Perdoai as nossas ofensas
Ariel ouviu os gritos do irmão, mas não tinha tempo para isso agora. Aliás, nunca tivera, os planos de seu irmão eram reconfortantes, seguros, mais fáceis, mas não cabiam na sua realidade. Correu pela igreja até alcançar a rua, depois voltaria e explicaria tudo a Lamechial, entendia o irmão e sua preocupação, afinal ele havia assumido muitos riscos para estar ali, ao seu lado, e não pretendia jogar fora todo o seu esforço, mas não podia ignorar o que acontecia.
Não lembrava o caminho até o hospital com exatidão, sua preocupação na noite passada não era ver para onde iam, mas, graças à sua facilidade com localizações, virou as esquinas e algumas ruas depois encontrou os buracos deixados pelo ataques, então pode ter certeza de que estava no caminho certo. Parou em frente a um grande complexo, era ali, podia-se ler em uma placa "Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira - IMIP", o movimento era grande, muitas barracas se alinhavam às grades, vendendo comida, enquanto um entra e sai de gente não parava. Mais a frente tinha outra entrada, mas era menor e com menos movimento, entrara por lá com Angelo, chamaria ainda mais atenção. Aproveitou a saída de um carro barulhento e passou sob a grande tábua colorida de madeira.
Atravessou o espaço com carros, caótico, e entrou no prédio para uma situação ainda pior. Humanos vestidos como Lucas corriam pelas portas, empurrando pessoas em camas estreitas como a que Martha estivera, elas choravam e gritavam. Deviam ser médicos também. Caixas pretas penduradas nas paredes zuniam, dizendo nomes e lugares, disputando a atenção com os enfermos e as pessoas que os acompanhavam, em pranto e desespero. Seu nariz ardia e o cheiro do enxofre dificultava a respiração, sombras escuras se escondiam nos cantos e teto, apesar da luz artificial forte. Foi atordoante, como da primeira vez. Alguém lhe empurrou da frente da porta, de forma mal educada, e percebeu o tempo que passou, parado ali.
A sua frente haviam portas duplas e um corredor de cada lado, os feridos que chegavam nos carros barulhentos eram empurrados pelas portas e seus acompanhantes iam pelo corredor à esquerda, foi por ali. Haviam muitas portas e uma grande janela de vidro, alguem lá dentro atendia acompanhantes chorosos, continuou, uma bifurcação, mais corredores e outra janela de vidro, dessa vez mais vazia, quanto mais se afastava da área dos carros, menos gente disputava as janelas e cadeiras. Chamou a atenção da mulher na janela, mas continuou andando. As sombras lhe acompanhavam, pelas paredes e teto, não podia demorar. Uma porta dava acesso às escadas, haviam subido daquela vez, seguiria por ali.
— Padre? Desculpe, mas o que faz aqui?
Virou-se, uma mão segurava-lhe o pulso. Era uma moça nova, os cabelos presos, óculos tortos e uma máscara tapavam-lhe o rosto. Ela estava cansada. Por que lhe chamara de Padre? Viu seu reflexo através das lentes, vestia-se com a indumentária da igreja, não pensara nisso, mas iria ser providencial. No uniforme branco havia um nome escrito, seguido de uma letra: Andrade B.
— Sim, filha? Eu vim abençoar os enfermos. — isso era normal, correto? Era um dos principais deveres de um sacerdote, um dos sacramentos, mas pela expressão de confusão no rosto feminino, achava que os humanos tinham esquecido-se disso, também.
Anna viu quando aquela figura passou, estava levando o prontuário de um paciente até a chefe do andar, mas os cachos cobre, revoltos, lhe desnorteou e ele usava batina! Não é como se não visse figuras esquisitas por ali, tinham várias e se acostumara a elas, a rotina corrida mal dava tempo para que bebesse água, então prestar atenção em malucos não era algo que fazia. O que lhe fizera dar a volta, então? Talvez a peculiaridade da situação? Cansaço ou curiosidade? De qualquer forma, seguiu a criatura, não parecia perdida, mas não falava com ninguém. A parou nos pés da escada e quando ele virou, demorou alguns segundos para responder, encantada. Ele era um padre mesmo?
— Ah, perdão, padre. — soltou seu pulso, mas não conseguiu deixar de olhar os incríveis olhos verdes. — Deve ser algum programa novo, da emergência, esse não é meu andar, mas... — falava devagar, impressionada, até perceber o que fazia. Balançou a cabeça. Que falta de educação! — ...mas não deveria ter alguém o acompanhando?
Ariel não sabia se deveria. Emergência? Esse devia ser o local onde chega quem acaba de se acidentar, Marta havia chegado no dia anterior, ainda estaria ali? Algo soou em seu ouvido, baixo, não compreendeu.
— Não precisa se desculpar, filha. — sorriu — Você poderia me ajudar? Eu gostaria de ver os mais necessitados, mas está muito cheio e eu não quero atrapalhar.
— Ah... — estava muito ocupada e fora de seu andar — Seria melhor se o senhor pedisse à alguem na recepção, eu não sei bem como funciona e...
— Não há o que saber criança, basta me levar àqueles que acredita terem pouco tempo. — A menina estava confusa, não devia ser cristã e, mesmo que fosse, não devia conhecer as escrituras, ninguém parecia conhecer. Apoiou a mão em seu ombro, calorosamente.
Anna arregalou os olhos, criança? Tinha 27 anos e aquele... aquela... bem , o padre não parecia mais velho que ela, mas seu coração se acalmou, estava esgotada e se sentia muito sozinha... não faria mal guia-lo pelos corredores por alguns minutos, nem havia parado para almoçar.
— Está bem, eu vou levá-lo, mas nao posso demorar. — Disse, empurrando a porta para as escadas — Vamos por aqui mesmo, podemos descer por outra escada dentro da emergência
Anna guiou Ariel por outro labirinto de corredores e portas, dizendo nomes e cumprimentando pessoas, todos o encaravam. Desceram por outra escada, no meio daquele burburinho.
— Padre, bem... eu não sei se o senhor esta acostumado, preciso que me diga se se sentir mal, ok?
A menina estava sendo sensível, percebeu Ariel. A sala em que chegaram trazia uma placa escrito "Sala Vermelha", a luz homônima piscava, haviam mais de 15 camas estreitas, apertadas, divididas por tecidos. Aparelhos como os da sacristia emitiam bipes e os médicos entravam e saiam, alguns cobertos de sangue. Havia muitos rosnados e grunhidos, misturados ao choro. Ariel trancou os dentes, ainda não havia encontrado os malditos, apenas seres inferiores que se escondiam nos cantos. Sentiu a palma direita aquecer.
— Estou bem, vamos. — mais uma vez teve a impressão de ouvir algo. Um sussuro?
E a enfermeira o conduziu. Geraldo, um senhor de 63 anos, havia sofrido um acidente de trabalho, por baixa visão, tinha uma barra de ferro presa ao crânio, nada podia ser feito. Carlos Henrique, 24, motorista, vítima de acidente de trânsito, estava tudo em ordem, mas o outro motorista dirigia bêbado, traumatismo craniano, nada podia ser feito. Estela, 32, bala perdida, havia perfurado os pulmões, nada podia ser feito. Jaqueline, 22, 14 perfurações, facadas, tentativa de homicídio, nada podia ser feito. Matheus, 45, gás, tentativa de suicidio, nada podia ser feito. Iara... Pamela... Otávio... Mário...Caminhou de cama em cama, assistiu o sofrimento, como discutiria merecimento? A humanidade crescera em pecado, vivia em pecado, mas o filho do Pai os havia salvo. Nenhuma daquelas almas eram exclusivamente boas ou más, com exceção de uma, pela qual passara direto (o inferno tinha sua função), por que precisavam findar em tanta dor, se Cristo já havia se sacrificado? Viu seus planos e sonhos, seus pecados e dores, seus amores... pesou e perdoou todos, até Isabela. Uma criança de 7 anos, abusada até a beira da morte, tinha a garganta cortada, nada podia ser feito... nada podia ser feito... nada podia ser feito... Essas palavras ressoavam em sua cabeça.
Que viessem, ao Pai, as crianças, pois delas eram o reino dos céus...como nada podia ser feito? Que hipocrisia horrenda. Sua revolta cresceu. Mikhail protegia os humanos de quem? Deles mesmos? O que as hordas faziam que não precipitavam as almas corrompidas no inferno? Não ceifavam os corruptos?! Por que corromper mais, quando não davam conta dos que já haviam? O que o Pai e o diabo faziam?! Nada? Não sabia mais onde estavam suas respostas, em que focar sua revolta. Haviam irmãos de menos, demônios demais? Ou faltavam demônios para fazer seu papel na balança do universo? Mikhail os sacrificava perante ordens que não faziam mais qualquer sentido. Via isso ao observar a fraca luz da presença de um irmão ao lado de uma das camas, estava triste e impotente, acariciando o rosto de um rapaz. Não temeu ao passar por ele, ele não lhe entregaria, sua existência nada significava para aquele Anjo, os olhares que cruzaram continha apenas dor e empatia, era um Anjo da Guarda e protegia aquela alma, pereceria por ela se necessário fosse.
Olhou para a criança, retirou os cachos, duros, do rosto pálido da menina e lhe fez o sinal da cruz. Tocou sua fronte com a palma, o peito e ventre, juntou suas pequenas mãos, com cuidado e as segurou, tubos entravam por seus braços. Tudo aquilo era demais, era sacrifício demais, sangue demais. Os rosnados e chiados enchiam a sala.
Anna observava enquanto o padre ia de cama em cama, percebeu que sua visita cessava o choro e a angústia, achou curioso, nunca vira aquilo. O problema foi quando começaram a morrer, em minutos após a saída do religioso, e a sala virou uma loucura. Precisava tirá-lo dali, mas de forma alguma ele tinha feito algo, ela observara todo o tempo. Pensava em pedir a ele para sair quando ouviu sua voz se elevar.
— BASTA! — bradou, Ariel, e uma onda de poder varreu a sala, calando os rosnados, gemidos e choro de quem quer que fosse. Sua luz irradiou pelo cômodo. — Por esta santa unção e pela Sua infinita misericórdia, o Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo, para que, liberto dos teus pecados, Ele te salve e, na Sua misericórdia, alivie os teus sofrimentos. Pai! Receba tua amada filha, pois ela precisa de colo. — terminou, soltando as mãos da menina, ao passo que o bipe do aparelho se tornou contínuo .
E o de todos na sala.
Ariel viu seu irmão colocar a mão sobre seu ombro e sussurrar um agradecimento, antes de se retirar. Suas mãos queimavam. Virou-se para a garota.
Anna estava estarrecida. Todos estavam. Os aparelhos gritavam em uníssono e mais de 13 profissionais encaravam a cena, estáticos. Apesar do barulho estridente, sua cabeça parecia vazia, distante, os sons ocos. Todos na sala, haviam morrido ao mesmo tempo, e a luz? Espera... Cachos cobre, olhos verdes e a beleza... será que... não estivera de plantão na noite passada, mas o hospital inteiro tinha ouvido a história. Era um milagre? Aquela pessoa na sua frente... quem era? Ele (ou ela?) se virou e em seus olhos havia fogo, podia vê-lo queimar.
"Meu Deus."
Ariel estava cansado de tudo aquilo, de esperar, pois na espera descobrira mais dor. Seu luto só aumentava, e sua raiva. Os humanos o observavam, que vissem e se inspirassem a sair da imundície em que viviam, que se arrastassem da escória onde haviam se enfiado desde os primórdios, eles sempre assassinavam seus melhores. Sim, agora sabia que havia alguns que mereciam ser salvos, mas isso não diminuía seu asco pela raça, a exceção só confirmava a regra. Tocaria a trombeta para eles, se da salvação ou do fim dos tempos, ainda não estava decidido.
— Andrade — disse, firme, para a mulher — Eu preciso que me ajude mais uma vez, pode fazer isso? — Ela balançou a cabeça. — Procuro uma mulher, Martha, ela trabalha aqui como enfermeira, mas esta enferma. Pode me levar até ela?
A voz do padre estava diferente, quase metálica? Enviou um alerta para seu cérebro e lhe tirou do choque. Aquilo tudo estava mesmo acontecendo? Balançou a cabeça algumas vezes... sim... Martha, da pediatria... de ontem, do milagre. Era ela. Engoliu em seco. Virou as costas e saiu, rápido, pela porta a direita. Os médicos já começavam a se mexer. Alcançou as escadas, mas ouviu alguém segui-los. Por que fora fazer aquilo? precisava tanto daquele emprego, droga! Saiu no próximo andar e pegou o elevador, viu a mulher? se segurar nas paredes quando ele desceu, ela pareceu confusa por alguns segundos. Iria achar aquilo estranho? Nada mais poderia ser chamado assim depois de hoje. Desceram no subsolo, ela não gostava de ir ali. Passou pela recepção e entrou no necrotério.
Aquele lugar fedia a morte e decomposição, misturados a algo que fazia o nariz de Ariel arder, o hospital inteiro tinha esse cheiro, mas ali era mais forte. Quando a caixa de metal abriu, a sensação opressora o tomou e pode ver o desconforto da mortal que lhe auxiliava. Antes que passassem pelas portas molengas daquele lugar, apoiou sua mão nela, sussurrando "Benedictus in nomine domini". Foi tudo o que pode fazer antes de se deparar com uma sala lotada de bestas. Elas rosnaram hostis, acuadas nos cantos e sobre as mesas, enquanto a garota examinava alguns papeis, depois atravessou a sala, até parar em um dos armários de metal. Nenhuma se aproximou dela, o Arcanjo a havia abençoado, mas o desconforto dela ainda era claro. Suas mãos estavam quentes e brilhavam, seu instinto lhe dizia para lutar.
— Ela esta aqui. — anunciou e percebeu que ele não entendeu, não parecia saber o que acontecera, havia perguntado pela enfermeira como se estivesse viva. — Ela esta morta, eu sinto muito.
Ariel estava atônito, correu até a gaveta que Andrade puxou. Martha estava ali dentro? Martha estava morta? Socou o metal, afundando sua mão nele. A enfermeira deu dois passos desequilibrados para o lado, assustada. As bestas gargalharam sobre sua derrota, se aproximando. Algo continuava a sussurrar.
"A... -che...so... -san... -em..."
— COMO ISSO ACONTECEU?! — gritou, a impotência que sentia, toda a raiva e dor, queimavam. Uma humana, era o precisava ter protegido, uma única vida, por aquele que o salvara.
Anna sentiu as lágrimas escorrendo por sua face, tremia em descontrole, estava apavorada, buscou apoio no armário. As costas do padre brilhavam em dourado, seu tamanho havia dobrado. Seus olhos ardiam, não tinha voz para responder. Soluçou.
— CALEM-SE! — deixou que sua ira queimasse, que sua aura se expandisse e com ela, sentiu a espada em mãos. A face da gentil senhora que cuidara de si estava lívida e gelada a sua frente, seus olhos fechados acusavam sua incompetência. E ela sequer havia recebido a Extrema Unção.
Firmou a mão no cabo da espada e girou o tronco, decepando a cabeça de duas bestas que estavam próximas demais, haviam 5 do seu lado direito e 4 a esquerda, no fundo da sala umas 15 resolviam se atacariam ou não, as convenceria rápido. A lâmina incandescente irradiava em sua mão, familiar, convidativa e satisfeita. Era um guerreiro, era isso que era, seu propósito era destruir o que ameaçasse a criação e estava saudoso de cumprir seu papel. Inclinou a arma na diagonal e separou os pés. Rahatiel estaria orgulhoso, pensou.
"Ave... che... sois v... vent... san... mãe..."
— Venham suas malditas, hoje vocês não levarão uma alma sequer. — disse, antes de esquivar de um ataque lateral, girou para a direita e cravou a lâmina mas costelas da que mirou seu braço, atravessando-a. O corpo pútrido queimou e se desfez numa nuvem fétida.
Os joelhos de Anna não aguentaram e ela deslizou para o chão, sua cabeça doía e a garganta queimava. Como podia aquilo? O padre tinha algo nas mãos, não conseguia distinguir o que era mas brilhava intensamente, aliás, também não conseguia mais ver o padre direito, ele era uma silhueta vermelha muito clara, não conseguia focar, era como tentar olhar para o sol. Estava ficando cega, maluca? Ele se movia dentro de uma névoa negra. O choro não cessava e nem sabia mais porque estava chorando, sentia muito medo mas estava extasiada ao mesmo tempo. Ouvia uns barulhos estranhos e sabia que tinham coisas na sala, ela sabia, sentia! Se arrastou, encostando-se no armário, olhou para a porta, não tinha como sair sem atravessar a sala, e isso não faria. Ia morrer, começou a balbuciar uma reza.
Ariel estava contando, já dera cabo de 6. Uma pulou em suas costas, focando sua cabeça, acotovelou-a com o braço livre, girando o tronco, jogando-a sobre as que enfrentava de frente e cravou a espada de cima para baixo, uma não foram pega e abocanhou sua perna. Puxou a lâmina e a rodou verticalmente, arrancando -lhe a cabeça. Se desfizeram. A perna e o ombro direito sangravam, mas sequer estava ofegante. Previu mais um ataque e fintou para a esquerda, as mesas atrapalhavam, rolou sob uma, evitando a mandíbula que fechou a sentimentos do seu rosto, deixando a baba viscosa em sua bochecha, e transpassou a mesa com a espada, matando a besta que estava sobre ela. Do outro lado, mais duas pularam em seu corpo agachado, queria suas asas agora, droga, chutou uma para ganhar espaço e mudou o ângulo da arma, deixando-a paralela a seu braço esquerdo, evitou a mordida da outra e cortou-lhe ao meio a cabeça. Rolou sob a mesa, novamente, escapando de uma investida e girou o móvel de metal, prendendo o demônio sob ela, quando ele lhe seguiu. Não eram nada inteligentes, transpassou o metal e a criatura. Limpou a gosma nojenta do rosto e puxou o ar, faltavam mais 9, algumas haviam debandado. 4 correram em sua direção, girou o corpo para sair da frente e, com as duas mãos, rodou a espada, o golpe fora tão forte que cortou e arremessou seus corpos contra o armário de metal, ao fundo, mas uma havia escapado e lhe mordeu a cintura, mais duas vinham e estava de costas.
Anna ouviu o baque alto no armário, ele tremeu, e viu o gigantesco amassado e um enorme rasgo que surgiu no metal, algo arrastou em seus pés e ela rastejou para o lado, num pânico maior ainda. Não via nada, mas ouvia rosnados. Não queria morrer, não queria, era nova, tinha uma vida toda pela frente, queria um namorado, viajar e ter um filho, não queria morrer sozinha, ali, como vivera a vida toda. Queria gritar por ajuda, mas a voz não saía, a sala tinha câmeras, por que ninguém havia aparecido ainda? Um cheiro horrível lhe causou náuseas quando um vapor quente soprou em seu rosto.
— Meu Deus... socorro! Por favor, me ajude, me ajude... — falou entre o choro, desesperada.
Era batizada mas não tinha bem uma religião, não gostava, eram todos falsos, mas acreditava em Deus, numa força maior, alguma coisa lá em cima. E se aquele padre não era prova disso, não sabia mais o que era! Deus existia, tinha certeza agora, então ele podia lhe ajudar. Dobrou os joelhos e escondeu a cabeça entre eles, o vapor soprava em sua nuca.
— Por favor, por favor, eu estou aqui, me ajude! — disse, dessa vez com fé.
Ariel batia a empunhadura da espada contra a cabeça da besta, a fim de que o soltasse, enquanto usava uma bandeja para evitar que outra criatura alcançasse seu pescoço. Uma das pernas estava presa na boca da terceira besta e a quarta lhe encarava, divertindo-se. A espada era muito grande para aquela distância, se aquilo continuasse, iam lhe arrancar um pedaço. Bufou e largou a arma e a bandeja, quando o animal se jogou em seu braço, agarrou sua cabeça e puxou, com uma cabeçada, afundou seu crânio. As presas em sua cintura, sacudiram e puxaram a carne. Soltou o corpo desfeito e agarrou a mandíbula do monstro com as duas mãos, lutava contra a dor enquanto tentava lhe abrir a boca, quando sentiu a onda quente no peito, a ferida do ombro fechou e seus braços ficaram mais fortes, arreganhou a bocarra até que o maxilar se partisse e saísse em suas mãos. A fera ganiu e se afastou, a quarta atacou, mas Ariel teve tempo para pegar a espada e partir o corpo da que fugia ao meio, chutou a que estava em sua perna para cima da que vinha e as empalou juntas. Haviam mais cinco.
"Bendi... fruto d... sant... Deus... morte..."
Olhou para trás, a humana rezava e uma das bestas a estava atormentando. Calculou, 3 das que haviam sobrado corriam até si, chutou uma mesa próxima na direção delas e correu até a mulher, passou a espada na criatura ferida e virou de frente a tempo de receber o ataque triplo, a garota estava, agora, em suas costas. Afundou o cabo da espada na cabeça da primeira e usou seu corpo como escudo contra as outras, uma mordeu seu braço, jogou o corpo, morto, longe e se atirou para a frente, o movimento afrouxou a boca em seu braço e interceptou o ataque da terceira fera, não podia esquivar, ou a mortal ia se ferir.
Anna repetia seu pedido de ajuda num mantra desesperado, alguma coisa arranhava sua nuca e os cortes queimavam, quando cessaram e sentiu o calor, levantou a cabeça para ver o padre parado à sua frente, não conseguiu subir o olhar, tampou parcialmente os olhos com a mão e onde a luz que vinha dele alcançava, viu três horríveis monstros, que babavam e sangravam, a pele caia de seus corpos. Um grito escapou de sua garganta, não aguentou mais, seus olhos rolaram para cima e apagou.
Quando a última besta se desfez a espada apagou e sumiu de sua mão. Encarou a sala vazia e semi destruída, voltou-se e a garota estava inconsciente, no chão. Seu braço, perna e cintura sangravam muito. Não sabia como havia trazido sua espada e parte de seus poderes de volta, mas a humana o havia ajudado na luta, por que não podiam fazer isso sempre e direito?
Olhou para o armário amassado, triste, puxou a gaveta onde estava Martha, queria tirá-la dali, mas não podia, não agora. A senhora acreditou, até o fim, no Pai e falhara com ambos. Falhara com Ângelo, não podia devolvê-la a ele, mas ela merecia a salvação, por tudo o que passara e por sua fé. Fez-lhe o sinal da cruz na testa e a pele ficou marcada, com dois cortes brilhantes, livrá-la-ia da carne e ela seria recebida na casa do Pai, não no fim dos tempos, mas agora. Bastava de dor e espera, para ela. Pode ver sua alma sorrir e acompanhou o sorriso, tudo ficaria bem para ela. Fechou a gaveta e se abaixou para pegar a garota no colo, caminhou com ela para fora da sala, mas seu olhar parou em uma gaveta que havia se aberto com os choques da luta, dentro tinha um saco transparente e nele havia roupas de enfermeira e um terço velho de madeira.
Subiu, de volta, pela caixa de metal e deixou a garota em uma das camas estreitas disponíveis, ela não estava machucada, mas estaria muito abalada, precisaria de ajuda e ele precisava sair dali, sem chamar mais atenção, se isso fosse possível. Deixou uma nota, num bloco que achou, que a Andrade estava inconsciente e assustada, pediu que chamassem sua família.
Havia pego, no subsolo, uma daquelas roupas dos médicos, assim suas feridas e a roupa suja e rasgada não apareciam, mas tratou de evitar as pessoas. Saiu pela entrada da frente, imaginou que depois de tudo, a saída dos carros estaria muito movimentada. Uma ou duas pessoas lhe chamaram, mas não deu atenção. Já na rua, refazia o caminho para a igreja, era noite alta, as ruas estavam vazias e caia uma chuva fina. Ariel gostava da chuva, mas uma grande sombra na última esquina lhe avisou que não poderia aproveitá-la.
— Astaroth, o que faz aqui? — parou há 4 metros do demônio
— Arcanjo, eu disse que precisávamos conversar, agora temos tempo.
Ariel ouviu a voz gutural sibilada e de repente, também, ficou mais consciente do sussurro que lhe acompanhou a tarde toda.
"Ave Maria, cheia de graça, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, agora e na hora de nossa morte, por Ariel, amém."
Conseguiu ouvir a oração claramente e conhecia aquela voz, Ângelo pedia à Mãe, por ele.
Just stay strong
Apenas continue firme
'Cause you know I'm here for you,
Porque você sabe que eu estou para você
I'm here for you
Estou aqui para você
https://youtu.be/voa7XSESvWE
(4030 palavras)
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