Capítulo 5 - Lady Marsalla
"Não a Diferença Entre Viver & Receber Permissão pra Viver. Assim Como Não há Diferença Entre Morrer & Ser Morto."
Johanne saiu sem conseguir desgrudar os olhos daquela vampira ameaçadora e contraditória. Fechou a porta e apoiou-se nela, sem ar, o coração disparado.
No mundo em que vivia as pessoas não ameaçavam as outras e muito menos as expulsava antes mesmo de saber o que era necessário ou destruia com palavras ofensivas e humilhantes como Ella acabará de fazer. As próprias palavras tinham um ar antiquado que combinavam mais com a era medieval que com a os dias atuais. E que poder poderia ela ter para destruir tudo o que os Brishen significam? A coisa toda parecia idiota, melodramática, produto de uma imaginação doentia. Ella era evidentemente uma vampira com problemas sérios de personalidade.
— Podemos ir? — Perguntou Cinisia, a criada. — O Lorde Brishen ficou muito irritado de a mademoiselle não ter sido levada até ele assim que chegou.
— Vamos... — Disse Johanne, louca para sentar e descansar, irritada pelo fato de os Brishen parecerem sempre incapazes de virem até ela.
Seguiu a criada através de uma enorme sala, ornamentada com pinturas e mobiliada apenas com um sofá e uma poltrona ao lado do maior piano que já tinha visto na vida. Era um piano de cauda, evidentemente uma antiguidade construída por algum mestre-artesão humano a muito tempo atrás, e ela se aproximou do instrumento reverentemente. O revestimento de madeira de roseira era finíssimo e Johanne mal podia refrear o desejo de tocar aquelas teclas de marfim amarelecido pelo tempo. Tentou calcular quantos anos teria. Não era mobília original do schloss, pois podia ver debaixo da tampa aberta que as cordas se cruzavam em camadas, técnica que só havia sido desenvolvida no começo do século dezenove. Era tão lindo! Imaginava se a afinação seria tão perfeita quanto o móvel. Seria um verdadeiro sacrilégio instrumento tão perfeito estar desafinado!
Havia uma partitura na estante e, indiferente à criada, Johanne a virou, esperando encontrar alguma coisa de Liszt. Ou quem sabe Chopin, talvez Mozart. Mas viu, decepcionada, que era algo chamado Das Madchen und San Hund escrito em notas e números bem grandes, para crianças. Jeffery nunca tinha mencionado nenhuma criança na família, mas era evidente que aquele magnífico instrumento era usado para alguma criança praticar, usando uma música insípida e simplória.
— Mademoiselle, temos de ir, por favor. Não toque em nada. — Implorou Cinisia. — Lorde Brishen está esperando! — A voz da criada indicava que Drake Brishen não era um vampiro acostumado a esperar.
Apesar de tentada a demorar ainda mais, só para provocá-lo, Johanne resolveu acompanhar a criada, para não criar problemas à coitada, pois não seria justo. Mas antes de sair da sala de música prometeu a si mesma que tocaria aquele instrumento, nem que fosse uma única vez, antes de sair daquela casa.
Johanne, seguiu Cinisia através de uma série de salas enormes, tão opulentas quanto as que já tinha conhecido. Os estilos variavam, mas havia uma grandeza barroca dominando tudo. Era como um museu antigo.
Tudo perfeito. E frio. Diante do calor que fazia lá fora, o frescor do interior contribuía ainda mais para a
sensação de irrealidade. De repente percebeu que, ocultas atrás de decorações nas paredes, havia grades de ar que ajudavam a manter as salas frescas. Isso talvez fosse necessário para preservar as obras de arte, mas enfatizava ainda mais a sensação de estar num mausoléu esquecido pelo tempo e pelas pessoas. Era tudo como um cenário de ópera depois que o teatro se fechou. Dava para imaginar dançarinos fantasma vestidos em veludo e com perucas empoadas, deslizando no chão brilhante, ou uma mulher de roupa esvoaçante e pesada maquilagem cantando no alto dos degraus... mas arecia impossível que alguém vivesse ali. E, no entanto, as pessoas desenvolviam suas atividades diárias entre o dourado e os diversos anjos caídos das paredes. Drake Brishen morava ali, e também Ella, que Johanne presumia ser esposa dele. E em algum lugar havia até mesmo uma criança.
Como uma resposta a seus pensamentos, Johanne ouviu um ruído e olhou para cima. Do meio da grande escadaria uma menininha a encarava. Devia ter seis ou mesmo oito anos, grandes olhos azuis num rosto um tanto severo e cabelos louros como trigo. Vestiada de modo simples, mas elegante com seu vestido por incrível que parece mais claro e, assim que chegou ao pé da escada, Johanne sentiu-se tentada a cumprimentá-la.
— Olá... — Disse.
— Olá... — A menina respondeu, examinando Johanne desconfiada.
— Eu sou Johanne Brishen. — Insistiu ela, querendo se aproximar um pouco mais da criança. — Como é o seu nome?
— Eu sou Aurora Brishen. — Disse a menina, sorrindo, dando alguns passos em sua direção. — Mas todo mundo me chama de Aura. Você é mesmo a tia Johanne? Você é humana? Pensei que você já fosse mais velha.
Johanne retribuiu o sorriso pensando em o que uma criança de poucos anos chamaria de velha.
— Mademoiselle Aura, seu pai... — Interrompeu Cinisia, muito nervosa.
— Você tem que ir ver o meu pai agora. — Disse a menina, ficando mais séria. — E Aradia está me esperando para me levar para a cocheira. Eu vou andar no meu cavalo. Mas quero muito falar com você, por favor. Quero saber tudo sobre o reino dos humanos.
— Mas eu não conheço nenhum! Vivo a anos no mundo dos lobisomens e dos demais sobrenaturais. — Respondeu Johanne, surpresa.
— Pensei que você era do reino dos humanos. — Aura olhava Johanne, apertando os olhos, desconfiada. — Morgana disse que todos os humanos são diferentes de nossa raça. Morgana um dia ainda irá para esse reino e vai ser uma grande aliada contra a sua raça.
Johanne imaginou como seria Morgana, pensando nas milhares de vampiras que chegavam à Cartana todos os anos com o mesmo sonho, se tornar uma caçadora de elite. Mas notou, pela expressão da menina, que ela estava decepcionada e Johanne não queria cair em desgraça tão depressa.
— Uma vez, eu vi muitos caçadores de seu reino lutando contra os humanos renegados. — Contou depressa, sem mencionar o fato de que eles estava a mais de duzentos metros, treinando contra possíveis ataques e que muitos deles estavam indo em direção aos reinos de Marlóvia e Morlóvia.
— Caçadores de nosso reino! — Gritou Aura. — Você já foi ao dois reinos irmãos, Marlóvia e Morlóvia?
— Já. Muitas vezes.
— Mademoiselle, tenha compaixão, por favor, vamos... — Suplicou Cinisia desesperada, tocando o braço de Johanne.
— Desculpe, Aura, tenho de ir agora, conversamos depois.
A menina saiu correndo pelo corredor, gritando um até logo por cima do ombro. Johanne voltou-se então e seguiu a empregada até uma porta tão dourada quanto a da sala de Ella.
— Será que não se cansam de tanto ouro? — Perguntou baixinho a si mesma, enquanto a empregada se justificava dentro da sala. Sentiu raiva daquele rigor excessivo, empinou os ombros e entrou, pronta para enfrentar um novo ataque. Mas, em vez disso, o vampiro sentado à mesa pareceu não notar sua presença.
Ela imaginou se, como Ella, ele estava tentando colocá-la em seu devido lugar, como uma mera parente pobre ou pior uma insignificante humana. A cabeça de cabelos escuros estava curvada sobre um manuscrito, à margem do qual ele fazia anotações.
Nervosa, Johanne olhou em torno. Apesar das paredes e do teto serem tão pesadamente decorados quanto as da sala de Ella, a cor predominante ali era o marrom e a sala era obviamente usada como escritório, onde tudo devia funcionar. A escrivaninha de nogueira era de desenho contemporâneo, contrastando com a lareira antiga, toda entalhada. Uma cadeira moderna, estofada e macia, não tinha nada a ver com a mesinha Luís XVI a seu lado, nem com a tigela de porcelana chinesa cheia de pontas de cigarro. No outro extremo da sala havia um barzinho portátil encostado à parede e, diante da escrivaninha, uma pintura emoldurada em ouro e que, surpreendentemente, não era de nenhum mestre antigo, mas sim uma obra abstrata de um pintor contemporâneo humano! Johanne estava perplexa. A arrumação eclética daquela sala contrastava vivamente com a rígida formalidade que tinha visto em todas as outras.
Olhou em torno mais uma vez e descobriu o retrato dependurado sobre a lareira. De início chegou a pensar que o vampiro alto e esguio da pintura era Jeffery. Mas viu então que os olhos eram azuis em vez de cinzentos, o rosto marcado e o cabelo grisalho. Devia ser o pai de Jeffery, sem dúvida. A semelhança era incrível. Johanne conhecia cada traço nitidamente, pois tinha caído vítima daquele enorme fascínio desde o primeiro encontro.
Um movimento à sua frente chamou sua atenção para o vampiro à mesa. Com um murmúrio de desculpas ele afastou os livros que estava examinando e olhou para ela. Os olhos azul-mar encontraram os dela e Johanne prendeu a respiração. Depois de um segundo Johanne baixou o rosto, tentando esconder sua expressão para não revelar a sensação estranha que se apossara dela. Era o irmão de Jeffery. O que ela sentia devia sem dúvida ser resultado da incrível semelhança entre os dois homens. Ver as feições de Jeffery no retrato dependurado na parede já tinha sido um choque, mas vê-las agora vivas, se movimentando... Será que todos os vampiros da família Brishen se pareciam? Teriam todos o mesmo rosto fino de malares salientes, o mesmo nariz aristocrático, o queixo forte? É claro que as cores eram diferentes. Os olhos de Jeffery eram cinzentos e os cabelos louros, quase brancos. O irmão mais velho, porém, tinha cabelos castanho-escuros e os olhos cor do mar. As sobrancelhas retas se juntavam enquanto ele a examinava, pensativo.
Quando ele arranjou uma mecha de cabelos que lhe caía na fronte, Johanne notou que seus dedos eram longos, como os de Jeffery. Mão de musicista e, no entanto, ele a movia com uma certa rigidez que ela não conseguia definir.
Mas Johanne percebeu que seu interesse pela mão dele poderia parecer curiosidade insensível e desviou os olhos. Mas ele tinha percebido o olhar dela. Lentamente Drake se levantou e Johanne viu que ele era ainda mais alto que Jeffery. Com um ar à vontade que ela admirou, ele vestiu o casaco cinzento e ajustou a gravata com a mão imperfeita. Johanne viu então a fina cicatriz. Compreendeu instintivamente que aquele vampiro seguro e calmo não estava fazendo nenhuma pose. Parecia maduro além do ponto de precisar provar alguma coisa às pessoas. Ela imaginou onde ele poderia ter se ferido... Jeffery nunca tinha mencionado o fato.
Johanne precisou de toda a sua coragem para suportar o exame silencioso que Drake fazia dela agora. Os olhos dele se detiveram por um instante em seu cabelo acobreado antes de examinarem o rosto. Ele notou os seios, um pouquinho cheios para a baixa estatura dela, a cintura fina, as pernas longas, torneadas. Ele examinava o corpo dela como se fosse uma pintura, indiferente, reservando seu julgamento para quando tivesse analisado tudo, ponto por ponto. Johanne tentava não tremer. Durante os longos meses de trabalho no bar tinha se acostumado a ser examinada, mas a avaliação impessoal de Drake a perturbava, sobretudo porque ela não conseguia descobrir se ele gostava ou não do que estava vendo.
Para disfarçar a própria confusão, Johanne resolveu examiná-lo também. E concluiu que, definitivamente, gostava bastante do que via. Drake era alto, ágil, esguio e todo seu corpo parecia cheio de um controlado poder. Todos os seus movimentos eram precisos como os de um atleta. Ele devia ser um espetacular vampiro espadachim. Tinha o porte aristocrático de quem manejaria muito bem um florete.
— Fui informado de que não conhece muito bem as nossas leis e regras. — Disse ele de repente, numa voz muito grave e com pronúncia nitidamente impecável.
— Tenho pouco conhecimento sobre elas pra ser franca. — Explicou ela. — Mas não creio que seja o bastante para manter uma conversação não civilizada com a sua raça. Não sabe quanto estou feliz pelo senhor e sua companheira poderem me ouvir. Disse Johanne preferindo fazer outro tipo de abordagem com Drake.
— Minha companheira? — Indagou Drake, intrigado.
— É... aquela senhora... Ella. Não é sua companheira?
— Minha companheira morreu há setenta anos. — Disse ele, tenso. — Ella é minha cunhada, viúva de meu falecido irmão Damon. Pensei que soubesse disso.
— Sabia que havia outro irmão, mas não sabia que era casado.
— Éramos três irmãos na verdade. — Explicou Drake. — Damon, o mais velho, morreu junto com o meu pai quando estavam em Marlóvia, eles foram atacados por um grupo de humanos renegados... Ambos estavam indo ao encontro do nosso soberano dos reinos irmãos. Ele e Ella não tinham filhos, apesar de há alguns anos terem adotado a prima mais jovem de Ella, Morgana. Jeffery era o mais novo, claro. E ele também morreu prematuramente. De toda a família Brishen restam apenas dois originais agora: eu e minha filha Aura.
— Encontrei Aura a poucos minutos. — Johanne estava ansiosa por mudar de assunto. — Ela parece ser uma criança adorável.
— Acho que sim, ela é a segunda criança vampira nascida em nosso clã. Como deve imaginar isso é muito raro de acontecer. — Concordou Drake, sorrindo.
Johanne quase perdeu o fôlego ao ver a transformação por que passava aquele rosto ao falar da filha. As linhas duras em torno da boca se amaciavam e os olhos, de repente, pareciam mais jovens. Drake não podia ter mais de trinta e sete, trinta e oito anos pelos calculos humanos, mas Johanne sabia que ele com certeza seria um original de milênios, mas parecia acumular em si uma amargura eterna em seus olhos frios.
Johanne tinha certeza de que não ia convidá-la a sentar-se. Não sabia se isso se devia a uma grosseria inata dos Brishen ou era apenas um plano para colocá-la em seu lugar, Deus sabe por que razão. Inquieta, olhou em torno da sala, notando que os catálogos sobre a mesa eram de algumas das mais famosas casas de leilão de obras de arte do mundo. Calejon em Cartana, Misty em Marlóvia e outras, em Morlóvia, que deviam ser igualmente conhecidas para os entendidos em arte.
— Coleciona obras de arte humana? — Perguntou, meio gaguejante.
Drake sorriu, caminhando em passos longos, revelando as coxas musculosas debaixo do tecido fino de sua vestimenta.
— Sou comerciante de obras de arte agora. — Sorriu, acendendo um cigarro da cigarreira dourada, depois de oferecer a Johanne. — Tenho uma galeria em Marlóvia. Suponho que não sabia disso, também.
— Não, não sabia... — Admitiu ela, sentindo-se pouco à vontade.
— Conhece bastante arte?
— Pintura? — Ela perguntou. — Pouco. Como se diz, conheço aquilo de que gosto. Meu campo é a música.
— Magnífico, sua raça é fascinante nesse quesito. — Ele murmurou. — Você é pianista, não?
— Sou. Era acompanhante de Jeffery.
— Assisti ao concerto de Jeffery em Morlóvia, mas não a vi. — Ele pousou nela os olhos agudos. — Cabelos ondulados, olhos escuros... uma aparência bastante... marcante. Não creio que pudesse esquecê-la.
— Quando foi isso? — Johanne sentiu o coração saltar no peito. — Jeffery nunca mencionou o fato.
— Jeffery não sabia de nada! — Disse Drake, tragando o cigarro. — Eu estava em Morlóvia a negócios, no dia do concerto, por coincidência. Comprei o ingresso e entrei, só isso. Além disso, tinha que concretizar os negócios de nossa família, o soberano de Morlóvia também gosta de arte!
Mas não podia ter sido assim tão simples, Johanne pensou consigo mesma. O concerto com a Orquestra Sinfônica real de Morlóvia tinha sido o maior sucesso de Jeffery, com ingressos esgotados semanas antes. Era um programa excelente, culminando com o Concerto para Violino e Orquestra em Ré Menor de um dos artistas humanos mais famosos, Beethoven, que tinha sido a consagração definitiva de Jeffery junto à crítica e ao público.
— Eu não toquei com Jeffery em Morlóvia. — Johanne disse depois de uma pausa. — Ele... quer dizer, nós... ele achou que eu precisava descansar. Mas por que é que não entrou em contato conosco? Estar assim tão próximo e não...
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