Assim como perdoamos quem nos tenha ofendido
Ariel, fechou os olhos. A voz de Ângelo e sua oração eram como uma brisa, cálida, que soprava em seu rosto, retirando seu cansaço, tristeza e revolta. Ele pedia à Virgem e Seu manto era abrigo, conforto e amor. Respirou fundo, sentia-se bem. Mas a oração não era apenas para intercessão da Mãe do Senhor, havia algo mais. O humano rezava para ele, diretamente, louvava seus dons e virtudes, e isso não era brisa, era fogo, que corria por suas veias e fechava as feridas, era sua armadura e arma, alimentava sua essência.
Fora ele, então, novamente. Fora Ângelo que o ajudara a trazer sua espada, era Ângelo na batalha ao seu lado.
— Posso ver que seu dia foi agitado. — sibilou Astaroth, fazendo Ariel abrir os olhos — Já teve tempo para conhecer o mundo humano?
— O que você quer, demônio? — estava irritado e queria voltar para a igreja.
— Eu lhe disse, Arcanjo, precisamos conversar e não me olhe assim, garanto que será muito interessante. — disse, se aproximando do anjo. O poste sobre as suas cabeças se apagou.
— Não tem nada a dizer que eu queira ouvir, Caído.
— Ah, tenho, muita coisa você sabe por ouvir dizer, Ariel. Não viu os humanos e sua visão deturpada de Deus? Sabe por que é assim? Porque só ouviram dizer, estórias, testemunhos que se corromperam mais e mais a cada vez que eram contados, alguns totalmente inventados. — Parou a três passos do outro — e agora eles sequer saberiam diferenciar Anjos de Demônios.
— Pare de blasfemar. — rosnou.
— Não estou blasfemando, é verdade, para eles os anjos são belos e os demônios, feios, se inverter, Arcanjo, eles não os reconheceriam. Aparências! — fez uma pausa — Você também está confuso, como eles, posso ver e posso lhe dar as respostas que quer. Baixe a guarda, por favor, também estou desarmado e sozinho. — completou, abrindo os braços.
Ariel o encarou, sua vestimenta estava diferente hoje, com uma longa capa preta fechada, sem as asas, e a espada em formato de serpente não estava em seu cinto mas essa não era a arma mais perigosa daquela criatura, precisariam arrancar-lhe a língua para desarma-lo. O entorno estava vazio.
— Primeiro deixe-me dizer que lamento sua perda.
Ariel se empertigou.
— Como disse? — ele estava falando de Martha?
— A senhora, que se esforçou para proteger, eu sinto muito.
— Como se atreve? Depois do que fizeram! — se aproximou um passo do maldito, o queixo erguido e os dentes trancados, queria arrancar-lhe a cabeça.
— Não fizemos nada, Arcanjo. – disse, lastimoso – Naquela noite eu lhe disse, aquela mulher vinha pedindo a tempo demais por paz, descanso. Ela sabia do sacrifício que o filho fazia, sentia-se um fardo e acumulava muitas dores na alma. Tinha muita fé, mas o Pai não lhe ouviu, nós sim. Oferecemos a ela o que queria, demos a ela sua paz.
— Você a enganou! Seu preço é alto demais! — o cortou.
— Ninguém a enganou, tivemos sua permissão, como você disse, ela tinha fé verdadeira. Meu preço, fala do inferno? É onde vivo, é minha casa, feita pelo Pai para nós, culpe a Ele, não a mim. Quando salva alguém, o leva para junto de ti, correto? Eu só faço o mesmo.
O peito de Ariel subia e descia rápido, com o esforço de não voar no outro, mas essa perspectiva... não se dera conta dela ainda. O demônio continuou:
— Mas naquela noite em que você a trouxe de volta, a deixamos, Ariel, você se arriscou por ela, não interferimos mais, não seria justo.
— Suas bestas estavam lá! E desde quando vocês levam a justiça em consideração? — a voz do anjo se ergueu.
— Sempre fomos justos, Arcanjo, ou você acredita que deixá-los rezar e chorar em vão é mais justo? E as bestas, elas estão em toda parte, em todo lugar que houver dor e desespero, escuridão e anseios, elas estarão lá, independente da minha vontade. Entenda isso. — caminhou para trás do Arcanjo — Foram seus irmãos que a levaram.
Ariel conteve a respiração.
— Assim que saíram, você e o humano, ele veio e a levou. Seu esforço foi em vão.
Por quê? Por que levar Martha se a tinha salvo? Ela não possuía nenhuma doença, não era sua hora, pode ver, fora uma ataque espiritual...
— Está se perguntando, não é? — a voz gutural soou de novo — Você interferiu Arcanjo, é proibido.
Ariel se virou abruptamente, exasperado.
— Como assim, proibido? É o que fazemos, interferimos por aqueles que merecem! — seus irmão tombavam todas as noites por eles e era justamente com isso que não concordava.
— Não, meu irmão, não funciona assim. — suspirou — Venha, vamos andar um pouco.
Ariel pensou em não ir, mas estava terrivelmente confuso, quanto mais Astaroth falava, mais dúvidas criava. O seguiu por algumas ruas escuras e em alguns becos viu homens obsediados por bestas e diabretes, outros eram seguidos de perto. Em alguns bancos de metal, iluminados e cobertos, viu algumas pessoas rodeadas, mas uma tinha a companhia de um Anjo, estava ferido e triste. Fez menção em se aproximar, mas o demônio não deixou.
— Observe, olhe a humana.
A pessoa em questão, uma moça nova, estava aflita, roía as unhas e olhava a mochila do homem sentado ao seu lado. Uma daquelas máquinas barulhentas, grandes, se aproximou e abriu as portas. As pessoas começaram a entrar, mas quando o homem estava nos degraus, a moça agarrou sua mochila e puxou, não foi forte o suficiente, o homem gritou e a máquina acelerou. A mulher recebeu um soco e caiu no meio fio, as rodas passaram por cima de suas pernas fazendo-a gritar, as pessoas que haviam sobrado na calçada a chutaram repetidas vezes, enquanto as bestas gargalhavam, se alimentando da crueldade do gesto. Sangue escorria da boca da mulher. Eles não pararam de chutar, mesmo quando ela parou de se mover. O triste anjo ferido tentou se aproximar, mas um rosnado alto o avisou que não fizesse, uma besta abocanhou a alma e afundou no chão com ela, depois disso seu irmão foi atacado.
Astaroth deu um comando e as abominações debandaram, raivosas e assustadas. Seu irmão lhe encarou com pesar e raiva. Ariel estava atônito.
— O que eu... acabei de ver... - o corpo da mulher estava estirado no chão, uma medalhinha de nossa senhora, arrebentada, boiava na poça de sangue.
— O que eu disse. Aquela pobre coitada morava sozinha com a irmã mais nova, uma criança doente, trabalhava todas as horas do dias, até na igreja, para pagar os remédios, mas não foi o suficiente, nem rezar. Hoje ela tentou roubar, seu primeiro deslize e o Pai nada fez, ou seus anjos, porque são proibidos. – se virou para olhar nos olhos do Arcanjo – Vocês podem influenciar as almas dos protegidos, sussurrar conselhos, lutar contra as bestas que tentam persuadi-los, mas Ariel, não podem realmente ajudá-los. Não foi nenhum demônio que fez essa humana roubar, foi o desespero de ver sua pequena irmã à beira da morte. Foi a falta de esperança no Pai, não nós, que corrompeu essa alma. E seu irmão não podia fazer nada, mesmo ela tendo fé verdadeira e tendo servido a Deus por toda sua vida. — o anjo da guarda sob a luz amarela os olhava rancoroso.
– E a irmã...
– Irá morrer em breve, sem a mulher mais velha, e você não poderá fazer nada.
A cabeça de Ariel girava. Não podiam fazer nada? Todo esse tempo? Era pior do que pensava. Se aproximou do corpo e o retirou da rua, estava deformado. Pegou a medalhinha e a guardou na palma da menina. Qual era o sentido em rezar, então? Se tudo o que podiam fazer era sussurrar!
– Por que vocês não seguem a mesma regra? Por que podem interferir diretamente se nós não? – questionou, ainda agachado.
– Vou contar uma história, Ariel. Você sabia que fui cultuada por muito tempo como uma Deusa? Tinha muitos nomes, Inanna, Ishtar, Astarte. Muitos povos louvavam meus dons e eu os ajudava, promovia casamentos, atendia em partos, abençoava armas, ferramentas e os protegia nas batalhas. Cuidava de seus mortos. – suspirou – Era assim pois o Pai dormia e não ouvia as suas súplicas, continuou assim quando caí. E não era apenas eu, Baal, Belzebu e tantos outros também. – baixou a cabeça, triste.
– Se passavam por falsos Deuses, pelo poder.
– Então me diga, Arcanjo, foi pelo poder que se passou por falso Deus e salvou aquela senhora? Ou quando encaminhou tantas almas para o Éden, sem permissão?
Ariel fora pego em seus argumentos de novo. Claro que não! Nunca pensara nisso! Só quisera ajudar! O demônio viu sua expressão.
– Posso ver que não, nem nós. Era angustiante demais não fazer nada, era absurdo. Nossos dons provinham do Pai e falávamos por ele, todos os humanos sabiam, o Pai tem vários nomes. Veio a proibição e Samael se revoltou com toda essa situação, nossas intenções eram boas – riu – Aqui se diz que o inferno está cheio de boas intenções. – colocou a mão no ombro do Arcanjo – Levante-se.
Ariel ficou de pé, não sabia absolutamente no que pensar. Tirou o jaleco e estendeu sobre a mulher, fez-lhe o sinal da cruz e a abençoou, ainda que não adiantasse mais. Seu irmão já tinha se retirado.
– Sabe, depois que fomos criados, diferente da maioria, eu escolhi a forma de Lilith, aquela linda e valente criatura. – jogou os longos cabelos para trás e sua capa abriu, deixando ver seu busto sob o vestido preto. – Ela era esperta, amorosa, criativa e guardava todo o seu potencial para Elohim, eu me identificava demais com ela, cujo objetivo de vida era suportar e cuidar. Mas ela foi condenada e expulsa, apagada. Eu mantive meu nome, Astarte, mas nem como demônio pude manter a forma de Lilith, agora sou o grão duque do inferno, Astaroth, que nada mais é do que o masculino de meu antigo nome.
Ariel olhou melhor o corpo do caído, tinha uma silhueta esguia, os quadris eram largos, os seios fartos, os ombros e braços fortes.
– Eu não conhecia um anjo que houvesse optado pela forma feminina. – Ariel sussurrou.
– Há muitas coisas que não conhece, Arcanjo. Eu era um Querubim, uma Deusa para os homens e isso não mudou porque o Pai resolveu me precipitar no abismo. Nós podemos influenciar a vida humana diretamente porque essas regras absurdas não valem mais para nós! O que mais o Pai fará conosco? Então sim, Arcanjo, todo aquele que perder a esperança e clamar por mim, ouvirei.
Mas isso tinha muitas implicações.
– E Lúcifer? Pensa como você?
O demônio riu, de lado.
– Em parte. Dentre todos, ele é o mais ressentido – voltou a andar, se afastando do corpo – Por muito tempo quis apenas voltar para casa, tentou chamar atenção, criou caos, tudo virou uma grande bagunça. Então entendeu que o Pai não apenas nos tinha jogado lá, como nos dado uma tarefa irônica: punir aqueles, que como nós, duvidaram Dele. – Dessa vez gargalhou e era como se o som viesse do fundo da terra – Samael ficou revoltado, mas não era nenhuma novidade, isso não impedia as almas de chegarem e ele precisava recebê-las. Milênios de reclamações e sofrimento tornaram o Diabo muito acessível.
Ariel não notou até chegarem às portas da igreja. Era uma torrente muito grande de informações e uma versão diferente demais da que conhecia. Mikhail sabia de tudo isso? A chance de estar sendo enganado era muito grande, mas algumas coisas faziam sentido de uma forma perturbadora.
– E o que você quer de mim, Astaroth? Por que me procurou para dizer tudo isso? Por que a mim e por que agora? – não sentia mais vontade de combatê-lo.
O demônio tombou a cabeça de lado e olhou para a construção.
– Acho que nosso passeio acabou, então isso terá que ficar para um outro momento. Nos veremos novamente, certo, Arcanjo? – sorriu, desaparecendo no vento que soprava.
Ariel suspirou, se sentia como uma corda esticada, tensionada. Olhou a igreja, as portas estavam fechadas, tentou empurrar e ouviu o trinco de dentro bater. Teria outra forma de entrar? Deu a volta no prédio e encontrou um porta pequena, bateu e uma portinhola de madeira se abriu, logo a porta foi destrancada.
A beata ficou chocada ao lhe ver, e ela tinha razão. Passou pela mulher, era uma loja? Dentro da igreja? Eles vendiam cruzes, terços e outras coisas, balançou a cabeça em negação. Humanos. Seguiu para a sacristia, mas não rápido demais, seu coração estava apertado.
~*~
Lamechial sentiu quando Ariel se aproximou da igreja, assim como a presença do demônio, mas não era seu papel interferir, sabia disso, ao menos, não desse jeito. Era quase 5 da manhã quando o Arcanjo entrou, não fazia ideia do que tinha acontecido, mas ele estava todo rasgado e a túnica, que fora branca, estava com enormes manchas de sangue.
Todos dormiam nesse momento e isso era providencial.
— Ariel... — se aproximou dele, colocando as mãos em seus ombros. — O que houve? Por que saiu daquele jeito?
O Anjo observou as camas improvisadas, todos deviam estar cansados.
— Sinto muito, Lame, eu precisava ir ver Martha. Ela e o Ângelo me acolheram... — manteve a cabeça baixa.
— Martha? A mulher que o médico citou? Ela era importante para você?
— Sim, era a mãe do mortal, cuidou de mim por dias até que eu me reestabelecesse e eu falhei, Lamechial. Eu não estava lá.
Houve alguns segundos de silêncio.
— Ariel, você fez o que pode, tenho certeza, não se martirize.
— Como, Lame, como vou contar que ele perdeu sua mãe por minha causa?
— Não é sua cul- — o outro o cortou.
— Eu os envolvi nisso! Já tinham dor o suficiente antes da minha chegada. — se afastou do toque do irmão e foi sentar-se em um dos bancos, ele o seguiu. — Aquela família sofreu, Lamechial, muito.
— E o que houve no hospital, o exército de Mikhail te encontrou? — o irmão falava do sofrimento como se fosse uma punição... Ariel não entendia e não era o momento certo de entrar nessa discussão.
— Não, foram bestas. — jogou o corpo para trás, apoiando a cabeça na parede — Aquele lugar é um imã de espíritos maléficos, a sala onde descansava o corpo de Martha estava cheia delas. — fechou os olhos — E eu consegui, Lame, conjurei minha arma e parte dos meus poderes voltaram.
Mais segundos de silêncio.
— Isso é bom... como conseguiu?
— Eu realmente não sei, senti muita raiva, eu precisava dela e ela veio. — havia alguma coisa no tom de Lamechial que não gostou — Não importa como foi, o que importa é que estou mais próximo de voltar. Não era esse seu plano? — bocejou.
— Era, mas eu não imaginei que fosse ser tão rápido...
Lamechial viu o irmão apoiar a cabeça na parede e cochilar antes mesmo que terminasse de falar. Agradeceu o Pai por tê-lo protegido. Inspecionou o outro, apesar dos rasgos e manchas, ele parecia bem. O que quer que tivesse acontecido, tinha se curado.
~*~
Ariel acordou zonzo e meio perdido, estava claro e ouvia os sinos bater. Ao seu lado tinha uma muda de roupas, calças e camisa pretas, e uma bandeja com comida. Sentia fome.
— Já acordou, minha filha? — o padre viu a garota se mexer e esperou um pouco, como iria abordá-la? Tinha visto quando ela chegou, lavada de sangue, mas apesar disso, ela parecia bem, somado ao que escutara de Lucas... não sabia o que pensar.
— Bom dia, padre. — cumprimentou, sem parar de comer as broas. O líquido preto estava quente demais.
— Bom dia... bem, depois que terminar, vá tomar um banho. Atrás da sacristia tem uma escada que dá para os meus aposentos, lá tem um banheiro. Fique à vontade...
— Obrigada.
E agora, o que diria? Simplesmente perguntaria o que ela era? Não tinha funcionado com o outro. Será que não pareceria maluco? Com razão. Quase podia ouvir Jesus dizendo "Por que temeis, homens de pouca fé?" Sacudiu a cabeça.
Nesse tempo, Ariel terminou seu café, abraçou as roupas e saiu. O padre perdeu o timing.
— Algum problema, padre Antônio?
O sacerdote deu pulo com a voz de Lamechial chegando por suas costas.
— Ah, nã-não, claro que não. Dei à sua amiga uma muda de roupas e indiquei o banheiro a ela.
— Irmã. — levantou a sobrancelha, o padre estava nervoso? Estava tentando respostas com Ariel?
— Ah, sim, irmã. Desculpe. — encarou o rapaz, ele também lhe olhava — Então, Lamechial...
— O senhor não irá celebrar a missa das 9, padre? Vim da nave e os bancos já estão ocupados, na verdade a igreja está cheia. — cortou a fala do homem, suas perguntas não o levariam a lugar algum. Por que os humanos precisavam sempre entender tudo? Bastava aceitar as bênçãos que recebiam, mas não conseguiam.
— Cheia? — suas missas contavam com 10 ou 15 pessoas, no máximo e em feriados. Deixou o jovem e foi verificar, abriu somente um pouco a porta e já pode ouvir o burburinho de vozes, o barulho de passos que ecoava no teto de caixão. A igreja estava lotada!
O sacerdote correu até o armário, vestiu a túnica, agarrou a Bíblia e saiu porta afora, as duas beatas o seguiram. Lamechial estava preocupado, porque essa mudança de atitude? Tinha algo haver com Ariel?
Meia hora depois, Ariel desceu, decente dessa vez, vestido em algo que não parecia ter vindo da guerra e nem chamava atenção. Estranhou não ver ninguém na sacristia. Desde que chegara não fora ver Ângelo, não podia adiar mais isso. Andou até a cama cercada de lençóis, a máquina e os bips lhe davam uma sensação ruim depois de toda aquela experiência na sala vermelha. Ele parecia melhor, estava limpo e sua energia mais recuperada, nas mãos segurava um terço cristalino. Sorriu, ele havia rezado por sua segurança todo aquele tempo. Cobriu as mãos dele com a sua.
— Eu nhão ero mais emedio... — balbuciou, com a língua dormente. Havia sonhado com Ariel, queria vê-la.
— E o que são esses remédios? — respondeu o anjo, por entre o sorriso.
A voz de Ariel trouxe Ângelo de volta do torpor, ela estava mesmo ali? Abriu os olhos e se sentiu como da primeira vez, extasiado e confuso. Os cachos cobre estavam molhados sobre os ombros, a pele alva irradiava brilho e aqueles olhos incríveis... era difícil raciocinar com eles o perscrutando. Fugiu dos olhos e analisou seu rosto, não estava machucada, mas alguma coisa parecia errada, ela estava cabisbaixa?
— eixa pa lá — balançou a cabeça, devagar. Que droga, não conseguia falar direito ou se mexer, tudo estava devagar. Ela estava com a mão sobre as suas? Sorriu. — omo você est? eucupado.
Ariel apertou mais as mãos. Uma cadeira estava encostada perto da cama, a puxou com o pé e sentou.
— Eu estou bem, não se preocupe, você me ajudou o tempo todo, eu agradeço.
Ângelo ficou confuso, tinha ajudado? Deitado ali, apagado? Nem apoio moral dava conta de dar, naquele momento. Ia retrucar, mas a lentidão do seu pensamento lhe fez perder a chance.
— E você? Eu sinto muito ter-te feito passar por tudo isso. — e Ângelo nem sabia de tudo.
A voz dela estava ressentida e aquele rosto lindo, cheio de dor. Ângelo não queria isso. Fora ele quem resgatara ela no mercado pra início de conversa, se tinha se metido em confusão, fizera isso por conta própria. Muita coisa nessa vida não fora culpa dele, mas essa era. Tentou mover as mãos, estavam pesadas, mas dava pra mexer. Colocou uma sobre a dela e apertou de leve, pois ela tinha abaixado a cabeça. Funcionou, ela levantou. Respirou fundo e esforçou-se em mover a boca direito.
— Deixa disso, você não tem culpa de nada — as palavras saíram inteiras dessa vez. 'Tava precisando de um café. — Eu te catei na rua, Ariel e, ainda assim, aquele pessoal te perseguindo foi quem fez todo esse estrago.
— Mas, Ângelo... — os olhos do homem brilhavam, cheios de confiança, não a merecia.
— Mas nada e eu entraria na frente daquelas coisas de novo, se precisasse. — estava cansado, ufa, era difícil fazer os músculos da boca se moverem, quem diria. — Você salvou a gente, salvou minha mãe.
Algo na barriga do Arcanjo se contraiu. Não salvara, não estava lá...
— Ângelo... eu não consegui... — sentiu os olhos arderem, mas estavam secos, já havia derrubado todas as lágrimas que tinha. Queria tanto não precisar dar essa notícia, encarou o homem, piedosamente e viu a expressão de compreensão súbita, os olhos castanhos transbordaram — Eu não sabia! Dei a ela mais tempo e iria voltar assim que estivéssemos seguros. Quando ouvi a história do médico eu corri... — Ângelo soluçava — mas era tarde. Eu falhei com vocês, sinto muito... sinto tanto, tê-los envolvido nisso. — baixou novamente a cabeça e tirou a mão dentre as dele. — Mas posso garantir que ela não sofrerá mais, sua fé foi recompensada, se não pelo Pai, por mim. — buscou no bolso da calça o velho terço de madeira de Martha, o objeto tinha tanta energia impregnada que cintilava para aqueles que podiam ver, ela deixou mais do que uma memória afetiva, era um amuleto poderoso. Estendeu para ele e o colocou sobre suas mãos. — Isto era de sua mãe, achei que gostaria de tê-lo, mantenha-o com você, vai lhe proteger.
Ariel não sabia mais o que fazer ou dizer, então se levantou.
Ângelo sentiu um pedaço do coração partir, fora por isso que Ariel saíra no dia anterior? Para tentar ajudar sua mãe, novamente? Chorava copiosamente, não estava preparado para perder Martha, ela era tudo o que tinha, não havia sobrado nada naquela droga de vida para ele, por quê? Por que tinha que ter tido uma existência tão miserável? Sua mãe não sofreria mais? Ela tinha confiado em Deus com todas as suas forças... Olhou para Ariel, sabia que a mãe tentava esconder o sofrimento da perda de seu irmão, ela nunca chegou perto de superar e, ultimamente, estava sendo mais difícil. Ela comia mal, a via chorar e implorar a Deus... a garota era a resposta Dele? Ariel a tinha levado para o Céu? E ainda lhe trouxera o terço de sua mãe...
— Ariel, senta aí. — disse o mais firme que pode em meio ao choro, tentando respirar fundo para conseguir falar, a adrenalina do choque que recebeu havia acabado com boa parte do efeito do anestésico, agarrou o terço da mãe junto ao que tinha recebido do "boi lambeu".
Ariel se espantou com o tom do outro e sentou.
— É claro que eu não queria que isso acontecesse e eu... tô arrasado, mas você não fez nada errado. Ontem... ou sei lá quando foi, você disse que fez tudo o que podia, cara... você também 'tava um trapo e nem precisava ter feito nada, mas tentou... — a expressão da anja não tinha melhorado em nada — Olha pra mim, Ariel! — a voz mais alta arranhou sua garganta, além do café, precisava de água, muita água. Usou os cotovelos e se apoiou na cama — Minha mãe não 'tava bem e Deus enviou você, ela só queria ir pra junto do Felipe, mas nunca faria isso sozinha... você levou ela, Ariel. — esticou o braço e pousou a mão na bochecha da garota, esperava que ela entendesse, por mais que estivesse dizendo isso tudo em meio às lágrimas, era impossível parar. — Você atendeu as preces dela... eu devia te agradecer, é só que... estou me sentindo muito sozinho.
Ariel não conseguiu conter a cara de espanto que ainda mantinha, Ângelo estava bem com isso? Bom, claramente, bem ele não estava, mas ele entendia? Os seres humanos tinham dificuldade em aceitar a finitude das coisas e viviam como se elas fossem eternas, culpando tudo e todos, principalmente o Pai, pelo que era tirado deles... e Ângelo entendia e agradecia? Logo a ele, que havia falhado em proteger a humana? Será mesmo que havia sido enviado ali para tirar Martha daquele tormento? Mas isso não traria dor ao filho dela? Solucionar um problema com outro... Cada ação sua, cada palavra só o deixava mais confuso. Ângelo se sentia só, por isso chorava? Achava que seria abandonado em meio aquele caos? Levou a mão a dele, em seu rosto, e a segurou ali, curvou o tronco e aproximou-se, vendo os olhos do outro arregalar um pouco.
— Você não está sozinho. — encarou, firme, os olhos castanhos cheios d'água, que refletiam os seus. — Não posso dizer de antes, mas nunca mais estará só. — com a outra mão secou as lágrimas do rosto moreno e acompanhou o sorriso do outro, quando o viu.
There's nothing you could say
Não há nada que possa dizer
Nothing you could do
Nada que possa fazer
There's no other way when it comes to the truth
Não há outro jeito em se tratando da verdade
(keep holding on - Avril Lavigne)
~*~
Quando o padre começou a missa, Lamechial saiu para a nave, queria entender o que estava acontecendo. Pessoas se aglomeravam na porta e corredores da igreja, haviam muito doentes. Isso não lhe parecia bom.
O padre fez os ritos iniciais, agradeceu a todos e pediu silêncio. A multidão encarava o sacerdote, ansiosa, muitos esticavam a cabeça, procurando algo. A missa começou e Lamechial esperou todos sentarem, deu a volta pelos bancos, se espremendo entre as pessoas, ouvindo. E havia muito para ouvir, boatos, vários, sobre uma garota de cachos cobre que havia exorcizado alguém e um padre com a mesma descrição que de uma só vez havia levado as almas de dezenas de pessoas para o céu pessoalmente, lutado com demônios, curado moribundos e falado em línguas. Eram as histórias do hospital, que Lucas havia contado, somadas à outras e aquela era a igreja mais próxima, as pessoas concluíram que o "padre" era dali. Aquelas pessoas estavam atrás de milagres e isso nunca era bom. Anjos não difamavam nem proferiam impropérios, mas dessa vez queria muito fazê-lo. Por que Ariel precisava chamar tanta atenção, sempre?
O sacerdote tentava avançar com a missa, o público estava muito agitado, crianças choravam, mas todos respondiam e cantavam. Fez o que pode até a homilia, quando interrompeu para ensinar a passagem, começaram as perguntas "ele é daqui?", "é noviço, diácono?", 'ele virá?", "ele pode nos curar?", "chame-o, chame-o...". Mas quem, diabos, era esse "ele"? Olhou perdido para os bancos e viu o rapaz, Lamechial, encará-lo de perto da sacristia, ele fez um sinal com a cabeça para a porta da sala... Olhou novamente para a nave, aquelas pessoas estavam atrás deles? Da garota? Virou novamente para Lamechial e ele tinha o dedo sobre a boca, "silêncio, fique quieto" aquilo dizia. E agora, como resolvia? Viu o rapaz entrar e deixá-lo lá, sozinho.
~*~
Lamechial não tinha o que fazer, qualquer interferência sua só aumentaria os boatos, alimentaria a curiosidade. Voltou para a sacristia e percebeu Ariel no leito do homem, ele chorava, o Arcanjo devia ter contato da morte da mulher, mas as palavras seguintes o fizeram sorrir, "De fato, ó Deus de Israel, ó Salvador, o Senhor cumpre os seus planos de maneiras misteriosas" Isaías 45:15. O Pai e ele mostrariam a Ariel que estava enganado sobre tudo, nada abaixo dos céus acontecia sem que houvesse sido planejado por Deus, se certificaria que os planos corressem bem e voltaria para casa, com o irmão. Deu a volta, devagar, e saiu pela porta lateral, daria a eles privacidade.
*****************************************************
Olá, gente! O que estão achando do rumo dos acontecimentos?
Felizes ou raivosos? rs
Espero que felizes.
Dessa vez eu lhes apresentei Astaroth, o que acharam dele(a)?
Já o conheciam? Ele não é dos demônios mais famosos e tm uma dualidade interessante, por isso o escolhi.
Não queria vocês muito induzidos.
Alguém aí esta torcendo por ele?
Essa história tem muitos lados, já escolheram o de vocês?
Até o próximo cap, Love u all.
(4622 palavras)
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro