Capítulo 6 - Lady Marsalla
"Não a Diferença Entre Viver & Receber Permissão pra Viver. Assim Como Não há Diferença Entre Morrer & Ser Morto."
Johanne se interrompeu. Pela expressão de Drake, ela devia ter dito algo errado, algo de que absolutamente não fazia nenhuma ideia. Não que isso fosse novidade. Toda a sua vida com Jeffery tinha sido baseada em mentiras e subterfúgios, a maior parte dos quais ela só veio a descobrir depois que o desprezo dele chegou ao ponto de não se preocupar mais com as aparências. Com a morte de Jeffery tinha se sentido aliviada do domínio do companheiro. Mas agora se via frente a seu irmão, um vampiro que lhe parecia infinitamente mais perigoso do que Jeffery jamais tinha sido, e sentiu que ia acabar servindo novamente de bode expiatório. Como se já não bastasse tudo o que tinha sofrido na vida com Jeffery... e mesmo depois que ele tinha morrido, com a história daquela sobrevivente do acidente fatal, que a havia acusado de ter sido a causa da tragédia.
Imersa em pensamentos, Johanne não percebeu que seu rosto tinha se tornado abatido e cinzento, os olhos escuros brilhando, febris. O vampiro diante dela evidentemente percebeu que Johanneestava em profundo sofrimento mental, tentou vasculhar sua mente, mas algo o bloqueou de modo que sentiu uma leve pontada em sua cabeça. Suspirou com irritação, a humana diante dele era um verdadeiro mistério e acabou interpretando mal a razão disso ter ocorrido. Depois de esmagar o cigarro no cinzeiro, colocou-se diante dela em apenas um passo. Johanne manteve o olhar vago e ele apanhou o queixo dela com a mão e levantou sua cabeça num gesto rude. Ela piscou diante dos duros olhos azuis que a olhavam, gelados, fixos, procurando alguma coisa. O coração dela começou a bater furiosamente e, depois de algum tempo, percebeu que os arrepios de eletricidade que atravessavam todo o seu corpo eram na verdade pontadas de dor causadas pelos dedos dele, que a apertavam com força.
— Está me machucando. — Protestou debilmente.
Sem nada dizer Drake a soltou e ela acarinhou o queixo machucado. Estavam tão próximos um do outro que, quando ela baixou a mão, tocou sem querer o paletó dele e recolheu o braço depressa, instintivamente. Drake percebeu essa reação e sorriu, irônico, alçando uma sobrancelha.
— Muito bem. — Disse ele, acendendo mais um cigarro e encostando-se à beirada da escrivaninha. — Eu estava querendo ver até que ponto você ia conseguir levar esta charada, mas é evidente que seus nervos não estão resistindo. E como não gosto de ver gente desmoronar diante de mim, acho melhor acabar logo com isso. Quem é você na verdade, um asimples humana ou alguma mestiça que gosta de usar as artes da feitiçaria. E o mais importante, quem a mandou aqui? Qual é o sentido desta palhaçada? Por que está tentando se fazer passar pela viúva de meu irmão?
— É... é evidente que não me conhece. — Gaguejou ela, confusa e atemorizada diante da tensão de Drake, alerta como uma pantera pronta a atacar. — Eu... não passo... de uma humana absolutamente estranha para os seus iguais. É natural que queira que eu me identifique. Tenho aqui o meu passaporte, mas a certidão de casamento e a de nascimento estão em minha mala. Foi seu agente quem me pediu que trouxesse.
— Documentos podem ser falsificados e a sua raça sempre tentou conquistar os nossos segredos. O que busca por eles? — Disse Drake, pesado e alheio. — Portanto, vamos parar com esse jogo enfadonho. Nós dois sabemos que você não é a pessoa que finge ser. Deixando de lado...
— Documentos falsificados? — Johanne sentia vontade de rir diante do absurdo da situação. — Meu Deus, isto está parecendo o mais absurdo das conversas! Eu sou Johanne Melanie Brishen. Por que acha que não sou?
— Não vai lhe adiantar nada subestimar minha inteligência, humana. Você chega aqui dizendo ser a companheira de meu irmão, mas na verdade não passa de uma criança! Meu irmão jamais se uniria a uma mulher tão jovem e ele também jamais deixaria de lhe transformar em uma de nós.
— Tenho vinte e três anos. — Johanne sentia o bom humor se transformar em raiva. — Tinha quase vinte anos quando nos casamos.
— Não sabe absolutamente nada do passado, nem da família de Jeffery. Por que raios ele não lhe contaria nada sobre nós. — Drake prosseguia, ignorando-a completamente. — Diz que era acompanhante dele, mas eu vi com meus próprios olhos que o acompanhante era um sobrenatural, claro, de outra raça, mas era um sobrenatural. E, pior de tudo, não se parece nem um pouquinho com a descrição que ele próprio me fez da companheira numa carta!
— Jeffery lhe escreveu a meu respeito? Por quê?
— Por que seria? Não há nada de mais em escrever ao irmão sobre a futura escolhida, não?
— Normalmente, não, mas... — Johanne se controlou. Não podia contar a Drake a farsa que a união deles tinha sido desde o início, não podia sacrificar o pouquinho de respeito próprio que lhe sobrava naquela situação absurda.
— Ainda me lembro das palavras de Jeffery. — Continuou Drake. — Especialmente porque foi a única carta que recebi dele desde que deixou o nosso reino. E também porque parecia estranho ele fantasiar as coisas daquela forma. Meu irmão não era do tipo de expressar as emoções em palavras, mas escreveu assim: Encontrei a companheira dos meus sonhos, a única no mundo para mim. É alta, voluptuosa, olhos como a noite, uma valquíria de tão determinada e feroz quando se precisa... Uma criatura perfeita para carregar o nosso sobrenome e o legado de nossos ancestrais... — Drake passou os olhos por Johanne, insolente. — Você é uma fêmea humana bastante atraente, mas deve admitir que não se parece nada com uma valquíria determinada e feroz. Não vejo força em seus olhos, na verdade não vejo nada que possa ter encantado o meu irmão ao ponto de fazê-lo se unir a uma humana. A paixão pela música, até pode ser, mas isso seria insuficiente para tal ato.
Johanne sentiu-se ferver e depois gelar. Era mais uma das mentiras de jeffery que sobrevivia a ele. Encarou o vampiro que a olhava com tanta suspeita. Se estivesse em Azkar, simplesmente viraria as coisas e iria embora, mas, ali, estava à mercê dele. E tinha jurado nunca mais ficar à mercê de um homem ou vampiro.
— Não. Eu admito que essas palavras não servem para mim. — Ela respirou fundo, tentando soar segura e sofisticada. — Mas são na verdade uma descrição bastante poética da vampira do agente de Jeffery, Ayla Leifert, que era amante de Jeffery mesmo antes de eu ser apresentada a ele.
Johanne baixou os olhos, incapaz de encarar Drake. Lembrou-se de Ayla, a companheira infiel. Emílio Leifert tinha sido amigo de Johanne, mas acreditara nas mentiras histéricas que Ayla tinha contado a respeito do acidente envolvendo os caçadores, ao qual ela sobrevivera: que Johanne tinha fugido com outro sobrenatural, no caso um lobisomem do reino de Cartana e que Ayla e Jeffery haviam viajado para trazê-la de volta quando foram atacados por caçadores renegados aconteceu.
E Jeffery... Johanne tinha certeza de que tinha sido ideia de Ayla encontrar para Jeffery uma companheira que fosse ingênua e tratável, alguém que nunca tivesse coragem de revelar nada quando descobrisse que a união seria apenas uma cobertura para o fato de Jeffery estar traindo um de seus "irmãos" vampiros que se empenhava em construir para ele uma carreira brilhante. Johanne tinha sido perfeita: dezenove anos, cursando a escola de música no reino de Morlóvia, sem um vintém, sem família a que recorrer quando a coisa estourasse. Ela já tinha se conformado em abandonar a escola de artes real quando Jeffery apareceu: bonito, brilhante, extremamente talentoso. Apaixonou-se por ele primeira vista. Jeffery a pediu quase imediatamente, uniram-se e ele a levou para a cama com a mesma indiferença com que alguém se serve de lenços descartáveis para assoar o nariz. E então Johanne descobriu a verdade. Sabia que a humilhação que Jeffery lhe tinha imposto ficaria gravada em seu coração até a morte. E era irônico que Ayla a tivesse acusado de trair o companheiro, pois depois do tratamento que Jeffery lhe dispensara, Johanne não podia nem pensar em permitir que outro vampiro ou homem a tocasse.
— Conheci Emílio Leifert. — Disse Drake, depois de observar o jogo de expressões que brincavam no rosto da humana a sua frente. — Mas não fui apresentado à sua companheira. Como é que ela é?
— Espera mesmo que eu possa fazer uma descrição imparcial? — Perguntou Johanne, irônica. — Ayla era... e ainda é, pelo que sei, uma vampira bonita, jovem, profundamente egoísta. E sedutora. Uma Circe ou mesma uma valquíria como descrevestes... pelo menos, todos os vampiros que se apaixonam por ela viram porcos.
— Sabia do caso com ela quando se casou com Jeffery? Sabia que o crime por adultério em nosso meio é a aniquilação?
— Não. No começo, não. Mas descobri logo. — Ela mordeu o lábio. Não devia ter mencionado a outra vampira, tinha o orgulho muito ferido. E preferia ser considerada uma aventureira que um capacho. — Jeffery e eu tínhamos o que ele chamava de uma união civilizada.
— Sei. Eu conheço essas uniões. Acontecem sempre entre casais de meia-idade que não se amam mais, mas cujo separação é inconveniente por alguma razão. Mas você e meui irmão eram muito jovens para isso. — Por um momento ele estudou a cinza do cigarro, parecendo pensar em como iria colocar a próxima pergunta.
— Uma vez que meu irmão tinha uma amante, suponho que você também tinha um. É assim, sempre.
— Acho que seu irmão não aprovaria isso. — Ela sorriu de leve. — Ele preferia que eu fosse abjeta em minha total devoção.
— Mas não foi o que ouvi dizer. Pelo que sei, você estava abandonando meu irmão na noite em que ele morreu.
— Como foi que descobriu isso? — Johanne sentiu faltar-lhe o ar. — Foi Leifert quem contou?
— Então é verdade? — Drake apertou os olhos.
— A verdade que eu estava indo embora, mas não com outro. — Ela o encarou. — Olhe, Drake Brishen, não sei exatamente o que foi que lhe contaram, mas ainda não entendo porque é que resolveram me arrastar até a Aneanne. Seja o que for, recuso-me a responder qualquer coisa sobre Jeffery. Não lhe devo nenhuma explicação.
Algo que parecia ser respeito brilhou nos olhos de Drake, mas antes que ele pudesse falar o comunicador central do castelo tocou.
Johanne aproveitou para massagear as têmporas. Sentia que estava a ponto de ter uma de suas enxaquecas.
— Drake Brishen... — Disse Drake, irritado, ao comunicador. — Ah, é você, Rael. O que você quer agora? Não, não temos nada a conversar. Achei que já tinha entendido isso. Por que... — Drake estava evidentemente furioso, rabiscando enquanto falava. — Não, Rael, já lhe disse antes que não é bem-vindo em minha casa, você entende? Olhe, tenho visita na propriedade e peço que não me incomode mais. Adeus! — Drake bateu o comunicador e voltou-se para Johanne.
— Um patrício seu. Um jovem humano bastante desagradável que parece achar que a persistência pode funcionar onde a razão não consegue nada.
Mas Johanne não ouviu. Tinha os olhos fechados por causa da dor de cabeça e pensava profundamente.
Nos quinze meses de viuvez tinha conseguido, com enorme dificuldade, não mais se apegar ao passado, não se emocionar quando uma passagem musical lhe despertava lembranças. O único sintoma que não tinha conseguido controlar era a maldita dor de cabeça que a dominava quando perdia o controle das emoções. Estava tudo indo muito bem em sua vida solitária em Azkar. Ia começar nova vida e de repente viera o chamado para a Aneanne. Tinha sido tola em pensar que poderia se divertir viajando ao reino dos vampiros sem sofrer ainda mais no contato com os Brishen, fora mais uma vez ingênua demais. Estava cansadíssima e não ia conseguir se controlar...
Johanne gritou assustada quando as mãos de Drake deslizaram sob ela e a levantaram do chão.
— Solte-me! — Gritou impotente, enquanto ele a carregava pela sala.
— Fique quieta huamana. — Ele ordenou, depositando-a na poltrona. — Você estava desmaiando.
Assim que se sentou, começou a tremer de fadiga. Drake ajoelhou-se diante dela, afastando do rosto inclinado os cabelos escuros. A mão dele era fria e ao mesmo reconfortante e Johanne teve de resistir à tentação de apoiar nela o rosto.
— Está melhor? — Ele perguntou, preocupado.
— Estou muito cansada.
— É claro. — Drake pôs-se de pé. — Acabou de fazer uma viagem longa. Eu devia ter pensado nisso, desculpe-me, por ser tão insensível. Muitas vezes acabo me esquecendo o quanto a sua raça é frágil. Esta história toda me fez ficar muito desconfiado. E bruto também. Posso fazer alguma coisa por você, mademoiselle Johanne?
Johanne notou a ligeira hesitação dele antes de pronunciar o nome. Era a primeira vez que o fazia desde que chegara.
— Drake Brishen... — Perguntou — Por que é que estou aqui? Qual é esse assunto tão urgente que exige a minha presença em seus domínios?
— É sobre algumas propriedades que você herdou com a morte de Jeffery, mas isso não importa agora. Você acabou de chegar e precisa de descanso. Podemos conversar depois.
— Ótimo! — Disse Johanne, esgotada. — Posso ir para o meu aposento agora?
— É claro. Acha que consegue andar?
— Tenho de conseguir, não é? — Respondeu sem pensar.
— Posso carregá-la... — Disse Drake, ajudando-a a levantar-se.
— Não... não... eu... — Johanne ia responder quando percebeu um brilhozinho de humor nos olhos dele.
Sorriu de volta, relutante, sentindo as pernas tremerem. Drake chamou a empregada e Johanne se despediu dele.
— Descanse bem, humana Johanne. — Disse ele. — Ou devo chamá-la de mademoiselle Rhoslyn, uma vez que não usa mais o nosso nome?
— Por que não me chama de Johanne?
— Então, boa tarde, Johanne. — Disse ele, com um amplo e cálido sorriso, quase juvenil. — Anne. Eu gosto. É um nome estranho aos meus lábios.
— Nem tanto. É hebraico, Yehokhanan. Compostos pela união dos elementos Yah, que significa "Javé" ou "Deus", e Hannah, que quer dizer "graça" ou "agraciado".
— Vocês humanos acreditam em cada coisa. Realmente crê que existe um Deus lá fora velando por sua raça? — Ele murmurou.
— Pra ser sincera o meu povo acreditava anteriormente, mas quando descobriu as diversas raças escondidas por debaixo do manto. Muitos deixaram de acreditar, agora nós acreditamos no que os nossos olhos podem ver.
— Interessante isso. E é claro que pode me chamar de Drake.
— Drake.
— Já que gosta tanto de significados, meu nome, Drake: Significa "dragão", "serpente". Com origem no inglês antigo de sua raça, Drake possui os significados de "dragão" ou "serpente". Ele se relaciona também com o nome Draco, de origem grega, que possui os mesmos significados. Espero que esteja satisfeita. — Indagou ele a olhando fixamente. — Logo, logo, você vai estar acostumada com os demais. Finalizou mudando de assunto rapidamente.
— Acho que não. — Ela disse. — Já tentei antes, mas...
A voz dela morreu quando seus olhos encontraram os olhos azuis dele. Johanne fixou, num transe, aquele rosto vampiresco e tremeu com uma sensação que tinha até medo de definir, a mesma sensação que a invadira quando Jeffery tinha pedido que substituísse seu acompanhante que estava doente.
Drake sorriu para ela, cálido, benevolente, próximo. Johanne corou até a raiz dos cabelos e desviou os olhos.
Não podia ser assim, pensou indignada, não outra vez, não com o irmão de Jeffery...
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