notícias, não liga. Nunca tá em casa — ela reclamou.
— Eu estava ocupada — falei — Olha, eu preciso comer alguma coisa e dormir. Eu quero dormir, então... A gente conversa depois, ok?
— Ok. Eu vou arrumar sua cama — ela falou e eu suspirei aliviada quando ela sumiu em direção ao corredor.
Eu me servi com um sanduíche rápido e um copo de suco. Enrolei ao máximo, querendo evitar falar com a minha mãe, e quando terminei fui me arrumar para dormir. E demorei mais ainda.
Quando finalmente me deitei na minha cama, minha mãe se sentou ao meu lado e começou a falar. Ela falou de tudo, e finalizou avisando que tinha mudado a data da minha consulta para o dia seguinte, para aproveitar que eu estava alil.
Eu revirei os olhos, mas evitei falar qualquer coisa, querendo evitar um possível desentendimento.
Meu dia se encerrou quando a minha mãe finalmente resolveu sair do meu quarto, e eu consegui fechar os olhos e dormir.
A noite não foi a melhor, mas dormir em uma cama macia e decente quase compensou o fiasco de dia que tinha sido aquele.
• • •
No dia seguinte minha mãe me acordou cedo, avisando que tinha ligado para o meu trabalho e avisado que eu chegaria alguns minutos atrasada porque teria uma consulta com a minha cardiologista. Ela pediu para eu me arrumar, e com muita má vontade eu me arrumei.
Minha mãe se vestiu do jeito dela de sempre e logo estávamos indo em direção ao consultório médico, que por sorte não era longe de casa.
Chegamos lá quando o lugar ainda estava vazio, a fila de espera não tinha se formado e acabamos sendo atendidas primeiro.
Foi aí que meu tormento daquela manhã começou.
— Então, me conte sobre a dieta — a médica pediu. Ela me olhou como que esperando alguma resposta mas eu fui interrompida pela minha mãe. O que era normal. Por isso eu odiava tanto essas consultas. Ela falava, falava e falava mais um pouco e quando eu tentava falar ela ou me interrompia ou me contradizia.
— Ela só come besteira. Quando ela está em casa eu faço comidas saudáveis. Mas fora de casa... — minha mãe balançou a cabeça negativamente — Só besteira.
— E o sono? Você está dormindo bem?
— Aham, estou sim — assenti positivamente.
— Ela nunca dorme — minha mãe falou. E foi impossível não revirar os olhos.
— Você está se exercitando? — a médica perguntou com o olhar focado em mim.
— Aham.
— Ela nunca se exercita.
Eu encarei minha mãe por alguns segundos, tentando ver se ela entendia algo daquilo, mas ela continuou focada na médica. Quase como se eu nem estivesse ali.
— E o álcool? Anda bebendo?
— De vez em quando — dei de ombros e olhei para minha mãe, esperando o que ela diria dessa vez.
E ela comentou:
— Ela bebe igual um pirata. Igual aqueles vikings daquela série estranha que vive passando no History channel.
— Ok — a médica suspirou fundo — Você diz que tá tudo bem, e sua mãe diz o contrário. Em quem eu tenho que acreditar?
— Em mim — eu falei.
— Não, não. Em mim, na mãe, claro.
— Ok, escutem. Não tem nada conclusivo aqui mas você... — a médica me encarou — S/n, você tem que cuidar do seu coração. Você tem que descansar, dormir bem, comer bem, beber menos. E parar de se irritar tanto. E você, Senhora S/s — ela desviou o olhar pra minha mãe — A senhora tem que se preocupar menos.
— Eu preciso dormir — ela falou — Você pode me receitar algo para dormir?
— Eu já lhe passei tudo que podia para dormir, para ansiedade, para ataques de pânico... A senhora tem o melhor que a medicina moderna pode oferecer e se nada deu certo aí eu já não posso fazer nada.
— E o que eu faço então? — minha mãe perguntou.
— Entre em algum clube. Converse com pessoas. Passe seu tempo com os amigos — a médica disse e minha mãe suspirou e se inclinou, se apoiando na mesa.
— Meus amigos estão mortos — ela comentou.
— Mãe... — repreendi ela, porque aquilo realmente não era necessário. Acabei me virando para a médica e me despedi de qualquer jeito, para logo em seguida sair puxando minha mãe para fora do consultório. No caminho até a saída a médica disse algo como "até o próximo mês", e eu respondi falando "até o próximo ano", porque se dependesse de mim eu só apareceria ali amarrada e arrastada.
• • •
Eu estava no andar de cima da loja arrumando algumas coisas, sozinha; Santa já tinha ido embora, e eu, como sempre, fiquei encarregada de fechar a loja. Mas ela tinha feito compras para repor o estoque do que foi levado ou quebrado, e eu tinha que terminar de arrumar tudo, até porque a culpa da invasão foi minha, então já tinha passado do horário de ir embora e eu ainda estava ali.
Hailee apareceu nesse horário, enquanto eu estava arrumando as coisas nas prateleiras.
Ela entrou na loja, parecendo procurar por alguém, já que o lugar estava aberto, mas não achou ninguém, até que o olhar dela subiu e deu de encontro com o meu. Ela sorriu de leve e apontou para cima, perguntando se podia subir. Eu assenti e logo ela estava vindo até mim.
— Posso ajudar? — ela perguntou.
— Não, eu estou aqui me punindo — brinquei.
— Oh, que divertido — ela falou totalmente irônica e me encarou por alguns segundos, parecendo reparar alguma coisa — E essa expressão? Aconteceu alguma coisa?
— Não exatamente. É só que... — suspirei terminando de colocar as últimas caixas de enfeites na prateleira. Me virei para encarar Hailee e apontei para o chão, falando para ela se sentar. Assim ela fez, e eu me sentei ao lado dela — É exaustivo voltar pra casa — falei.
— Porque?
— Minha mãe fica lembrando das coisas e falando mais mil outras. Quase como se ela não estivesse contente com nada, aí ou ela lembra de coisas que já passaram ou ela fala mal tudo que eu faço.
— Ela lembra de quê? — Hailee perguntou parecendo interessada.
— Da nossa vida antes daqui. Morávamos no Iraque, sabe, meu pai é de lá. E as coisas eram consideravelmente boas lá por conta da vizinhança que vivíamos — dei de ombros e continuei — Acho que ela sente falta. A gente teve que vir para cá, e deixamos tudo que tínhamos lá...
— Vocês saíram de lá por causa da guerra?
— Aham.
— Deve ter sido difícil — Hailee suspirou.
— E foi. Meu pai era advogado, ganhava até que bem, e agora ele passa a maior parte do tempo que consegue longe de casa, porque ele preferia estar morto a estar vivendo essa vida. Só que ele dirige um táxi pela cidade, o que se você for ver é quase a mesma coisa que a morte — falei e Hailee riu de leve da última parte.
— Ele não conseguiu emprego aqui como advogado?
— Ele tinha que pagar para conseguir se certificar de novo, e nós não tínhamos dinheiro para que ele fizesse isso — respondi — Mas enfim. Ele fica fora de casa o dia todo, para evitar minha mãe. Essa que aparentemente está depressiva... — falei e olhei para Hailee, vendo que ela me encarava com um olhar estranho — O que foi? Você tá me olhando como se eu fosse algum experimento científico que deu errado.
— Desculpa — ela balançou a cabeça de leve — É só que, eu fiquei interessada. A sua mãe... Qual foi a última vez que você viu ela bem?
— Oh, acho que quando eu fiquei muito doente — falei.
— Ela ficou feliz? — Hailee perguntou surpresa.
— Não feliz por eu ter ficado doente. Ela só... Ela ficou feliz por conta da atenção que tinha. Quero dizer, eu tinha muita atenção, mas eu estava mal a maioria do tempo, totalmente inconsciente. Ela não, então a atenção ia pra ela, e ela era perguntada toda hora como estava. Os médicos, as enfermeiras, o staff do hospital. Era tanto drama, e a impressão é que ela adorava aquilo. Mas enfim, quando eu fiquei melhor tudo isso passou e ela voltou a ficar naquele estado de sempre.
— Talvez ela só queira saber e ter certeza que alguém precisa dela. Talvez ela queira sentir que é importante — Hailee falou, e eu não soube exatamente o que responder então ficamos em silêncio por alguns segundos, até ela apontar para um papai noel roxo pendurado ali perto — Meu deus, o que é aquilo?
— Isso é coisa da Santa, ela adora comprar esses negócios assim — falei — Ela é chinesa, e ela sabe exatamente aonde encontrar essas coisas. É assustador mas misteriosamente isso vende.
— É horrível — Hailee riu de leve e eu acompanhei.
— E isso nem é a pior coisa da loja.
• • •
𝑪𝒉𝒊𝒄𝒌𝒆𝒏 𝑾𝒊𝒏𝒈𝒔 — 𝑺𝒂𝒎𝒎 𝑯𝒆𝒏𝒔𝒉𝒂𝒘
— Você deveria realmente estar comendo isso? — Hailee perguntou enquanto andava em círculos. Estávamos na praça perto da loja, eu sentada comendo uma pequena porção de frango apimentado de um restaurante mais simples que tinha ali por perto, e ela inquieta andando para todo lado.
— Não começa. Você também não — falei revirando meus olhos e então busquei o olhar dela, mas Hailee tinha desaparecido da minha frente.
Franzi minha sobrancelha, até que ouvi:
— Aqui em cima — ela disse e eu levantei o rosto apenas para ver ela em cima da elevação atrás de mim.
— Deus, como você foi parar aí?
— Eu só subi — ela deu de ombros — Mas enfim, levando em conta o que você passou, você não deveria estar comendo quinoa, salada ou qualquer outra coisa assim?
— Talvez — dei de ombros e dei uma última mordida — Mas esse frango apimentado com chips é parte de um plano maior para eu me tornar famosa e morrer igual ao Kurt Cobain e a Amy Winehouse, aos 27 anos.
— Quantos anos você tem mesmo? — Hailee perguntou se sentando ao meu lado.
Eu ri de leve e respondi:
— Quarenta e cinco.
— Oh, é bom ter sonhos — ela brincou.
— Brincadeiras à parte, eu tenho vinte e três.
— Hm, então você ainda tem tempo — ela disse ainda em tom de brincadeira — Mas sério, termina isso logo. Eu quero te levar em um lugar — ela se levantou e eu a olhei com uma expressão confusa.
— Aonde a gente vai?
— Eu tenho uma surpresa para você. Obviamente não posso dizer o que é, porque aí não seria uma surpresa, mas você vai gostar.
• • •
Hailee mais uma vez estava me levando para uns cantos apertados e escuros. E eu não sei porque, mas estava seguindo ela sem problema algum.
Estávamos já bem longe de onde eu trabalhava. Tínhamos pegado o metrô, e fomos parar bem perto da minha casa. Mas Hailee estava indo para um lugar que eu nunca tinha ido por ali, e eu não sabia nem o que esperar.
— Tem algo errado comigo — falei.
— Porque? — Hailee perguntou. Ela fez um sinal pedindo para eu ir pra frente dela, e apontou para uma escada presa na parede, indicando que eu deveria subir.
— Eu estou num lugar desconhecido com alguém que não conheço direito, subindo uma escada que eu não sei aonde vai dar — falei começando a subir a escada.
Hailee veio logo atrás de mim.
Nos levantamos e ela continuou andando até chegar na frente de uma porta enorme.
Hailee se apoiou na porta e fez uma imitação de James Bond, como se estivesse mesmo em um dos filmes. Eu balancei a cabeça, não acreditando naquilo.
— Você tá realmente imitando o James Bond? — perguntei rindo de leve.
— Ah, vamos lá — ela me olhou sorrindo — Isso foi muito bom. Mas agora não é hora disso. Vem — ela estendeu a mão direita na minha direção e eu segurei, sentindo ela me puxar com cuidado e abrir a porta — Agora é hora de um pouco de romance.
Assim que entramos no lugar eu pude ver que era um ringue de patinação. As luzes do ringue ainda estavam acesas, mesmo sendo tarde da noite, e tudo ali era lindo.
— Gostou? — Hailee perguntou.
— Sim, eu... Adorei — sorri de leve e Hailee continuou me puxando na direção do ringue. Ela soltou minha mão por alguns segundos e foi até as prateleiras de patins de gelo, pegando dois pares.
Ela me estendeu um que era perfeito para os meus pés, e calçou o outro. Assim que estávamos prontas, ela voltou a estender a mão pra mim, me ajudando a manter o equilíbrio.
— Você não podia fazer um teste sem saber fazer o mínimo — ela comentou.
— E você vai me ensinar a patinar?
— A ideia é essa — ela deu de ombros — Mas antes, acho que a gente precisa de um pouco de música — ela falou e apontou para o bolso do meu casaco, aonde meu celular estava. Eu imediatamente entendi o que ela quis dizer e tirei o meu celular do bolso, junto dos meus fones de ouvido. Eu encaixei um dos fones no meu ouvido e outro no de Hailee e então coloquei Those Eyes do New West para tocar.
Voltei a guardar meu celular e Hailee me puxou para o ringue de gelo. Ela envolveu ainda mais os braços ao redor do meu corpo, e com cuidado me puxou para o meio do ringue.
Ela me ensinou o básico. Alguns poucos movimentos que não eram tão difíceis mas que não necessariamente foram fáceis.
Andamos por alguns minutos, fizemos algumas voltas e rimos de coisas bobas. Com Hailee me contando algumas poucas coisas sobre si, e perguntando outras sobre mim.
No tempo que Those Eyes se encerrou Run da Taylor Swift com o Ed Sheeran se iniciou e Hailee me puxou para mais perto.
"Me dê as chaves, eu trago o carro de volta. Não deveríamos estar nesta cidade.
E meus amigos, eles não sabem, eu iria embora antes de te deixar ir.
Então me dê uma razão e não diga não, não.
Há uma corrente ao redor de sua garganta, um pedaço de papel aonde eu escrevi 'Eu espero por você.'
Há uma chave na corrente, há uma foto em uma moldura, leve ela com você.
E corra, como se você fugisse da lei.
Querida, vamos correr, fugir de tudo isso.
Podemos ir aonde nossos olhos podem nos levar, ir onde ninguém mais está.
Então você ri como uma criança e eu vou cantar como se ninguém se importasse. Ninguém para ser, ninguém para falar.
Poderia ver esta visão uma centena de vezes. Céu azul pálido refletido em seus olhos.
Então me dê uma razão e não diga não, não.
E a nota do pingente, você a guarda em seu bolso desde que eu a dei para você.
Você está com o coração aberto, vou levá-lo quando eu sair e o segurar para você.
E corra, como se você fugisse da lei.
Querida, vamos correr, fugir de tudo isso.
Podemos ir como se eles estivessem tentando nos perseguir, ir onde ninguém mais está.
Tinha esse buraco no meu coração.
Essa coisa foi um tiro no escuro.
Digamos que você nunca vai deixar que eles nos separem.
E eu a seguro enquanto corremos"
Ela colocou as mãos na minha cintura e meu braço foi imediatamente para os ombros dela. Acabamos nos aproximando ainda mais, ficando quase coladas, e meu rosto descansou no ombro de Hailee.
Eu fechei meus olhos por alguns segundos, aproveitando tudo aquilo, e senti o aperto dela em mim ficar um pouco mais forte só que ainda sim carinhoso.
Continuamos ali por mais alguns minutos, dançando de maneira leve. E Hailee, me surpreendendo, começou a cantar suavemente, com um tom de voz rouco e baixo mas perfeito e calmo.
— And run, like you'd run from the law. Darling, let's run, run from it all. We can go where our eyes can take us, go where no one else is, run — a voz calma dela tomou nosso espaço e eu sorri de leve.
Nosso momento parecia não ter um fim, e por segundos eu realmente quis que não tivesse. Mas nada dura para sempre, e a voz do segurança do lugar nos tirou da nossa bolha.
Ele chegou gritando que o ringue estava fechado e aquilo era invasão de propriedade privada. Eu ri de leve e me senti sendo puxada por Hailee em direção a saída do lugar. No caminho pegamos nossos sapatos mas não tivemos tempo de devolver os patins de gelo, então saímos daquele jeito mesmo, correndo do jeito mais idiota possível.
Eu e ela estávamos rindo como se aquilo tivesse sido a coisa mais engraçada do dia, e só paramos quando chegamos na rua de frente para o ringue.
Tinha um ponto de ônibus ali perto, e foi para lá que seguimos. Eu me sentei no banco que tinha ali e Hailee me acompanhou.
Ela tirou os patins e eu fiz a mesma coisa.
— Divertido, grátis, ilegal e romântico — comentei — Eu chamo isso de encontro perfeito.
— E prático, não se esqueça disso — Hailee falou — Amanhã você tem um teste, e eu gosto de pensar que eu vou ter uma parte na sua jornada para a fama — ela brincou.
— Claro que você vai ter — falei com um tom irônico.
— Lembre de mim quando você estiver no topo ganhando Tony's, Emmy's, Grammy's e mais mil outros prêmios.
— Sem chance. Hailee o que...? — brinquei mas um segundo depois me lembrei que realmente não sabia o sobrenome dela — Aliás, qual o seu sobrenome?
— Steinfeld — ela deu de ombros.
— Hm, você parece uma Steinfeld — falei.
— Obrigada, eu acho — ela sorriu.
— Hm, e agora? — perguntei de repente.
— Agora o que?
— O que vamos fazer?
— Primeiro vamos calçar nossos sapatos — ela falou e só aí eu lembrei que ainda estávamos sem eles.
Quando finalmente calçamos nossos sapatos ela apontou para o ônibus que se aproximava e disse:
— Eu preciso pegar aquele.
— Então aqui é aonde a gente se despede — eu sorri sem muita animação, não querendo que aquela noite tivesse um fim.
— Aparentemente sim — ela deu de ombros e se levantou — Mas a gente se vê depois. Eu te encontro, eu sempre faço isso — ela falou de um jeito doce e eu sorri balançando a cabeça positivamente.
Eu me levantei e juntas observamos o ônibus se aproximar. Não sabíamos ao certo como terminar aquele noite. A verdade é que por mim ela nem acabaria.
— Então... Tchau — Hailee falou quando o ônibus finalmente parou. Eu me aproximei dela e em um movimento totalmente impensado deixei um beijo nos lábios dela. Não durou nem um segundo mas foi o suficiente para deixar meu coração quente e para fazer uma corrente de energia correr pelo meu corpo. Hailee mostrou ter sentido o mesmo e sorriu de leve. Ela pareceu perder o equilíbrio momentaneamente enquanto se afastava, mas antes de tomar mais distância ela voltou a me beijar. As mãos dela foram para o meu rosto e dessa vez trocamos mais do que um simples encostar de lábios. Foi bem mais intenso e bem mais demorado, e só nos afastamos quando o motorista do ônibus gritou alguma coisa falando que ele não tinha todo o tempo do mundo. Hailee se afastou e antes de subir no ônibus ela parou uma última vez para deixar um breve beijo nos meus lábios, o que foi rápido, e quando ela enfim entrou no ônibus ela carregava um sorriso leve no rosto, e eu não estava muito diferente.
Eu acenei quando o ônibus começou a se movimentar e ela fez a mesma coisa que eu tinha feito quando os papéis estavam invertidos, e mandou um beijo no ar, que eu "peguei" e coloquei perto do meu coração, vendo o sorriso dela pela janela do ônibus aumentar ainda mais.
Me deixei respirar calmante quando o ônibus sumiu da minha vista e suspirei voltando a me sentar no banco, ao lado dos patins de gelo, que por sinal eu tinha que devolver, mas eu nem estava me preocupando com isso no momento.
Fechei meus olhos por alguns segundos e me deixei reviver o que tinha acontecido não havia nem cinco minutos. Os lábios de Hailee nos meus, e toda aquela sensação boa.
Eu sabia o que estava sentindo. E por incrível que pareça aquilo não me assustava.
Eu estava apaixonada por uma garota que tinha conhecido não tinha nem três dias direito. E tudo estava bem, porque eu gostava de sentir aquilo. Gostava do que Hailee me fazia sentir, do que ela me causava.
Era novo, mas ao mesmo tempo tão familiar.
Era como se...
Como se ela estivesse trazendo de volta alguém que há tempos eu achava ter enterrado de vez. A garota alegre, feliz, positiva, a garota que eu costumava ser. A garota que eu amava ser, mas que em algum momento tinha se perdido na bagunça que era minha vida. Com as questões de saúde, as coisas com a minha família... Eu tinha parado de viver mas talvez estivesse começando a fazer isso de novo.
• • •
Eu fui trabalhar no dia seguinte disposta a fazer algo legal para Santa. Por isso a primeira coisa que eu fiz quando cheguei na loja foi procurar o homem que tinha chamado a atenção dela.
E eu o encontrei.
Eu falei com ele por alguns minutos e disse que Santa havia adorado ele, que eles pareciam bons um para o outro e que ele deveria chamar ela para sair já que a resposta com certeza seria sim. E assim ele fez.
Ele entrou na loja e teve uma conversa longa com Santa sobre Natal. Eles falaram sobre como amavam essa época de ano, e depois de muito assunto ele chamou ela pra sair.
A manhã na loja passou bem, porque Santa estava feliz, eu estava bem, e extremamente animada para fazer meu teste para o musical de Frozen na hora do almoço.
E lá eu fui.
Eu cantei bem, consegui ficar firme em cima dos patins graças as dicas de Hailee, e dei o meu melhor. No fim os avaliadores falaram que entrariam em contato, mas ele não mostraram interesse e nem ficaram impressionados e eu já soube na hora que não entrariam em contato. Mas não ter passado no teste não fez eu ficar pra baixo como achei que ficaria.
Eu me cobrei, óbvio. Mas aceitei tudo bem melhor do que da última vez.
No fim do expediente na loja eu estava me preparando para fechar tudo enquanto Santa estava terminando de se arrumar pra sair com o novo "namorado" dela.
— Tudo certo para o encontro? — perguntei.
— Sim — Santa sorriu animada.
— E aonde o Sr. Natal vai te levar?
— Sr. Natal? — Santa me encarou e riu do apelido que eu tinha dado para o namorado dela — Enfim, ele não me disse. Ele falou que é surpresa.
— E qual é o nome dele mesmo?
— Eu não sei pronunciar — Santa deu de ombros como se não fosse tão importante — É um nome islandês cheio de "Yoghs..." e letras estranhas. Quando eu tento dizer eu pareço um gato engasgado, então eu decidi chamar ele de "garoto".
— Oh, pelo menos seu nome é fácil dele falar né — comentei.
— Qual? Huang Qing Shin?
Encarei Santa incrédula e perguntei:
— Seu nome não é Santa?
— Não, eu escolhi ser chamada assim por causa da loja — ela falou — Quando eu trabalhei no pet shop eu me chamava Kitty. Na época do restaurante de comida saudável eu me chamava Miso, e na padaria eu me chamava Muffin.
— Muffin?
— Sim, "Muff" para os amigos.
— Que ótimo — falei irônica — Como eu não sabia disso?
— Você nunca perguntou — ela deu de ombros — Enfim, como eu estou? — Santa se virou, eu a encarei e assenti positivamente.
— Tá bonita — falei e ela riu de leve, de um jeito que eu nunca tinha visto — Você riu igual uma garota?
— Eu sou uma garota.
— Não exatamente — franzi minhas sobrancelhas.
— Oh, fica quieta — ela revirou os olhos — Hm, e sua nova namorada?
— Eu não tenho namorada — dei de ombros.
— Tá mas e aquela garota que você fica encarando pelo vidro ao invés de trabalhar?
— Eu fiz isso uma vez — corrigi — E eu não sei. Ela não tem celular, então é meio difícil falar com ela.
— Olha, ela é inteligente — Santa comentou.
— Que inteligência é essa, meu senhor? — falei.
— Bem, ela deve aparecer hoje, e eu tenho certeza que você vai terminar a noite com um sorriso no rosto. E eu, eu já vou — Santa disse e me deu um "tchau" breve antes de caminhar até a saída da loja.
Eu vi ela encontrar o namorado na frente da loja e segundos depois eles saíram andando, até sumirem da minha vista.
Eu suspirei de leve e me deixei encostar na bancada do caixa, pensando aonde Hailee estaria numa hora daquelas.
Ela tinha sumido o dia todo.
• • •
Eu saí da loja e passei no abrigo de moradores de rua apenas para ver se Hailee estava por lá, mas ela não estava.
Um dos voluntários disse que não havia visto ela durante o dia todo, mas que daria o recado de que eu tinha passado por lá procurando por ela caso ela aparecesse mais tarde ou no outro dia pela manhã. Eu agradeci por isso, e estava pronta para ir embora quando o garoto me parou e perguntou se eu podia ajudar na distribuição de biscoitos e da sopa naquela noite, e eu ajudei sem muito problema.
Afinal, eu não tinha muito o que fazer mesmo.
Em relação a Hailee, eu não sabia aonde ela morava, ela não tinha um celular para o qual eu pudesse ligar, além de que eu não tinha ideia se ela passaria perto da loja naquela noite ainda, por isso quando terminei de ajudar no abrigo eu segui direto para casa, já que estava ficando tarde.
E meu caminho até lá foi calmo, mas eu acabei chegando mais tarde do que deveria, por justamente ter parado no abrigo.
Meus pais e meu irmão estavam lá, me esperando para jantar. E ao ver a mesa toda arrumada eu me lembrei do porquê daquilo.
Era o dia da comemoração da promoção de Troye no trabalho e eu tinha esquecido completamente.
— Desculpa pelo atraso — pedi me sentando na mesa, ao lado da minha mãe, de frente para o Troye.
— Aonde você estava? — minha mãe perguntou.
— Eu estava voluntariando num abrigo de moradores de rua perto do trabalho.
— O que isso quer dizer? — ela me encarou sem entender.
— Quer dizer ajudar, mãe — falei — Eu estava ajudando pessoas.
— Você? Ajudando? — Troye soltou uma risada irônica — Claro. E eu salvei uma garotinha órfã de um carro em chamas.
— Você é tão engraçado, Troye — encarei meu irmão com um sorriso falso no rosto e ele revirou os olhos mas ficou quieto.
— Enfim, eu fiz um jantar especial para comemorar a promoção do Troye — minha mãe falou.
— Segunda promoção — Troye corrigiu.
— Uma grande conquista — meu pai falou pela primeira vez naquela noite, desde que eu tinha aparecido ali.
— Obrigado, pai — meu irmão sorriu de leve.
— Aqui, come um pouco — minha mãe me estendeu a torta de frango que normalmente eu adoraria comer, mas já era tarde e eu não estava com tanta fome. Além de que não ter visto Hailee tinha me colocado realmente para baixo, o que talvez não fosse tão saudável mas o que eu poderia fazer se estava já com saudade da garota!?
— Não, obrigada — balancei a cabeça negativamente, e de canto de olho eu vi Troye suspirar irritado — Aconteceu alguma coisa? — perguntei já sem muita paciência para qualquer cena que ele estivesse querendo fazer.
— Deve ter acontecido, para você não querer comer um dos seus pratos favoritos — ele falou e revirou os olhos.
Era isso.
Ele estava irritado, e não tinha muito como julgar, porque mais uma vez minha mãe tinha feito aquilo sobre mim, sendo que a noite era sobre Troye.
— Eu só não estou com fome — dei de ombros.
— É sempre isso, né — Troye falou, com o olhar focado no meu — Você. Você não tá com fome. Você tá com fome. Você tá cansada. Você tá animada. Você-
— Troye...
— Deus! você é tão cansativa às vezes, S/n — ele levantou as mãos e balançou a cabeça de leve — É sempre assim. E eu estou tão cansado dessas suas merdas.
— Troye, pare. Ela está doente — minha mãe falou e eu suspirei fundo.
— Ela não está mais doente, mãe.
— É. Ela não está mais doente — meu pai falou.
— O que você sabe sobre isso? — minha mãe encarou meu pai — Você nunca está aqui. Você não sabe nada dessa família.
— E é exatamente por isso que eu nunca estou aqui — meu pai apontou para minha mãe.
— Eu não estou mais doente, mãe — eu falei baixo, tentando encerrar aquela situação logo.
— Claro que você está doente — minha mãe me encarou — Porque você ainda está trabalhando naquela loja, perdendo tempo, sendo que você sempre foi a mais brilhante de todos aqui, se não é porque você está doente?!
— Oh. Obrigado, mãe — Troye soltou um riso irônico.
— Você me entendeu, Troye — minha mãe revirou os olhos — Você é um ótimo advogado, você trabalha duro. Mas S/n é talentosa, ela é iluminada. Só que agora ela está gastando o tempo dela, a vida dela, naquela loja, sem fazer nada.
— Uau, gastando meu tempo e minha vida — eu falei sem acreditar que tinha escutado aquilo mesmo e suspirei de leve — Que ótimo, mãe.
— Mas é verdade. E você, Troye, você tem o trabalho que você sempre sonhou em ter — minha mãe disse.
— O ponto é esse, mãe. Eu não sonhei — Troye falou — O Papai não pôde mas trabalhar como advogado e eu tive que fazer isso, independente do que eu queria fazer mesmo.
— Você queria dirigir um táxi? — meu pai perguntou em um tom irônico e um pouco irritado.
— Talvez eu quisesse — Troye aumentou o tom de voz — Eu não sei o que eu quero, ninguém nunca me perguntou isso — ele riu com amargura — Que idiotice.
— Troye... — minha mãe tentou chamar a atenção do meu irmão mas ele já estava extremamente zangado com tudo.
— Não! A senhora fica aí achando que tá tudo bem falar que a S/n é mais brilhante, mais inteligente, mais promissora, e aí você espera que eu aceite ouvir tudo isso só porque ela estava doente.
— Troye, fica calmo — eu pedi.
— Não, eu não quero ficar calmo — ele falou irritado e aumentou o tom de voz — VOCÊ NÃO LIGA MAIS PARA NADA S/N, TALVEZ POR QUASE TER MORRIDO VOCÊ ACHA QUE TÁ TUDO BEM AGIR DESSE JEITO MAS NÃO ESTÁ. A VERDADE É QUE EU ACHO QUE VOCÊ TEM VERGONHA DE QUEM SE TORNOU — ele apontou na minha direção — VOCÊ TEM VERGONHA DISSO.
— Eu tenho vergonha de que eu me tornei? — eu ri irônica. Troye continuou me olhando irritado, e eu devolvi o olhar, porque naquele ponto eu já estava tão irritada quanto — E você? E o Timothée? Você fala de mim e esquece das próprias merdas.
— Cala a boca — ele falou.
— O que está acontecendo? — minha mãe perguntou.
— Numa noite tão especial como essa, aonde está seu namorado, hein? — perguntei.
— Timothée é o colega de apartamento do Troye — minha mãe falou, sem tanta certeza na voz.
— É, e sempre vai ser assim, né Troye? Aposto que o Timothée ama essa situação — eu falei.
— Deus... — Troye se levantou e empurrou a cadeira com um pouco mais de força que o normal — Você é uma pessoa horrível, S/n — ele disse e saiu sem dizer mais nada.
Meu pai apoiou o rosto nas mãos e suspirou, enquanto minha mãe tentou ir atrás de Troye, mas ele foi mais rápido e conseguiu sair com o carro antes mesmo dela sair de casa.
Eu sabia que tinha feito merda mas Troye também tinha falado coisas horríveis. Nunca tínhamos chegado naquele ponto, só que agora não tinha o que fazer. A situação toda estava engasgada havia tempo, uma hora aquilo aconteceria, era só uma questão de tempo.
• • •
𝑪𝒐𝒎𝒆 𝑩𝒂𝒄𝒌 𝑻𝒐 𝑬𝒂𝒓𝒕𝒉 — 𝑴𝒂𝒄 𝑴𝒊𝒍𝒍𝒆𝒓
𝑀𝑦 𝑟𝑒𝑔𝑟𝑒𝑡𝑠 𝑙𝑜𝑜𝑘 𝑗𝑢𝑠𝑡 𝑙𝑖𝑘𝑒 𝑡𝑒𝑥𝑡 𝒊 𝑠ℎ𝑜𝑢𝑙𝑑𝑛'𝑡 𝑠𝑒𝑛𝑑, 𝑎𝑛𝑑 𝒊 𝑔𝑜𝑡 𝑛𝑒𝑖𝑔ℎ𝑏𝑜𝑟𝑠, 𝑡ℎ𝑒𝑦'𝑟𝑒 𝑚𝑜𝑟𝑒 𝑙𝑖𝑘𝑒 𝑠𝑡𝑟𝑎𝑛𝑔𝑒𝑟𝑠, 𝑤𝑒 𝑐𝑜𝑢𝑙𝑑 𝑏𝑒 𝑓𝑟𝑖𝑒𝑛𝑑𝑠. 𝐼 𝑗𝑢𝑠𝑡 𝑛𝑒𝑒𝑑 𝑎 𝑤𝑎𝑦 𝑜𝑢𝑡 𝑜𝑓 𝑚𝑦 ℎ𝑒𝑎𝑑. 𝐼'𝑙𝑙 𝑑𝑜 𝑎𝑛𝑦𝑡ℎ𝑖𝑛𝑔 𝑓𝑜𝑟 𝑎 𝑤𝑎𝑦 𝑜𝑢𝑡 𝑜𝑓 𝑚𝑦 ℎ𝑒𝑎𝑑.
Dois dias depois do meu desentendimento com Troye eu ainda não tinha visto ele, e muito menos mandado uma mensagem de desculpa.
Hailee era outra pessoa que eu também não tinha visto. Desde o nosso momento no ringue de patinação ela tinha sumido. Evaporado. Quase como se nunca tivesse aparecido na minha vida.
O pessoal do abrigo não tinha ideia de onde ela estava, e eu não conhecia outro lugar, se não aquele e o jardim, para procurar ela.
E tudo que eu mais precisava era conversar, não só conversar, mas conversar com ela.
Na noite de segunda, depois que eu fechei a loja, eu segui para o jardim que Hailee tinha me levado. Eu estava fazendo isso havia dois dias, e sempre que chegava lá as mesmas cinco pessoas estavam já envoltas em seus próprios mundos, sentados e observando a neve cair. Naquela segunda, não seria tão diferente se não fosse Hailee sentada num banco mais afastado.
Eu suspirei fundo e caminhei até ela, um pouco afobada até, querendo saber logo porque ela tinha sumido, e querendo falar já de uma vez o que eu estava sentindo.
— Hey! — cumprimentei, e me sentei ao lado dela.
— Hey! — ela sorriu de leve, e colocou as mãos no bolso do sobretudo rosa que estava usando — O que você está fazendo aqui tão tarde?
— Eu me acostumei a vir aqui nesse horário — falei — E você? Aonde você se meteu?
— Aconteceu alguma coisa? — Hailee ignorou meu questionamento e fez uma pergunta em um tom preocupado, talvez reparando minha expressão. Eu estava cansada, irritada... Um misto das duas coisas.
— "Aconteceu alguma coisa"? — a olhei incrédula — V-você sumiu por dois dias. Dois dias. E eu fiquei tentando te achar, sem ter ideia de onde procurar. Só... Para de fazer isso, sumir, porque eu preciso falar com você e eu... E-eu tenho sido bem estúpida nesses últimos dias.
— Então... Eu preciso parar de ser idiota e deixar de sumir? — Hailee perguntou e eu balancei a cabeça negativamente, e soltei uma risada anasalada.
— Por favor — eu falei.
— Ok — Hailee se levantou e estendeu a mão para mim. Ela me ajudou a levantar e me puxou para um abraço de lado.
Logo começamos a caminhar em direção a saída e eu acabei perguntando:
— Aonde vamos?
— Para casa.
• • •
𝑨𝒍𝒊𝒗𝒆 — 𝑲𝒉𝒂𝒍𝒊𝒅
— Pode se sentar — Hailee falou assim que abriu a porta do próprio apartamento.
O lugar não era tão grande, mas tinha um espaço considerável. A sala, o quarto e a cozinha eram todos em conceito aberto, e havia apenas um corredor que levava para o que era o banheiro. A decoração era simples. Havia uma estante cheia de discos, ao lado de uma vitrola azul, além de alguns pôsteres espalhados pelo lugar, tanto de filmes como Trainspotting e O Grande Hotel Budapeste, como de anúncios de corridas e de carros antigos em propagandas vintage.
Na pequena estante embaixo da televisão suspensa havia algumas fotos de família. Várias do que eu entendi serem os pais de Hailee com ela e o irmão, que por sinal era muito parecido com ela. E muitas outras só dos dois juntos.
Hailee tirou o sobretudo que usava, e deixou na cama. Ela apontou para o sofá da sala e fez sinal para que eu me sentasse, e assim eu fiz.
Ela acabou do meu lado, virada pra mim, e sem esperar eu dizer qualquer coisa, ela disse:
— Você não é você mesma.
— Não sou? — perguntei sem entender.
— Não. Mas talvez eu esteja errada — ela deu de ombros — Talvez isso tudo seja mais você do que nunca.
— Eu sou uma bagunça — eu comentei — Aqui — eu coloquei a mão no meu peito, em cima do meu coração — Eu sou uma bagunça aqui.
— E porque? — ela perguntou parecendo realmente curiosa para me ouvir e tentar entender o que eu estava sentindo.
— Quando... Quando eu fiquei doente, foi um problema no coração — eu disse. Hailee me encarou compreensiva, com cuidado estampado no rosto dela, e pediu para que eu continuasse a falar — Eu consegui um transplante. E eu não costumo contar para as pessoas porque elas ficam estranhas com tudo isso, mas eu confio em você e eu sei que você não vai ficar estranha — eu afastei com cuidado a parte de cima da minha blusa, dando uma visão clara da cicatriz enorme que eu agora carregava.
Hailee se aproximou um pouco mais de mim e estendeu a mão na direção da cicatriz. Ela me olhou, perguntando se podia tocar, e eu balancei a cabeça, sinalizando que sim. E ela tocou, por alguns segundos, com todo o cuidado do mundo.
— Eles tiraram meu coração — eu falei — Eles tiraram e jogaram fora. E eu... Eu não sei o que eles colocaram de volta, porque desde que eu melhorei eu me sinto estranha e... Diferente, e perdida e confusa, como se eu tivesse perdido a minha parte mais especial , como se eu estivesse carregando algo que não é verdadeiramente meu. E as pessoas ficam me dizendo que eu deveria estar feliz de estar viva, que eu sou sortuda por isso — eu senti as lágrimas começarem a cair dos meus olhos, e em poucos segundos eu estava uma bagunça, me segurando para não cair em um choro sem fim — Mas eu não me sinto nem um pouco sortuda. Eu me sinto meio morta, como se eu não estivesse 100% aqui, como se eu não devesse estar aqui.
— Vem aqui — Hailee estendeu os braços e eu me aconcheguei no colo dela. Ela deixou alguns beijos no meu rosto e me deixou continuar falando.
— Eu sinto que eu deveria ser especial — eu falei em meio ao meu choro — E eu não pedi para ser, mas eles... Todo mundo fez eu me sentir especial quando eu estava doente. E eu era especial quando eu quase morri. E aí eu passei pelo transplante mas... Todo mundo esperava que eu continuasse minha vida normalmente, que eu vivesse como se nada tivesse acontecido. Que eu agisse de maneira normal.
— Não existe essa coisa de normal — Hailee falou — É uma palavra estúpida, e ela faz um estrago enorme. Cada um tem seu próprio tempo.
— Nada parece certo... E você, você é a única pessoa que faz eu me sentir... Estável. Como se eu existisse.
— Eu sou só uma garota estranha que não tem um telefone — Hailee falou e eu ri de leve, ainda com lágrimas nos olhos, mas tentando secar elas — É bem triste minha situação — ela brincou.
eu ri de leve e permaneci quieta, enquanto Hailee continuava fazendo um carinho confortável no meu cabelo.
— Eu sabia cantar antes, sabe — comentei depois de alguns segundos em silêncio — E agora nem isso eu faço direito. Acontece que eu já não sei fazer nada, e eu acho que a coisa toda de ser especial é superestimada. Ser um ser humano, que vive e faz as coisas e sei lá... É tudo muito difícil — eu olhei para Hailee, agora já sem resquício de choro no meu rosto e na minha voz — Como você consegue viver bem? Ser tão positiva? Você parece ter controle de tudo.
— Eu definitivamente não tenho — Hailee sorriu de leve — Eu sou bem complicada ás vezes. Sabe, uma vez me disseram algo que me ajudou muito. "Toda pequena ação no dia-a-dia, faz e desfaz caráter". Significa que você é feito de tudo que você faz, e está tudo certo.
— Mas e se eu não souber o que eu sou? Porque eu não sei.
— E tá tudo bem não saber. Tá tudo bem ser inconsistente às vezes. Não ter certeza das coisas. Afinal, porque é que você tem que ser qualquer coisa imediatamente? Não... Você tem que deixar as coisas acontecerem no seu tempo.
— Hailee — minha voz soou calma e baixa, e ela me olhou carinhosa.
— Sim?
— A gente pode deitar na cama?
— Claro.
Hailee se levantou e me ajudou a fazer o mesmo. Logo ela me puxou na direção da cama de solteiro que ficava num canto ao lado de uma janela enorme, com vista para cidade.
Eu me deitei, Hailee me cobriu e se sentou do meu lado, de frente para mim, mas mantendo a distância. Eu a olhei confusa e perguntei:
— Você não vai se deitar?
— Vou, mas no sofá.
— Hailee... Eu falei "A gente pode se deitar na cama", eu e você.
— Eu sei, mas a gente mal se conhece e...
— Não, não. Não vem com essa. Eu acabei de falar coisas que nem minha mãe sabe que eu sinto.
— Eu sei, e é exatamente por isso que você precisa de espaço e não da minha presença em cima de você fazendo sabe-se lá o que — ela falou e me olhou com um olhar doce — Só hoje.
— Hailee...
— Sério, você precisa dormir um pouco. E eu vou ficar logo ali no sofá.
— Ok, então canta alguma coisa para eu dormir. Pelo menos isso — pedi.
— Você é a cantora aqui — Hailee sorriu — E sua voz é linda.
— Mas eu é quem vou dormir — eu disse e ela me olhou com as sobrancelhas arqueadas — Por favor, canta alguma coisa, me dá um beijo de boa noite e eu prometo que vou dormir...?
— Promete?
— Aham — sorri e Hailee riu se dando por vencida.
Logo ela começou a cantar e eu reconheci as primeiras letras de uma das músicas que mais gostava.
— My love was as cruel as the cities I lived in. Everyone looked worse in the light. There are so many lines that I've crossed unforgiven. I'll tell you the truth, but never goodbye. I don't wanna look at anything else now that I saw you. I don't wanna think of anything else now that I thought of you. I've been sleeping so long in a 20-year dark night. And now I see daylight, I only see daylight.
— Tá vendo, sua voz é linda — falei e ela se inclinou em minha direção.
Ela deixou um beijo leve em meus lábios, e eu fechei os olhos nos poucos segundos que aquele momento durou. Quando Hailee se afastou ela tinha um sorriso tímido no canto das lábios. E eu, sem pensar direito, acabei falando:
— Eu acho que estou me apaixonando por você.
• • •
Hailee já estava de pé quando eu acordei, me esperando com um café da manhã na bancada da cozinha. Não falamos nada sobre o que eu tinha revelado na noite anterior, e eu sentia que tinha uma leve tensão no ar, mas Hailee foi boa em tentar disfarçar isso. Depois de eu me arrumar e de tomarmos café, saímos juntas. Ela em direção ao trabalho dela e eu ao meu.
Eu saí do apartamento dela decidida a arrumar a bagunça que minha vida se encontrava. Por isso, comprei materiais de pintura novos e bons para Zayn, como um pedido de desculpa. Comprei um novo peixe para o cara do parque, peixe esse que a morte estava na minha conta. E mais uma vez me desculpei com Santa, sobre a invasão e o fato de que eu tinha me descuidado, ao ponto disso acontecer. Eu precisava começar de um jeito, e foi acertando minhas últimas besteiras que eu comecei a ajeitar tudo. O restante da minha semana se passou assim, e eu estava começando a tomar um rumo correto na vida.
Apesar disso, uma semana depois do meu momento de desabafo com Hailee, eu ainda não tinha a visto. Era como se pelo menos uma coisa na minha vida tivesse de ser bagunçada e complicada, e Hailee tinha tomado esse lugar. Ela tinha sumido mais uma vez e ainda que eu estivesse triste por isso, eu decidi que não ia deixar aquilo me colocar para baixo.
E aproveitando a onda de positividade e mudança que tinha tomado conta de mim, eu decidi que iria arrumar algum dinheiro pro abrigo de moradores de rua. Não faria mal algum, e eu estaria verdadeiramente ajudando alguém. Por isso, no início do dia, lá estava eu, sentada, colorindo um pequeno cartaz com temática natalina, que eu usaria para chamar atenção e arrecadar dinheiro enquanto eu cantava na frente do abrigo. Eu havia chegado bem cedo na loja e estava usando aquele tempo para fazer aquilo.
— Tudo bem? — ouvi a voz de Santa e o barulho da cortina, que dava para o escritório nos fundos, abrindo.
Eu a olhei e sorri toda simpática.
— Tudo.
— E você está aqui cedo porque? Não me diga que sua mãe também te expulsou de casa.
— Não, eu só estou fazendo um negócio para alguém — dei de ombros — E o encontro de ontem? Foi o quinto encontro com o seu namorado, né? Foi bom?
— Ele ainda não é meu namorado, mas foi ótimo — Santa suspirou — Só que eu descobri ontem que ele é um especialista em Sauerkraut.
— Mentira... — falei fingindo uma surpresa apenas para continuar o assunto.
— Pois é, e eu não sou uma pessoa que gosta de coisas azedas, mas eu gosto dele então tenho que aprender a gostar de Sauerkraut.
— As coisas que a gente faz por amor — comentei. Santa assentiu de leve e então se virou para ir em direção a frente da loja.
Antes dela sair eu falei:
— Tem um café para você aí na bancada — avisei.
Santa apareceu quase que no mesmo instante com o café na mão e me encarou meio desconfiada.
— O que você quer?
— Nada — falei sincera.
— E porque o café?
— Porque é segunda — dei de ombros. Ela me encarou com os olhos semi cerrados.
— E desde quando você traz café na segunda?
— Desde que eu decidi que vou melhorar e parar de agir igual uma idiota — falei.
Santa continuou me encarando por alguns segundos, mas por fim saiu sem dizer nada. E eu continuei a fazer o que estava fazendo.
• • •
— £5,75, dois euros e uma balinha de menta — estendi todos meus ganhos na direção de Theo, o responsável pelo abrigo.
Ele me encarou sem muita emoção e disse:
— Menos do que conseguimos por mês.
— É... Não é muito — dei de ombros.
— Mas isso aí é resultado de uma hora de puro coração e alma — Miles, um dos voluntários, que estava em pé ao lado de Theo, falou — Isso é tudo que importa. Isso aí é riqueza.
— É, é — Theo balançou a cabeça — Muito obrigado.
— De nada — sorri de leve.
— Enfim, eu tenho algumas coisas para resolver mas fique à vontade — Theo falou e saiu sem dizer mais nada.
Miles me encarou por alguns segundos e ofereceu a cadeira de frente para ele para que eu me sentasse. Eu puxei a cadeira e me acomodei e ele se sentou do meu lado.
O refeitório estava começando a encher e eu provavelmente ficaria para ajudar a distribuir os biscoitos da noite.
Miles se inclinou de leve e em um tom baixo perguntou:
— Você encontrou a Hailee?
— Ah, sim mas ela já sumiu de novo — eu respondi.
— Ela costuma fazer isso — Miles comentou — Ela vinha aqui sempre com o irmão, hoje em dia de vez em quando ela aparece. Desde que ele... — Miles se interrompeu, parecendo não ter certeza se deveria ter começado aquela frase, seja lá qual fosse ela — Enfim, ela só não vem com tanta frequência.
— Você sabe de alguma coisa — eu falei.
Miles suspirou fundo e balançou a cabeça negativamente.
— Não é meu lugar para te falar nada. A Hailee é uma pessoa incrível e eu acho que certas coisas só ela mesmo pode te dizer. Ela passou por uns problemas e... As coisas não são tão simples e fáceis como parece, como ela faz parecer. Ela age como se tudo estivesse bem e, sei lá... Ás vezes não está.
• • •
— Então, eu não consegui o papel no musical de frozen — eu comentei.
Santa, que estava me ajudando a arrumar uma prateleira no andar de cima, balançou a cabeça positivamente.
— E você tá bem com isso? — ela perguntou desconfiada e eu balancei a cabeça positivamente, mas ela continuou me lançando aquele olhar.
— Não, sério. Eu estou bem em relação ao teste — dei de ombros — Na verdade eu já não sei como me sinto em relação a todo esse negócio de teste. Talvez isso não seja tão bom pra mim, eu acho que vou dar uma pausa nisso.
— O que tem de errado com você? — Santa parou o que estava fazendo e me olhou atentamente.
— Porque? — perguntei sem entender o que ela estava querendo dizer.
— Porque isso é uma decisão muito saudável. E eu não te vejo tomar uma decisão saudável já tem muito tempo.
— Bem, não precisa se assustar. Eu vou sair hoje e beber até fazer besteira em algum canto da cidade — eu brinquei.
Santa riu de leve e voltou a fazer o que estávamos fazendo.
Continuamos daquele jeito por mais alguns minutos, até que o namorado dela apareceu na loja, e ela saiu toda animada em direção ao andar inferior. Eu ri de leve, vendo ela agir daquele jeito.
• • •
— £47.35... E um token estranho de alguma coisa que eu não conheço — eu estendi o dinheiro que tinha conseguido naquele dia na direção de Theo. Ele sorriu de leve e me agradeceu.
Theo, Miles e eu estávamos sentados no refeitório, esperando dar o horário para que o jantar no abrigo começasse a ser servido. Eu tinha cantado durante uma hora e mei, na frente do abrigo, junto de um senhor que vivia na rua, Arthur, e dessa vez as pessoas estavam realmente engajadas a ajudar. Não atoa eu tinha conseguido quase cinquenta dólares.
— Hm, acho que a gente bem que poderia fazer um show beneficente aqui no abrigo, na véspera de Natal. Arrecadar um dinheiro e fazer um jantar legal para o pessoal — Miles sugeriu, atraindo a atenção de Theo — As pessoas adoram uma boa música, e junta isso com uma boa comida...
— Isso é uma ótima ideia — Eu comentei — Eu posso ajudar a montar o show.
— Perfeito — Miles sorriu — Então, Theo? — ele perguntou apreensivo.
— A gente pode começar a organizar as coisas amanhã — Theo falou, e Miles suspirou aliviado — Bem, eu tenho coisas para resolver e vocês tem que se arrumar para servir o jantar. Qualquer coisa eu estou lá na cozinha com o pessoal.
• • •
Eu precisava me desculpar com Troye, já que ainda não tinha feito isso por puro medo. Medo de como ele me receberia. Já que eu tinha passado do ponto, e ele também, só que eu tinha tocado num lugar que eu sabia que era difícil para ele.
Mas numa manhã de quarta-feira eu decidi passar na casa dele, antes de ter que ir trabalhar.
Por isso antes mesmo das seis da manh, lá estava eu batendo na porta da casa do meu irmão.
E quem me atendeu não foi ele mas sim Timothée.
— S/n... O que você está fazendo aqui? — ele perguntou se apoiando na porta que estava meio aberta.
— Eu quero saber se o Troye está em casa — falei.
— Ele não quer falar com você — Timothée foi sincero e eu suspirei de leve.
— Ok. Só... Diga para ele que eu sinto muito, não só pelo nosso último encontro mas por tudo, e eu provavelmente nunca vou deixar de sentir muito, e e-eu... Eu fico feliz que ele tenha você. E eu sinto muito também por não termos tido a chance de nos conhecermos melhor — falei, e sem esperar uma resposta eu me virei para ir embora.
Mas a voz de Troye me parou.
— Hey! — ele chamou minha atenção e eu voltei a me virar na direção da casa, vendo meu irmão parado na porta. Timothée tinha entrado, e Troye é quem estava apoiado na porta — Só... Pedir desculpas não muda o que aconteceu.
— Eu sei — falei — E eu não quero mudar o que aconteceu. Eu só quero não fazer as merdas que fiz e repetir as mesmas besteiras.
— Olha, eu aprecio isso — elel falou sincero — E... Nossa mãe é difícil, você sabe disso. Com tudo que aconteceu, não é como se a culpa das suas ações fossem 100% suas, você passou por muita coisa e em algum momento se perdeu, eu me perdi também.
— Mas eu me encontrei, de algum jeito isso aconteceu.
— E eu fico feliz — Troye sorriu de leve — Eu espero que a gente consiga voltar a ser como uma família normal. Como éramos antes.
— Eu espero também.
— Enfim... Obrigado, por ter passado aqui.
• • •
𝑺𝒕𝒓𝒂𝒊𝒕𝒋𝒂𝒄𝒌𝒆𝒕 — 𝑹𝒂𝒍𝒆𝒊𝒈𝒉 𝑹𝒊𝒕𝒄𝒉𝒊𝒆
Faltavam cinco dias para o Natal e eu tinha algumas coisas para resolver até lá, todas relacionadas a celebração da véspera que aconteceria no abrigo de moradores de rua. Isso tinha ficado comigo e com Miles, e tínhamos que correr para conseguir montar algumas coisas. Mas sabíamos que tudo daria certo.
Muito por conta dessa organização, eu e Miles passamos a última semana colados, e acabamos ficando extremamente próximos. Num nivel quase "irmãos".
Ele, de uma maneira muito surpreendente, me entendia e sabia sempre o que falar. E eu precisava de alguém assim.
Estávamos saindo de um pequeno café, já era fim de tarde. Eu e ele estávamos caminhando pelas ruas de New York, falando de tudo e nada. Miles começou a falar da namorada, e como que se lembrando de algo ele se virou em minha direção e perguntou:
— E a Hailee? Você falou com ela?
— Ah, não — balancei a cabeça negativamente — Ela sumiu de vez.
— Bem, uma hora ela volta a aparecer — ele deu de ombros e eu assenti mas permaneci em silêncio.
Nos aproximamos da rua que levava para a casa de Miles e ele disse mais algumas coisas antes de me abraçar, se despedir e seguir o próprio caminho até lá.
Eu voltei a me virar e segui em direção ao meu destino diário. O jardim que Hailee tinha me mostrado.
Quando eu coloquei meus pés lá e meus olhos caíram no banco que eu costumava sentar, mais uma vez a surpresa estampou meu rosto. Porque Hailee estava lá, depois de dias sem aparecer. Como da última vez.
— Oi... — ela falou assim que eu me aproximei e sentei ao lado dela.
— Nós nos beijamos e você desapareceu. Já é quase um relacionamento — eu brinquei, mas sem estar carregando um tom engraçado na voz.
— S/n... A gente precisa conversar — ela me olhou por alguns segundos, mas logo desviou o olhar.
— Deus, esse tom... O que aconteceu? Você se arrependeu de ter me beijado? Você tem namorada? Você não quer nada comigo, é isso? — perguntei sem espaço para respirar direito, falando tão rápido que Hailee me encarou por alguns segundos até conseguir entender o que eu tinha falado.
— O que? Não, claro que não. Eu não tenho ninguém, ok?! E eu não me arrependi de nada, é só que...
— É só que...?
— É só que... Você não pode depender de mim, e você sabe disso — ela falou. Eu revirei os olhos, não esperando ouvir aquilo e sem entender de onde aquilo tinha surgido.
— E eu não dependo de você — falei irritada.
— Você passou por coisas traumáticas e eu só estou preocupada que você esteja se apoiando demais em mim — ela falou e eu a encarei com uma expressão de incredulidade no rosto.
— Você está sendo idiota, isso sim — suspirei fundo — Olha, se isso é algo relacionado a compromisso, saiba que eu não estou te forçando a nada. Eu não quero que você fique comigo por obrigação. Eu gostei de você? Sim, eu gostei, mas eu não posso continuar fazendo isso se isso continuar me fazendo mal — fiz sinal, apontando para ela, para a gente — Eu fico te procurando, querendo te ver e te falar das coisas, porque eu quero que você saiba tudo sobre mim. Eu quero te contar tudo de bom e ruim que aconteceu no meu dia e você nunca está por perto e isso faz eu me sentir extremamente mal em relação a mim mesma.
— S/n... — Hailee tentou me interromper mas eu continuei falando.
— Não, e agora você me vem com isso de eu estar me, segundos suas palavras, "apoiando demais em você" — falei irritada — Eu finalmente estou me sentindo como eu mesma e eu não vou deixar meu coração aberto para alguém que pode machucar ele sem pensar duas vezes.
— Eu não vou machucar ele — ela falou e tentou se aproximar, mas eu me afastei, não dando chance para nada. Hailee me encarou com um olhar triste, quase machucado por eu não querer contato, e continuou falando — Só... Tem coisas que você não sabe e eu não tenho ideia de como te falar. Além de que sim, eu sinto, senti, que você me tem como um apoio e eu não sei o quão saudável isso é, eu não sei se isso é bom. Eu só... Estou com medo. Estou com medo de não ser suficiente para suportar caso você se deixe cair de novo. Estou com medo de você se machucar assim que me conhecer por completo e ver que eu não sou essa pessoa alegre que parece bem o tempo todo.
— E você acha que eu não estou? — ri incrédula — Não de te conhecer por completo, mas de me perder. E-Eu acho que... A gente não precisa disso — falei — Eu, você... Isso não vai dar certo de qualquer maneira — balancei minha cabeça negativamente e senti algumas lágrimas ameaçando caírem dos meus olhos.
Eu me levantei, sem esperar nenhuma resposta de Hailee e saí sem um caminho certo.
Ela ainda chamou meu nome mas eu realmente não precisava de mais drama, então continuei andando sem me importar em olhar para trás.
• • •
— Oi, mãe — falei assim que abri a porta de casa.
Já estava muito tarde e minha mãe ainda estava acordada, o que não era incomum para ela, já que sono era algo que dificilmente ela tinha.
Depois do meu desentendimento com Hailee eu saí para espairecer um pouco, e acabei me perdendo no horário. E no tempo que cheguei em casa encontrei minha mãe sentada no sofá da sala com incredulidade estampada no rosto. Ela estava vendo uma reportagem sobre algumas manifestações que aconteceram no sul do país, manifestações de grupos apoiadores do presidente, escancarando intolerância.
— Aonde vamos parar? — ela perguntou em português.
Eu tirei meu casaco e joguei em uma das poltronas ali, indo me deitar no sofá.
Suspirei de leve e me acomodei com a cabeça no colo da minha mãe.
— Não tenho ideia — falei com a voz baixa.
— O que aconteceu? — ela perguntou tirando os olhos da televisão. Eu balancei a cabeça negativamente, como que dizendo "nada" mas ela semicerrou os olhos, não comprando aquilo.
— Coisas do coração — falei me dando por vencida.
Minha mãe levantou as sobrancelhas e perguntou, extremamente preocupada, se minha doença cardíaca tinha voltado. Eu ri de leve e esclareci que o problema era com meu coração mas figurativamente e quando vi já estava contando tudo para ela.
Falei de Hailee, de como nos conhecemos. Falei que ela sumia por aí, que eu sabia pouquíssimas coisas da vida dela, mas ainda assim gostava dela de verdade.
Minha mãe se mostrou interessada em tudo e assim que eu terminei de falar e explicar o necessário ela falou por vários minutos sobre como às vezes o amor era fácil e como nós fazíamos ele se transformar em um labirinto de dificuldades.
Eu ouvi tudo atentamente até ir dormir com um único pensamento na cabeça.
Eu precisava falar uma última vez com Hailee. Precisava tentar uma última vez antes de desistir de vez, porque se nada desse certo eu ao menos não teria arrependimento algum em relação a não ter tentado fazer a minha situação com ela dar certo.
Eu tinha que fazer ela entender que eu não dependia e não precisava depender dela para estar bem com a minha própria vida
• • •
𝑾𝒊𝒔𝒉 𝒀𝒐𝒖 𝑾𝒆𝒓𝒆 𝑯𝒆𝒓𝒆 — 𝑵𝒆𝒄𝒌 𝑫𝒆𝒆𝒑
24 de Dezembro, 2018.
Era pouco mais de quatro da tarde, em New York, quando Hailee ligou uma última vez para Griffin. Ela estava prestes a entrar em um avião, pra visitar o irmão, e só queria se certificar de que tudo estava certo.
— Eu só queria saber se você vai estar no Clinton Community Garden na hora que eu chegar — ela falou.
— Provavelmente — ele respondeu — Você vai trazer seu namorado?
— Eu já comentei cinco vezes que não estou mais namorando — Hailee revirou os olhos.
— Ah, é — Griffin suspirou — O babaca te traiu, eu fico esquecendo disso.
— Queria eu esquecer — Hailee comentou em um tom mais baixo.
— Daqui a algum tempo te garanto que você não vai lembrar. Além de que você merece alguém melhor, alguém que te entenda, que ache graça das suas palhaçadas, que te irrite tanto quanto você irrita os outros — ele brincou na última parte — Mas sério, tem uma pessoa aí fora perfeita para você, é só questão de encontrar, e quando isso acontecer eu tenho certeza que você vai se jogar e vai ser feliz como nunca foi nessa vida.
— Isso foi estranhamente bonito — Hailee falou em um tom quase irônico, ainda que estivesse falando a verdade e Griffin riu de leve.
— Você sabe que eu sei ser sábio e poético quando preciso — ele comentou — Eu não sou você, mas eu dou para o gasto. Enfim, voltando aqui, o Pai e a Mãe não vão vir mesmo, né?
— Não — Hailee suspirou — Você sabe como eles estão ocupados nesse final de ano, e eu sei que o Natal deveria ser passado em família mas coisas assim acontecem. Olha pelo lado bom, daqui à pouco eu vou estar aí enchendo a sua paciência — ela brincou e Griffin riu de leve em resposta.
— Não é como se eu me irritasse fácil.
— Ah, eu sei — Hailee comentou — Bem, meu voo está prestes a sair e eu preciso me apressar aqui. Te vejo em seis horas.
— Ok, eu te espero. Te amo, e boa viagem!
— Obrigada! E te amo também, até depois.
Griffin deixou Hailee desligar a chamada e assim que viu a tela voltando a ficar clara, indicando o fim da ligação, ele suspirou e decidiu se arrumar e arrumar as coisas ali pela casa.
Griffin morava em New York já havia alguns anos, por conta do trabalho ele havia se mudado e deixado Los Angeles para trás. No início tinha sido complicado mas com o tempo ele passou a amar a cidade. Principalmente no fim de ano.
A neve caindo, o clima gelado, a luzes de natal iluminando todos os cantos, ele adorava aquela atmosfera e sabia apreciar muito bem tudo que New York tinha a oferecer naquela época do ano. Por ter crescido na Califórnia, até os vinte e três ele não sabia o que era neve, e apesar de dificultar muita coisa ele amava ver ela caindo agora que morava New York.
A coisa com o Natal era importante pra ele, e pra família também, mas naquele ano as coisas tinham ficado um pouco difíceis e os pais dele não iam passar a data com ele, por motivos de trabalho, como era o costume. Mas Hailee, a irmã de Griffin, ela iria passar aquela noite com ele, ou ao menos pretendia fazer isso.
Quando o relógio marcou nove da noite, naquela véspera de Natal, Griffin vestiu uma roupa simples mas bem arrumada e deixou o apartamento em que morava, com sua bicicleta roxa o acompanhando.
O caminho até o Clinton Community Garden não era tão longe, mas também não era perto o suficiente pra ele querer ir a pé.
Griffin seguiu pelo caminho que costumava fazer, ele estava alheio a maioria das coisas, envolto na música que saía dos fones conectados no celular, por isso quando estava prestes a entrar na rua do jardim comunitário não observou o carro totalmente errado cortando o caminho pelo qual ele passava, o atingindo em questão de segundos.
Alguns minutos após o acidente o telefone da casa de S/n tocou.
Petra atendeu sem saber quem poderia ser, e com a voz trêmula, após ouvir a voz da médica que acompanhava a filha, ela disse:
— Você vai passar pelo transplante hoje.
• • •
Eu passei o dia determinada a ir atrás de Hailee assim que meu expediente no trabalho acabasse, e não fiz diferente.
Quando Santa saiu em direção a mais um encontro com o namorado, eu finalmente fechei a loja; fui caminhando até o apartamento de Hailee, aproveitando o caminho até lá para pensar.
Quando cheguei a porta de entrada estava aberta, então eu consegui subir sem precisar pedir pra que autorizassem. E a porta do apartamento também estava praticamente escancarada.
Eu entrei meio receosa, sem saber o que esperar e estranhando a situação, e me surpreendi ao encontrar um homem que nunca tinha visto na vida, parado na sala do apartamento
Ele estava falando com alguém pelo celular, mas assim que me viu desligou a chamada.
— Desculpa, tem sido um dia longo — ele falou com um sorriso simpático no rosto.
— Oh, tudo... Bem — falei, sem realmente entender o que estava acontecendo.
— Eu estou tão casual — ele comentou, e só então eu reparei que ele estava de jeans e camisa social — Mas é que eu vim de última hora, quando me ligaram falando que tinha duas pessoas interessadas nisso aqui eu fiquei sem acreditar — ele falou, mas a minha expressão confusa deve ter entregado que eu não tinha ideia do que estava acontecendo, então ele perguntou: — Você é a Sra. Challis, né?
— Não, não. Desculpa, eu não sou.
— Eu imaginei — ele deu de ombros — Você é muita nova para ser ela, mas enfim, vamos começar? Você quer dar uma olhada no banheiro? Porque o lugar não é tão grande, é bem compacto, e é tudo em conceito aberto então... É basicamente isso.
— Só um minuto — pedi, chamando a atenção do homem que eu não tinha ideia quem era — A Hailee está vendendo o apartamento dela? — perguntei, começando a ter noção do que estava acontecendo.
— Hm, não...? Esse apartamento não é exatamente dela — ele falou — Você é quem mesmo?
— Uma amiga — falei — Espera, o que você quis dizer com "esse apartamento não é dela"?
— É que é do irmão dela, Griffin. Mas ele morreu, infelizmente, no natal passado. Enfim, eu estou tentando vender esse lugar desde o início do ano mas aparentemente ninguém quer comprar o lugar de um cara que morreu, o que não tem sentido porque ele nem morreu aqui — o corretor falou e continuou falando mais outras mil coisas só que eu simplesmente desliguei, tentando entender o que estava acontecendo.
Suspirei fundo e balancei a cabeça, voltando a focar no homem que estava na minha frente e que continuava falando qualquer coisa ainda sobre o apartamento. Eu o interrompi e dei um breve "tchau", e então saí em direção a saída do apartamento.
• • •
𝑽𝒆𝒓𝒔𝒆𝒔 — 𝑻𝒂𝒎𝒊𝒏𝒐
Eu coloquei os pés no Clinton Community Garden, e a primeira coisa que vi foi Hailee. Ela parecia pensativa, mas como que parecendo sentir minha presença o olhar veio de encontro ao meu.
Eu caminhei até ela, até o já velho banco que eu tinha me acostumado a sentar.
— Porque você não me contou? — perguntei logo de cara.
— Te contei o que? — ela me olhou sem entender.
— Sobre seu irmão ter morrido no ano passado — respondi — Era isso que você queria me falar, né? Quando você falou que tinha coisas que eu não sabia.
— Ah... — Hailee suspirou de leve e fechou os olhos por alguns segundos, mas então voltou a focar o olhar direto nos meus — Era isso também, mas não só isso.
— Eu... Eu quero te escutar, mas primeiro quero pedir desculpa por ter saído daquele jeito ontem — falei.
— Tá tudo bem — Hailee balançou a cabeça negativamente, como que dizendo que aquilo não importava — Você tinha total direito de agir daquele jeito. Eu fui idiota por ter falado o que falei, é só que... Eu deixei meu medo falar mais alto.
— Mas isso não justifica a forma como eu falei e saí sem mais nem menos.
— Tá tudo bem, de verdade. Vamos deixar isso para lá.
— Ok — assenti — Então, sobre... O que você tinha, tem, para me falar.
— Ah, claro — ela sorriu de leve, um sorriso quase triste — Envolve o meu irmão, e eu não sei o quão bem você vai aceitar o que eu vou falar então antes eu quero deixar claro que eu gosto de você de verdade, e eu não imaginei que isso entre a gente aconteceria, mas aconteceu — ela deu de ombros — E eu espero que nada mude assim que eu te contar o que preciso te contar.
— Hailee, você meio que me assustou agora — falei com um leve tom de brincadeira na voz, mas carregando verdade, já que eu não tinha ideia do que ela estava faltando.
— Desculpa, é só que... Ok, eu vou falar. Meu irmão morreu. Isso foi no ano passado, no natal do ano passado. Eu estava entrando em um táxi na porta do JFK, tinha acabado de chegar de Los Angeles quando me ligaram falando que ele tinha sofrido um acidente — ela explicou, e eu pude sentir que ela estava se esforçando muito pra não derrubar nenhuma lágrima — No tempo que eu cheguei no hospital ele já tinha partido.
— Eu sinto muito — falei em um tom baixo, e sem pensar minha mão foi parar no braço de Hailee, em um carinho simples.
— Enfim... — ela suspirou fundo — O Griffin falava sobre doar os órgãos dele quando morresse, era o que ele queria, e óbvio que eu não imaginei que isso aconteceria tão cedo, mas aconteceu. Então eu cheguei no hospital só para autorizar a doação e eu soube que naquela noite mesmo o coração foi para outra pessoa — ela falou e foi como um estalo na minha mente.
Eu lembrava daquele dia como se tivesse acontecido ontem. Lembrava como estava me sentindo quando cheguei no hospital, lembrava que estava morrendo de medo, que eu só sabia chorar. Eu lembrava de tudo. Mas não imaginava que...
— O coração do seu irmão... — tentei falar mas minha voz mal saiu.
— Ele está com você — Hailee falou e eu vi algumas lágrimas caindo dos olhos dela — E-Eu te procurei porque eu acho que queria saber quem tinha ficado com ele, quem estava com a última coisa que ainda ligava ele a esse mundo, sabe. Um amigo do hospital conseguiu seu nome e endereço de trabalho, e eu sei que isso é errado, mas e-eu fui te ver. Só que assim que eu te vi na loja eu fiquei sem coragem de me aproximar, mas aí você saiu e parou exatamente do meu lado e nós começamos a nos falar. E depois nos encontramos de novo, quando eu estava voltando do trabalho. Eu não tinha ideia que tudo isso ia acontecer entre a gente mas aconteceu e eu fiquei cheia de medo, e com tudo que você me contou... Eu fiquei com medo de não ser suficiente, porque eu pareço estar bem mas eu não estou completa. Ainda dói, ainda me faz falta não ter o Griffin aqui comigo, e eu acho que isso é algo que nunca vai deixar de doer. Só que você fez eu me sentir bem, e esses últimos dias foram uma lembrança do que é estar verdadeiramente feliz.
— Hailee...
— Eu gosto de você, e respondendo o que você disse um dia desses, eu acho que também estou apaixonada por você — ela falou — E eu entendo se você estiver irritada comigo, pela forma como eu me aproximei, por ter te procurado, por ter conseguido seu nome e ter ido até você, por ter me aproximado buscando ver, sentir, uma ótima coisa que fosse que pertencesse ao Griffin mas é-
— Hailee — interrompi ela. Eu estava uma bagunça tentando não chorar depois de saber mais sobre o irmão dela — Tá tudo bem. Eu não estou irritada, e você poderia ter falado isso desde o começo. Seu irmão, ele... E-Ele salvou minha vida. Eu só... Eu sinto muito que ele tenha partido tão jovem. E sinto também que eu tenha demorado tanto tempo para dar valor a segunda chance que ganhei.
— Ele deve estar bem em algum lugar, e feliz que o coração dele esteja com você. Isso meio que me conforta. De algum jeito louco eu acho que ele iria querer que isso acontecesse, eu e você... Ele, ele ia ter amado te conhecer.
• • •
— Oi, oi — falei carregando um sorriso de um canto ao outro do meu rosto.
O salão do abrigo, aonde tínhamos montado toda a celebração de Natal, estava cheio. Não só dos moradores que já eram conhecidos mas como também dos familiares dos voluntários.
Minha família estava no meio. Minha mãe, pai, Troye e Timothée, e claro que Hailee também.
Troye e Timothée finalmente estavam próximos da família como deveriam estar desde sempre. Meu irmão apresentou formalmente o namorado e minha mãe ficou em êxtase, já que Timothée agora era a companhia das tardes dela. Eu e Troye nos resolvemos de vez, conversamos e debatemos todas as pendências que tínhamos e por fim nos desculpamos pelas merdas que havíamos falado ao longo dos anos um para o outro.
Já a minha situação com Hailee não poderia estar melhor. Ela foi muito bem aceita. Troye não calava a boca sobre o quão incrível ela era e o quão bem ela me fazia, e minha mãe finalmente estava contente com uma escolha romântica que eu tinha feito, enquanto que meu pai só sabia distribuir elogios para a garota, que de algum jeito tinha conseguido conquistar a simpatia até dele, num ponto que eles faziam companhia um para o outro quando trabalhavam até tarde já que o trabalho de Hailee era perto do lugar que meu pai ficava com o taxí.
— Ok, temos muita coisa para ver hoje — falei no microfone — Mas antes eu só queria dizer obrigada a todo mundo que ajudou essa noite a ser realidade. Mãe, muito obrigada por ter feito essa comida deliciosa — apontei para ela, que se levantou e sorriu de leve ganhando aplausos em retorno — Minha mãe, senhoras e senhores. Enfim, eu quero agradecer cada um aqui individualmente mas o Theo falou que eu não posso fazer discursos então reclamem com ele depois — eu brinquei — Mas sério, e-eu só quero dizer uma coisa antes de dar início ao show. Nós... Nós somos sortudos de estarmos vivos, e somos ainda mais sortudos de conseguirmos ajudar uns aos outros, seja em pequenos ou em grandes gestos. Eu sei que talvez esse ano não tenha sido fácil e sei que muita gente aqui pensou em desistir mas se você não fez isso foi por algum motivo, e eu espero que esse motivo continue te mantendo forte mas não seja seu único apoio, saiba que você tem todas essas pessoas aqui, de algum jeito viramos uma família enorme e eu espero que isso aqui perdure por muito tempo. Eu amo vocês, de verdade — eu concluí e estava pronta para chamar a primeira banda quando Miles gritou um "Canta uma música, S/n", e logo em seguida quase todos ali estavam pedindo a mesma coisa. Eu soltei uma risada leve, e até tentei recusar mas quando vi os primeiros acordes de Last Christmas começaram a soar e eu me virei momentaneamente, só para ver a banda que se apresentaria me incentivando a cantar também, e disposta a me acompanhar.
"Last Christmas, i gave you my heart, but the very next day, you gave it away, this year to save me from tears i'll give to someone special..."
• • •
𝑵𝒆𝒘 𝒀𝒆𝒂𝒓'𝒔 𝑫𝒂𝒚 — 𝑻𝒂𝒚𝒍𝒐𝒓 𝑺𝒘𝒊𝒇𝒕
01 de Janeiro, 2021.
Meu irmão junto de Timothée, Anna, Ella, Adrian, Zendaya, Sophie e mais alguns amigos estavam indo embora. Eles estavam animados, algumas das meninas carregavam seus saltos nas mãos, enquanto que os garotos estavam sem o blazer, com as mangas das camisas arregaçadas e seus cabelos bagunçados. Eu acompanhei eles pelo lobby e quando o último entrou em um dos três uber que eu tinha chamado para levar cada um ali pra casa, eu finalmente voltei a subir até o último andar do prédio.
Hailee estava limpando o glitter que tínhamos usado na noite anterior no corpo, no rosto e na decoração, e que agora estava espalhado por todos os cantos do apartamento.
A noite tinha sido passada ao som de muita música antiga e nova e em algum momento da noite todos ali viraram uma bagunça.
Haviam várias garrafas de bebida vazias na mesinha de centro da sala e muitas outras na bancada da cozinha, além dos copos descartáveis vermelhos que enchiam o lixo da cozinha.
No chão da sala, no sofá e na pequena mesa de apoio ao lado da poltrona tinha algumas câmeras instantâneas, essas que eram uma paixão de Hailee, e perto delas várias fotos que tínhamos tirado durante a noite, além das velas decorativas espalhadas por ali, que tinham pingado cera no chão de madeira.
Nosso apartamento estava uma bagunça e durante toda aquela manhã eu e Hailee limpamos tudo enquanto falávamos da noite anterior.
Quando tudo estava perfeito, sem sinal de que tinha acontecido uma celebração por ali e Hailee e eu estávamos devidamente arrumadas também, em nossos pijamas em que passaríamos aquele dia, ela me puxou para si e nos deitamos no sofá da sala. Ela virada para cima e eu de lado, a abraçando, com meu rosto mergulhado no pescoço dela.
Não falamos nada por um bom tempo e o silêncio não parecia incômodo, pelo contrário, era quase confortável.
— Eu te amo — Hailee sussurrou de repente, e eu sorri contra o pescoço dela, para então deixar um beijo carinhoso ali.
— Eu também te amo — sussurrei de volta.
— E esse último ano foi perfeito — ela continuou falando — Eu espero que isso dure para sempre, que a gente dure pra sempre, mesmo quando for difícil e mesmo quando estivermos cometendo erros. Eu já te disse isso uma vez, mas eu vou repetir, eu quero você por completo, sempre, eu quero seus dias, suas noites, todas as suas madrugadas, e eu quero isso, eu quero estar fazendo essas pequenas coisas com você, no próximo ano, no outro, no outro... E pelo restante da minha vida.
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