Capítulo 7 - Lady Marsalla
"Não a Diferença Entre Viver & Receber Permissão pra Viver. Assim Como Não há Diferença Entre Morrer & Ser Morto."
A luz do sol poente banhava obliquamente o quarto quando Johanne acordou. Os últimos raios de luz adquiriam uma tonalidade rosada pelas cortinas transparentes que pendiam da porta da sacada. Tinha dormido quase dez horas. Depois de a criada levá-la até o quarto, Johanne tinha apenas tomado uma chá para dor de cabeça, chutado longe as famigeradas botas e caído na cama, atravessada. Agora, sentia-se ainda um tanto tonta e notou que, enquanto dormia, alguém tinha desfeito silenciosamente suas malas e arrumado tudo em seus devidos lugares. Numa mesinha aos pés da cama havia uma bandeja com uma refeição ligeira e absolutamente gelada. Era evidente que tinha estado ali durante horas e, apesar da fome que sentia, a comida não parecia nada atraente. Olhou o relógio. Se as refeições fossem pontuais naquela casa, e Ella parecia fazer questão de horários quase militares, tinha de esperar pouco mais de uma hora para o jantar.
Johanne estudou o quarto, satisfeita. Era espaçoso e muito feminino. A enorme cama de dossel era entalhada em mogno e a madeira lustrosa testemunhava anos e anos de uso e cuidados. Era, evidentemente, uma antiguidade. O lilás quase roxo do dossel repetia-se no delicioso tapete, também antigo, o padrão florido avermelhado esmaecido pelo tempo trazia algo de profundo e misterioso. Johanne achou que aquele quarto era o mais atraente de todos os que tinha visto até aquele momento.
Foi para o banheiro e descobriu que até era moderno, em tons de vibrantes com chuveiro, bidê e uma banheira tão grande que dava para nadar. Abriu as torneiras de água muito quente e jogou um punhado de sais de banho aromáticos. Mergulhou na banheira perfumada, sentido o corpo relaxar na água muito quente.
Ali ficou, permitindo-se um pouco de prazer, e saiu sentindo-se bem e relaxada pela primeira vez desde que deixara o pequeno e famigerado vilarejo de Azkar.
Vestiu o roupão felpudo e foi até o guarda-roupas escolher o que vestir. Ella tinha dito que usavam rigor para o jantar, coisa a que não estava acostumada. Mas depois do tratamento que recebera da vampira, Johanne estava decidida a ser impecável. Deixou de lado os vestidos mais brilhantes que usava para trabalhar e escolheu o seu favorito. Era de seda, sem ombros, estampado em tons de vibrantes, mas que refletiam uma escuridão cravejada por alguns cristais. A saia era solta e moldava suas pernas ao caminhar, com um franzido na barra. Prendeu os cabelos num coque fofo no alto da cabeça, deixando dois cachos nas orelhas. Pouca maquiagem e botas de salto alto. No pescoço, amarrou uma fitinha de veludo com um camafeu de prata, que tinha sido de sua avó.
Prendeu os brinquinhos do mesmo material nas orelhas furadas e passou a mão pelo corpo, alisando a tecido sedoso.
Tinha esquecido os prazeres que existem nas coisas mais simples, como um tecido gostoso. Há mais de um ano vivia como um robô, com todos os sentidos desligados, exceto talvez a audição, mas agora sentia-se voltar a viver. Lembrava-se com impaciência de que tinha deixado de usar aquelas cores de pedras preciosas porque Jeffery um dia dissera que as cores escuras a fazia parecer uma árvore de Natal. Ele adorava zombar de suas vestimentas, dizendo que para uma humana ela era magra demais, faltava lhe formas aonde se olhasse. E aquilo a deixava intimidada demais.
Olhou o relógio e saiu do quarto. Seus saltos batiam no assoalho polido, ecoando pelos corredores vazios.
Ao chegar à escadaria parou um instante, tomada de uma estranha sensação de vertigem. Os degraus pareciam íngremes e intimidantes. Segurou a saia comprida com uma das mãos e com a outra agarrou o corrimão. Riu de si mesma, pensando que não estava se comportando de acordo. Aquela escadaria pedia uma grande entrada, com peruca empoada e saias rodadas, o toque das trombetas anunciando sua chegada à multidão lá embaixo. Akasha Brishen saberia perfeitamente o que fazer, mas nunca a pobre humana Johanne Melanie Brishen!
Porém não havia ninguém olhando quando ela desceu, e as salas que atravessou estavam desertas, um pouco sombrias, apesar de belas, em sua atmosfera gelada e sem vida.
Drake estava sozinho no salão, preparando um drinque. De inicio ele não percebeu a chegada dela e, naqueles breves segundos, Johanne aproveitou para estudá-lo intensamente. Ela queria entender aquele vampiro enigmático. Era alto, suave, elegante na roupa de rigor que devia ter sido feita sob medida. Johanne sentiu um arrepio. De perfil ele se parecia muito com Jeffery, mas o corpo esguio possuía uma força masculina e um poder mais cru, que faltavam ao irmão. Ela sempre achara o vampiro o companheiro mais bonito que já encontrara, mas via agora que havia algo de muito mais atraente no rosto de Drake, as feições duras, seguras, os olhos azuis e vividos debaixo do cabelo castanho sempre caindo na testa. Comparando, Jeffery parecia quase juvenil com seus trejeitos imaturos mesmo sendo um original que viverá muitos anos, e se encontrasse os dois juntos, ela pensou de repente, talvez nem notasse a presença de Jeffery.
Johanne prendeu a respiração, preocupada com a direção de seus pensamentos. Drake então voltou-se para ela e por um longo momento estudou-a, pousando os olhos em seus cabelos e seu rosto, descendo depois pelos seios, a cintura fina, as pernas e quadris moldados pela saia fina. Johanne se arrepiou como se ele a tivesse tocado, percebendo o fogo que animou aquele olhar durante um breve instante. Se Jeffery tivesse me olhado assim pelo menos uma vez, pensou para si mesma.
— Sente-se melhor agora, Johanne? — Perguntou ele, com sua voz profunda.
— Sim, obrigada — Ela murmurou.
— Você está muito bonita. Posso lhe preparar um drinque? O que quer? Com certeza não será sangue. — Sorriu ao indicar inúmeras garrafas coloridas.
— Qualquer coisa que não tenha sangue. — Ela respondeu. — Trabalho num bar noturno chamado Prazeres da Carne e tudo o que servem é feito com sangue e destilado antigo. Já cansei disso.
— Imagino... — Comentou ele secamente, entregando a ela um uísque. — Não acha o seu trabalho cansativo também? Com sua formação de música erudita, imagino que deve ser muito desagradável ter de tocar só música popular para um bando de sobrenaturais sem o mínimo de cultura.
— Bom, eu já estou ficando famosa por tocar a Dança Ritual do Fogo e a Lua sangrenta de Marlóvia toda vez que as coisas ficam meio paradas. — Ela disse, sorrindo e suspirando em seguida. — Não, Drake, eu aceito meu trabalho pelo que ele é: apenas um estágio provisório, enquanto não posso me dedicar a outras coisas.
— Que tipo de coisas?
— Dar aulas, talvez. Acho que eu seria uma boa professora de piano. É uma ideia que me atrai cada vez mais, agora que estou mais amadurecida.
— Mais amadurecida? — Drake riu. — Uma criança humana como você?
—Pelo menos madura o suficiente para ter aprendido através de duras experiências que não tenho nem o talento, nem o temperamento para ser uma grande concertista. Tentei com todas as forças durante anos e o esforço quase me matou.
— Esforço? — Drake perguntou, sério. — Fala do meu irmão?
Johanne não respondeu, caminhando até a janela. Tomou um gole da bebida, sentindo imediatamente os olhos formigarem. Ia ficar bêbada se não comesse logo alguma coisa.
— Sua filha vai jantar conosco? — Perguntou.
— Vai. Aura e Ella devem estar chegando. Morgana também, se voltar a tempo do lugar para onde fugiu.
— Bom, já que temos alguns minutos sozinhos, você poderia me contar sobre essa propriedade de Jeffery? — Ela perguntou. — Ele nunca falou no assunto e naturalmente estou curiosa.
Drake virou o copo com o seu liquido espesso e avermelhado e tornou a enchê-lo de sangue. Johanne notou novamente os dedos rígidos da mão imperfeita.
— Esta é a sua primeira noite em meu país, Johanne. — Disse ele. — E quero que seja memorável. Não vamos estragá-la falando de negócios.
— Como quiser. É que sempre pensei nos originais como vampiros muito eficientes e diretos em seus assuntos.
— Não, esses são os vampiros comuns. — Drake riu. — Nós somos diferentes, sabe? Dizem que quando um original é apresentado a alguém, a primeira coisa que pergunta é o nome e o seu tipo de sangue. O vampiro comum, por outro lado, pergunta o nome e depois rasga a sua garganta em busca de alimento.
Johanne sorriu. Estava começando a se sentir quente e relaxada. Tomou mais um gole.
— E então?
— Então o quê? — Ele perguntou.
— Não vai me perguntar o meu tipo de sangue... — Ela sacudiu a cabeça e procurou um lugar para pôr o copo. — Quando começo a falar mole é porque já bebi o que baste. Não comi nada desde manhã e não estou acostumada com esta altitude.
— Ah, deve ser a altitude, sim. — Drake riu, divertido, chegando um passo mais perto.
Johanne corou. Ela nunca flertava e não entendia por que o fazia agora. Não era só a bebida e era mais do que a mera admiração por um vampiro bonito. Alguns dos vampiros que tentavam se aproximar dela também eram bonitos e bem-educados, mas no trabalho nunca se sentira atraída por nenhum deles, rejeitando qualquer avanço. Agora, Drake estava apenas olhando para ela, e seu coração disparado e a respiração curta a assustavam.
Drake olhava interessado aquelas sucessivas ondas de cor invadirem o rosto e o colo dela e Johanne pensou em como era desvantajoso ser tão humana e corar diante de qualquer emoção mais forte. Meu Deus, pensou, o drinque subiu mais do que eu imaginava.
Os olhos azuis de Drake se entrefecharam e suas narinas se dilataram quando percebeu os biquinhos dos seios de Johanne se projetando, duros, sob a seda fina. O cheiro que ela exalou o deixou estranhamente aquecido, a muitos séculos que o mesmo não sentia o seu sangue correr tão rápido como agora. Avançou para ela, mas Johanne se virou, mortificada.
Quando ele tocou o ombro nu, ela sacudiu a cabeça energicamente. Não vou deixar acontecer assim, prometeu a si mesma, não vou entrar nesse inferno outra vez!
— Johanne... — Ele murmurou, apertando mais os dedos nos ombros dela.
— Papá... Papai... — Chamou Aura da porta da sala de música. — Olhe, a tia Ella deixou eu pôr o vestido novo!
A garotinha entrou no salão, muito bonita em seu preto cravejado de brilhantes.
Drake retirou a mão instantaneamente e seus olhos se suavizaram enquanto a menina se aproximava dele e abraçava-o pela cintura.
— Está linda, meu anjo do caos! — Ele afirmou com ternura, afagando os cabelos da filha.
Johanne sorriu e avançou um passo, mas esbarrou numa mesinha muito frágil, derrubando ao chão uma estatueta de porcelana que se espatifou entre o tapete e a parede.
Morta de vergonha, ajoelhou-se para apanhar os cacos, murmurando desculpas embaraçadas. Mas imediatamente Drake a segurou pelo pulso, forçando-a a levantar-se.
— O que é isso, Johanne? — Ele exclamou. — O que é que está fazendo? Vai se cortar! E o seu sangue poderá ser sentindo por todo o castelo.
— Mas... o bibelô. Sinto muito, eu...
— Esqueça essa droga! — Disse, rude, e voltou-se para a filha que assistia a tudo de olhos arregalados. — Aura, vá chamar Cinisia ou alguma das outras criadas. Diga que houve um pequeno acidente.
A menina caminhou para a campainha, mas Drake chamou sua atenção, enérgico.
— Eu disse para ir chamar pessoalmente!
Aura olhou para o pai, assustada, e saiu da sala, batendo a porta. Johanne estava a sós com Drake, que ainda segurava seu pulso. Ela tentou se libertar, mas ele não a soltou; em vez disso, puxou-a para mais perto de si.
Johanne tentou empurrá-lo pelo ombro, mas ele agarrou sua outra mão e prendeu-a às costas dela. Johanne estava penosamente alerta à proximidade dele, sentia o calor do corpo de Drake contra o seu, os dedos dele tocando seu seio. Como um vampiro poderia emanar tanto calor assim?
— É sempre assim tão desajeitada? — Ele perguntou muito baixo.
— Desculpe. Foi um acidente.
Johanne encarou-o, depois baixou os olhos, incapaz de enfrentar aquele olhar azul e intenso. Viu então que Drake ainda apertava seu pulso, mas a pressão que fazia tinha mudado e em vez de machucá-la ele acariciava delicadamente o seio dela com as costas da mão.
— Por favor, não faça isso. — Ela murmurou.
— Por que não? — Drake sorriu docemente.
— Porque... porque eu não quero, só isso.
— Agapi, eu não acredito.
— Drake, por favor!
Surpreso, ele percebeu o tom de verdadeiro pânico na voz dela e soltou-a imediatamente.
— Johanne... — Ele murmurou, olhando fixamente os olhos escuros e apavorados dela.
— Drake... — Disse a voz de Ella, vinda da porta.
Johanne voltou-se imediatamente. Ella estava parada à porta, alta e evidentemente chique num vestido de cetim. Seu rosto porém estava retorcido por alguma emoção feroz que Johanne não conseguia definir. Drake xingou baixinho. Acenou com a cabeça para a cunhada que olhou para Johanne um instante, irrompendo em seguida numa torrente violenta, em grego. Drake respondeu à altura. A discussão foi breve e dura e Johanne, morrendo de vergonha, ficou feliz por não entender o que diziam. Viu Ella estremecer e ficar absolutamente pálida até ser forçada a concordar com a cabeça, silenciosamente.
Drake estendeu-lhe uma bebida, que ela tomou em silêncio. Os olhos castanho-claros piscavam cheios de suspeita enquanto ela olhava os outros dois. Johanne imaginou se Drake e ella seriam amantes. Afinal, eram ambos viúvos, mais ou menos da mesma idade.
Mas seus pensamentos foram interrompidos pela chegada de Aura com a criada. Só então Ella notou a estatueta quebrada no chão.
— Oh, não! — Gritou, horrorizada. — Minha porcelana de Sèvres...
— Esqueça, isso Ella. — Drake ordenou.
— Mas, Drake, foi presente de casamento do...
— Eu disse: Esqueça!
Ella lançou um olhar venenoso a Johanne e virou o rosto, furiosa.
— Hora de jantar. — Disse Drake, olhando o relógio. — Onde é que Morgana está?
— Deixei-a ir de carruagem para o vilarejo, visitar uma amiga. Mas já devia ter voltado. Acha que aconteceu alguma coisa?
— Se tivesse havido um acidente já saberíamos, com certeza. — Disse ele, irritado. — Ela deve ter resolvido dormir lá e, como sempre, se esqueceu de avisar. Ela é boa nisso. O que precisa é aprender a se comportar. O jantar está esfriando e eu detesto atrasos ou desobediência. Resolva isso Ella ou eu irei resolver a minha maneira. — Disse finalmente, oferecendo o braço a Johanne.
Mas o jantar não começou bem. Drake estacou ao chegarem à sala de jantar. A mesa estava coberta por uma toalha de linho vermelho, bordada, um enorme centro de mesa de prata brilhando com velas e flores, além dos copos de cristal, talheres de prata e porcelana dourada.
— Não acha um pouco demais para um mero jantar familiar? — Ele perguntou, voltando-se para Ella.
— Mas, Drake, você disse para dar as boas-vindas à nossa convidada humana!
— Boas-vindas, sim... — Ele protestou — Mas, é isso que chama de boas vindas?... Ella, esse centro de mesa não é usado desde o tempo da imperatriz Akasha Brishen.
— Apenas segui suas instruções, Drake.
Ele apertou os maxilares, mas nada disse, conduzindo Johanne até a mesa. Ela sentou-se à direita dele e Aura a seu lado. Ella sentou-se diante de Johanne e estudou-a como se ela fosse alguma espécie desconhecida de inseto. Muito pouco à vontade, Johanne observava os dragões e sereias da peça de prata.
— Não é bonita? — Perguntou Aura. — Levou dois dias para polir. Eu ajudei.
— Bom trabalho, meu bem. — Respondeu Johanne, sorrindo.
A um sinal de Ella, os criados entraram conduzindo as bandejas de caminha. Começaram com truta defumada, seguida de vitela envolta em queijo e presunto, e uma sucessão de pratos cremosos à base de macarrão e vegetais que, no entanto, não conseguiram despertar o apetite de Johanne. Apesar de estar morta de fome, ficou virando a comida no prato, oprimida pela formalidade da refeição. Drake tentava manter a conversa, mas o silêncio acabava sempre se abatendo sobre os quatro, naquela mesa onde cabiam pelo menos oitenta pessoas. Johanne respondia com monossílabos e Ella não falou quase nada. Até Aura acabou ficando quieta, perplexa com a atitude dos adultos.
2683 Palavras
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro